Eu não ia narrar isto, mas não agüentei. Nessa quarta-feira, 29/12/04, estava no metrô, sentado. O vagão, moderadamente cheio, pouca gente em pé. Um sujeito, também em pé (isso é importante, por causa da propagação do som), berrava ao celular. Berrava. Só se ouvia a voz dele. Gritava, a dizer que não podia receber amigos estrangeiros do interlocutor para o réveillon, porque a cidade está muito violenta. Dizia, a bandidagem tomou conta de tudo, qual é o ponto turístico que ele podia indicar? Nenhum!, que há guerra na Maré, guerra na Mineira, guerra na Rocinha, guerra no Vidigal, guerra em Vila Isabel (morro dos Macacos), que tem assalto e seqüestro, que carioca, ao encontrar estrangeiro, assalta e mata, que depenaram um americano em Copacabana, que o Corcovado tá dominado, Vista Chinesa dominada, que Floresta da Tijuca nem pensar, que "Lapa? cê tá brincando, cê não lê jornal?", que tão assaltando e matando estrangeiro direto, estamos vivendo em cárcere privado etc. Ficou IMPOSSÍVEL me concentrar na leitura. Meu ódio do sujeito foi crescendo, por causa da óbvia e insensível, como direi, "expansão" de seu caráter terrorista. Além do mais, do jeito como ando nervoso com essa violência, o conteúdo do que ele dizia não me ajudava nem um pouco. Só que eu não era o único. Logo a mulher à minha frente, também tentando ler, começou a gesticular para ele falar mais baixo. Depois que ela começou a falar, foi um efeito catalisador impressionante -- ô, como esse povo gosta de encontrar apoio nos outros --, um monte de gente começou a se levantar e a gritar com o cara. Berravam mais alto do que ele! para a pessoa do outro lado da linha ouvir. "É MENTIRA!", "NÃO É NADA DISSO!", "ELE ESTÁ AVACALHANDO COM O RIO DE JANEIRO!", "ISSO NÃO SE FAZ, AINDA MAIS NA NOSSA FRENTE!", "ESTÁ DENEGRINDO A IMAGEM DO RIO DE JANEIRO!", "VAI FAZER ISSO EM OUTRO LUGAR!" etc. Meu ódio passou a ser contra eles. Passei a desejar, urgentemente, SAIR daquele vagão o mais rápido possível. Passei a sentir vergonha por estar sequer próximo daquela gente. O mal-estar foi crescendo, foi ficando claustrofóbico. Assim que o trem parou em Botafogo, saí correndo, mas não consegui deixar de ouvir os aplausos, a chuva de aplausos do resto do vagão -- ainda MAIS vacas-de-presépio-à-procura-do-líder -- "pela vida, pelo Rio de Janeiro, pela paz", os aplausos que cobriram os retardados quadrúpedes que mais vociferavam contra o sujeito. Saí correndo, e com tamanha velocidade, determinado a pegar outro vagão, que não percebi que Botafogo era meu destino e que eu estava caminhando para o lado oposto ao que eu queria. Não importava; continuei no mesmo sentido, porque o que também queria era distância daqueles imbecis todos, nem que, para isso, fosse necessário ir ao lado oposto da estação e da rua acima. Vamos por partes. 1. O sujeito estava errado. É uma tremenda falta de educação, delicadeza, grosseria e falta de consideração ficar gritando quando há gente em volta. 2. Não há lei proibindo o sujeito de gritar ao telefone no meio da rua. Se ele quiser gritar, você não tem nada com isso. Peça para falar baixo, saia de perto, mas não tente impedi-lo. Os demais imbecis estavam errados. 3. No momento em que o primeiro idiota começou a berrar, ele, tàcitamente, escancarou sua vida ao comentário alheio. Não quer que ninguém se meta? Então fale baixo. Se falar alto, estará declarando que todos que ouvirem são destinatários da mensagem e, portanto, têm o direito de se meter. 4. O imbecil tem LIBERDADE DE EXPRESSÃO. Ele diz o que ELE quiser, não o que os outros idiotas quiserem. 5. Por que "na frente deles" não? (Foi isso que ouvi!) Quer dizer, longe pode, né? Perto de mim, ofende. É isso? Bando de hipócritas tentando tapar o sol com a peneira. 6. Como assim, é mentira? Eu é que digo agora: vocês não lêem jornal? Então eu não sou impedido de dormir pelos tiros diários, ou melhor, noturnos? (Oras, diários também.) Eles devem viver em outra cidade, né? Não na minha. Deve ser um bando de madames (aliás, todas eram, mais um velho, o mais irritado de todos), que moram no Leblon e enfiam a cabeça na areia. 7. Vem cá. Todo o mundo ali sabe que tudo é verdade. O que estavam fazendo é exatamente o que os governos do mundo fazem, especialmente os governos do Velho Adolf, os dois governos do Garotinho, os governos de Getúlio e dos militares (1964-1985), "pra frente Brasil", "ame-o ou deixe-o" e o raio que o parta. É propaganda, no sentido da palavra que é o único usado em inglês. E ainda queriam calar o cara! "Venham, venham todos, não há nada, são só rumores da oposição que quer nos derrubar, é inveja, as notícias na imprensa internacional são todas falsas". Quer dizer: não contentes com o estado de coisas, ainda por cima querem me calar! "A situação é ruim, e você NÃO PODE falar a respeito. É pra ser assim mesmo, e ninguém pode fazer nada." CÚMPLICES eles são, do tráfico, dos assaltantes, dos seqüestradores e dos assassinos. Malditos sejam todos eles.