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FICÇÃO
E REALIDADE NA GUERRA COLONIAL
Rui Ribeiro da Costa
Apesar
dos oradores presentes não terem abordado os proprósitos da acção do
Estado português, durante os treze anos que durou a guerra no Ultramar, o I
Congresso Internacional Sobre a Guerra Colonial, que se desenrolou em Lisboa
no mês de Abril, por aquilo que foi relatado nos orgãos de comunicação
social, apresentou algumas intervenções notáveis e provocatórias, sobre as
quais deveríamos reflectir.
Uma
delas, logo no primeiro dia, foi a do Coronel Matos Gomes, ao sustentar a tese
que a guerra colonial foi uma realidade que partiu da fantasia de que tínhamos
um Império (DN, de 14/4/2000). Pela primeira vez, uma alta patente
das FA portuguesas exprime publicamente a sua discordância em relação às
causas que as levaram a pegar em armas no período compreendido entre 1961 e
1974. Algo que vários sectores militares e políticos de países como os EUA, a
França ou a própria Rússia, têm feito em relação à guerra da Argélia, do
Vietname e do Afeganistão, mas que em Portugal ainda não tinha ocorrido. Mas o
maior mérito das afirmações do Coronel Matos Gomes consiste no facto de que
ao proferi-las, ele está a apontar o dedo aos verdadeiros responsáveis pelos
dramas provocados por uma descolonização, que irónicamente muitos ainda
insistem em chamar de exemplar , e em transferi-los, não para os
governos pós-25 de Abril, que a levaram a cabo, mas pelo contrário, para o
regime político anterior que acreditou na fantasia do Império. Não sendo possível
na esfera política negociarem-se fantasias, o que aquele militar está a dizer,
é que Portugal ao insistir teimosamente, contra ventos
e marés, na unidade do seu território pluricontinental, e não sendo
essa unidade mais do que uma ficção política que nada tinha a ver com a
realidade, desperdiçou irremediávelmente a oportunidade de gerir o momento em
que a descolonização se deveria dar. Portugal perdeu assim o combóio da
descolonização, e quando se viu forçado a embarcar nele, pouco ou nada havia
já a negociar. Numa altura em que se inauguram monumentos aos combatentes e aos
mortos da Guerra Colonial, mas em que se não escuta nenhuma palavra de apreço
para com os desertores e refractários dessa mesma guerra, quando eles foram os
primeiros a dar conta da ficção em que vivia mergulhada a situação
ultramarina, e a rebelarem-se contra ela, é bom ouvir estas coisas da boca dos
que a conduziram. Porque esta fantasia não foi só a maior tragédia imposta à
juventude portuguesa nos últimos 50 anos. Foi também ela a responsável pela não
democratização do regime, pelo atraso económico, pelo adiamento da integração
do nosso País no espaço europeu, pelo isolamento internacional...
Uma
outra afirmação curiosa produzida no Congresso, foi a do General Garcia
Leandro, quando declarou que nenhumas outras FA deram ao poder tanto tempo
para resolver a questão colonial. ( DN, mesma data ). Nas
entrelinhas, o que eu leio, é que se o poder politico tentou manter viva a ficção
do Império, as FA foram, mais do que seria razoável, igualmente responsáveis
pelo prolongamento dessa ficção, tendo-lhe inclusivamente alimentado durante
treze longos anos a sua agonia, apesar de ser ponto assente que o Governo não
estava interessado numa solução negociada, e que uma vitória militar que lhe
pusesse termo não era possível no terreno. É certo que a sociedade militar
deve obediência ao poder politico, mas também é verdade que esse poder não
tinha qualquer legitimidade para impôr tal sacríficio ao povo português, como
muito bem sabia a maioria dos oficiais superiores. Por isso, o que o General
Garcia Leandro está implicitamente a reconhecer, é que as FA ao acei-tarem sem
reservas a manutenção de uma guerra em três frentes durante mais de uma década,
foram tão responsáveis como os dirigentes politicos que na época que se
seguiu à Segunda Guerra Mundial, quando começaram a soprar os ideais
nacionalistas nas colónias europeias, não souberam criar condições para a
evitar.
Curiosamente
contudo, esta responsabilidade dos militares, não tem sido posta em evidência
por ninguém, apesar deles terem constituído um dos mais sólidos esteios em
que assentou o Estado Novo, e de a instituição militar ter nessa altura um
peso politico muito superior ao detido nos nossos dias, o que se explica pelo
facto de ter sido ela quem desencadeou o
25 de Abril. A gratidão que lhes é devida por tal acto, tem feito esquecer as
pessoas que se é verdade que foi o poder militar quem nos devolveu a liberdade,
também é verdade que foi ele quem no 28 de Maio nos a tinha sonegado. O 25 de
Abril foi assim a reposição do Estado democrático que 48 anos antes as armas
nos tinham tirado. Essa gratidão tem igualmente feito esquecer o facto de que o
Movimento dos Capitães não foi constituído por razões politicas, mas sim
corporativas, já que o que levou os oficiais que a ele aderiram a derrubar a
mais velha ditadura da Europa Ocidental, foi a sua oposição ao
Decreto-Lei 353/73 que
visava facilitar a progressão aos oficiais milicianos ( que eram cada vez
mais), privilégio que os aristocráticos militares oriundos da Academia (que
eram cada vez menos ) consideravam inaceitável. A guerra colonial foi aliás,
para a maioria dos oficiais do quadro permanente que a fizeram, uma fonte
incomensurável de comendas, o que talvez explique a razão porque os militares
a suportaram durante tanto
tempo,
e porque na primeira alocução ao País após a rendição de Marcelo Caetano,
Spínola a quem os capitães tinham entregue o poder, reafirmasse o conceito
colonial do Estado português, uno e indivisível. O que a concretizar-se
representaria a manutenção triunfante da ficção no novo regime implantado
pelo MFA.
Se
as palavras de Matos Gomes denunciam a fantasia, as de Garcia Leandro talvez
inadvertidamente destapem a verdade. Mesmo que outras declarações não
tivessem sido proferidas, estas já bastariam para justificar o Congresso. É
que na História do último quarto de século, nem sempre tem sido fácil
distinguir entre a verdade e a ficção. Mais: quer uma, quer outra, têm sido
misturadas indiscriminadamente consoante sirvam para justificar os interesses, e
a correlação de forças, mais expressivas em cada momento.
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