ANO III  Nº 26  MAIO 2000
Director : Armando Moreira Fernandes

 


 

 

A MARTA QUER USAR UM PIERCING
 QUANDO FOR GRANDE

Rui Ribeiro da Costa

 

 

A minha filha, que tem seis anos, é  uma  fã incondicional das SPICE GIRLS. E dos EXCESSO, dos ANJOS, e de mais uma quantidade de grupos musicais do género. Ora, como uma das moças que constituíam aquela girl band ostentava um piercing na língua, não admira que a Marta volta e meia, manifeste convictamente a sua intenção de quando for grande vir também a usar um. 

Não pretendo comentar aqui a influência que as modas e comportamentos de muitos ídolos musicais têm na nossa juventude. Afinal a Marta é ainda uma criança, e nada o garante, que com o andar do tempo não venha a mudar de ideias. Em todo o caso, apesar de nunca me ter sentido especialmente motivado a perfurar qualquer parte do meu corpo com tal tipo de objectos, nunca também a tentei persuadir, ou incentivar, de fazer tal coisa, mas apenas a procuro alertar para o facto de a sua colocação ser provavelmente bastante dolorosa. E nunca o procurei fazer, por pensar que quando a Marta for maior a decisão terá de ser dela, não me competindo a mim estabelecer qualquer juízo de valor sobre os seus gostos pessoais, por mais estranhos que eles me possam parecer. Tenho porém constatado, que esta minha postura de tolerância para com os cultores dos piercings, não é partilhada por muitos outros pais dos colegas da minha filha, uma vez que quando a ouvem manifestar tal desejo escarnecem dele, usando até termos insultuosos para os que os usam. Recentemente cheguei mesmo a proibir um paizinho, zeloso de defender a boa imagem da nossa juventude, de denegrir o uso dos piercings à frente da minha filha, por me parecerem menos próprias as palavras por si utilizadas. E como não podia deixar de ser, mandei-o com todas as letras, para a p... que o pariu. É que, como costuma dizer o nosso povo, quem não gosta põe na beira do prato. Não tem é que alardear publicamente a sua presunção, enxovalhando só por lhe parecