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BISPOS
CATÓLICOS PORTUGUESES,
UM PARTIDO POLÍTICO ENCAPOTADO?
Pe. Mário de Oliveira
A
Conferência Episcopal
Portuguesa (CEP) acaba de
publicar, com data de 15 de Maio último, uma Carta Pastoral, titulada, “A
Igreja na sociedade portuguesa”. Como quase todos os documentos da hierarquia
da nossa Igreja católica, também este passou praticamente despercebido à
maior parte das pessoas, inclusive católicas.
Aliás, teria
sido um bom teste, se as empresas do ramo, passados quinze ou trinta dias sobre
a saída do documento, tivessem feito uma sondagem. Primeiro, a saber quem,
mesmo entre as católicas e os católicos de missa dominical regular, sabia já
da existência da Carta Pastoral. Segundo, quem, entre elas e eles, a tinha
lido. Terceiro, se todas e todos concordavam com os bispos, nos pontos concretos
sobre os quais eles doutrinam e traçam orientações pastorais. Quarto, se,
porventura, teriam pontos de vista divergentes dos pontos de vista avançados
pelos bispos e como acham que poderiam e deveriam dá-los a conhecer ao resto do
país. Quinto, se, alguma vez, virá a ser possível saber o que pensa a Igreja
católica, enquanto comunhão viva de mulheres e de homens baptizados, sobre as
questões que afligem a sociedade portuguesa, em lugar de continuarmos apenas a
saber o que, sobre elas, pensam os nossos bispos.
Pelos
vistos, os bispos não se preocupam por aí além que a generalidade ou até a
totalidade das católicas e dos católicos portugueses não conheça nem esta
carta pastoral, nem outras tomadas de posição que eles, periodicamente,
aprovam e fazem publicar. Basta-lhes que os seus pontos de vista sejam tornados
públicos, de forma oficial. Basta-lhes saber que o poder político terá na
devida conta os seus pontos de vista e, inevitavelmente, ponderará sobre eles,
na hora de legislar e de tomar decisões.
De
modo que documentos, como esta Carta Pastoral, não são tanto para ser lidos e
divulgados entre os membros da Igreja católica, ou entre as portuguesas e os
portugueses em geral, mas sobretudo para ser tidos em consideração pelos políticos,
nomeadamente, os homens do poder de turno, e/ou os que se preparam para os
substituir.
Aos
bispos, o que verdadeiramente interessa é pressionar o poder político, para
que os seus privilégios e os privilégios corporativos da estrutura eclesiástica
que eles visibilizam, não saiam beliscados, seja qual for a cor partidária do
Governo que está à frente dos destinos do país.
Na
sua aparente postura apolítica, os bispos da nossa Igreja católica continuam a
agir como políticos encapotados. São uma espécie de partido que nunca se
submete a sufrágio eleitoral, nunca vai à luta política, nunca disputa eleições.
Tem o seu lugar garantido no poder, embora actue fora do Parlamento, do Governo
e da Presidência da República.
Apesar
da separação oficial entre a Igreja católica e o Estado, os bispos católicos
portugueses continuam mais dentro do Estado, ao nível da influência efectiva,
do que os próprios partidos da oposição. E a prova é que as leis a aprovar,
sobre matérias de algum melindre, são (quase) sempre leis que não se atrevem
a ir contra o parecer dos bispos, ainda que possam ir contra o parecer dos
partidos da oposição.
Aos
bispos católicos em geral, custa-lhes viver sem o poder político. Eles próprios
são o poder no interior da Igreja católica, e não qualquer poder, mas um
poder sagrado, que isso quer dizer o termo «hierarquia». E, durante séculos,
pelo menos, nos países do Ocidente, eles foram sempre a primeira grande
estrutura do poder, nas sociedades, à frente da própria monarquia, da nobreza
e do povo.
Por
outro lado, os bispos nunca renunciaram de vez ao poder político, mesmo quando
os regimes monárquicos caíram e deram lugar a regimes republicanos e de feição
mais ou menos parlamentar e democrática. E é ver como eles, que nunca são
eleitos - nem sequer pelo povo de Deus, mas apenas escolhidos pela cúpula da Cúria
do Vaticano, segundo a conveniência e os interesses do sistema eclesiástico -
e que nunca se fazem rodear de órgãos diocesanos com poder deliberativo, mas
apenas consultivo, depressa acolheram, teoricamente, os novos ventos políticos
e, hoje, até já se permitem fazer doutrina sobre como devem funcionar os
regimes democráticos!
O
que, além de insólito, é também contraditório. Ou seja, precisamente
aqueles homens que continuam, ainda hoje, a dar corpo à estrutura eclesiástica
mais antidemocrática e totalmente organizada ao jeito duma monarquia absoluta e
incontestada, como é a estrutura hierárquica da nossa igreja católica, são
também esses mesmos que ousam, de tempos a tempos, sair a terreiro, e sempre
com a pretensão de terem a última palavra, para dizer como deve funcionar a
democracia e como devem comportar-se os partidos políticos!... Onde já se viu
tamanha desfaçatez e incongruência?!
Na
prática, os nossos bispos continuam a proceder, hoje, como se a sociedade civil
ainda não existisse, verdadeiramente, ou como se ela ainda não tivesse
crescido. Ou como se a sociedade civil ainda precisasse de ser tutelada. E a
prova é que eles não perdem a oportunidade de dizer aos partidos políticos e
às instituições do Estado como devem ou não devem comportar-se,
nomeadamente, no importantíssimo campo da elaboração e aprovação das leis
para o país.
Fazem-no,
não porque se preocupem com as populações e o seu bem estar, mas porque não
querem abrir mão dos privilégios que usufruem e que lhes vêm do tempo em que,
indevidamente, foram donos e senhores incontestados na sociedade, verdadeiros príncipes,
em cujas terras (dioceses) as populações não passavam de cooperadores seus,
mais ou menos considerados, uns, como o clero, por exemplo, e servos da gleba,
outros, praticamente, sem direitos, mas todos, uns e outros, súbditos seus, que
jamais se atreviam a faltar-lhes ao respeito e à obediência. Sob pena de
severas penas, neste mundo - a excomunhão era uma das mais temidas! - e,
sobretudo, no outro, com a condenação ao fogo eterno do inferno, inevitável,
segundo eles, para quem não acatasse as decisões episcopais!
Chocante,
por isso, é o mínimo que se pode dizer sobre esta forma de agir dos nossos
Bispos, também sobre esta Carta Pastoral, de 15 de Maio último. Neste caso, a
começar logo pelo título, “A Igreja na sociedade portuguesa”. Até parece
que os bispos, e apenas eles, são a Igreja. E que não há mais Igreja para além
deles, a qual até pode ter outro pensar sobre os assuntos que, nesta carta
pastoral, os bispos chamam a debate e sobre os quais tentam condicionar as leis
que estão na forja, nomeadamente, sobre a liberdade religiosa, sobre a equiparação
ao contrato matrimonial, em matéria de direitos e deveres, das chamadas uniões
de facto, tanto entre heterossexuais, como entre homossexuais, e, ainda, sobre a
possibilidade da adopção de crianças vir a ser alargada a todos os casais que
disponham do mínimo de condições para isso, e que o desejem,
independentemente, da orientação sexual deles, seja hétero ou homossexual.
Mas
o chocante desta carta pastoral não se fica por aqui. Titulá-la, “A Igreja e
a sociedade portuguesa”, é deixar no ar a impressão de que a Igreja em
Portugal é apenas e só a Igreja católica romana. Como se as Igrejas cristãs
evangélicas, da área protestante, e os respectivos bispos, porventura, com
pontos de vista divergentes e alternativos aos da nossa Igreja, não existissem
no nosso país, ou não fossem Igreja, com a mesma legitimidade da nossa.
Com
este procedimento, aliás, habitual nos documentos oficiais dos nossos bispos,
nem eles próprios se dão conta de que continuam a fazer tábua rasa, em relação
às outras Igrejas irmãs, ao apresentar a Igreja católica romana como a única
Igreja em Portugal. Ou seja, para os nossos bispos, parece que, de um lado, está
a sociedade portuguesa, e, do outro, está a Igreja em Portugal, a que eles
presidem! Se fossem mais humildes e estivessem animados duma consciência bem
mais ecuménica, não teriam titulado esta Carta Pastoral de outro jeito? Por
exemplo, “A Igreja católica (romana) e a sociedade portuguesa”?
Bem
avisados, pois, andarão o Governo e os partidos políticos com assento na
Assembleia da República, se fizerem orelhas moucas às “advertências” e às
“intromissões” dos nossos Bispos, relativamente, às leis - estas que estão
em cima da mesa e todas as outras a criar no futuro - que lhes cabe a eles, e não
aos bispos, elaborar, debater e fazer aprovar. Para isso são deputados eleitos
pelas populações, ou são membros de um Governo que resulta de eleições.
De
modo algum, os deputados e os membros do Governo têm de comportar-se como
meninos de catequese, que é, afinal, o nível em que os nossos Bispos parecem
querer colocá-los a todos, quando se permitem vir dizer-lhes, publicamente, sob
a forma de carta pastoral, para mais, apoiada em doutrina social e política
elaborada pelo Estado mais antidemocrático do mundo, como é o Estado do
Vaticano, o que devem fazer ou deixar de fazer, em matéria de leis.
Tais
intromissões episcopais são inadmissíveis, tanto mais, quanto quem as
protagoniza mais se parece, no que respeita a comportamentos democráticos, com
frei Tomás, que diz mas não faz, e, por isso, também poderá repetir,
“Olhem para o que digo, não olhem para o que eu faço”. É tempo da
sociedade civil ser cada vez mais autónoma, totalmente independente da
hierarquia eclesiástica católica, e totalmente responsável. O mesmo é dizer,
deixar de viver de joelhos diante dos bispos.É tempo dos deputados e dos
membros do Governo seguirem a própria consciência, na sua acção política,
nomeadamente em matéria de leis a aprovar para a vida do país, sem se
preocuparem se os Bispos da nossa Igreja católica gostam ou não. É tempo,
igualmente, dos bispos da nossa Igreja católica deixarem de agir como paizinhos
e tutores da sociedade portuguesa. Anunciem, a tempo e fora de tempo, mas a começar
pela sua própria casa ou diocese, o Evangelho de Deus da libertação para a
liberdade e o Evangelho da dignidade e da igualdade de todos os seres humanos, hétero
ou homossexuais, indistintamente, e o resto virá por acréscimo.
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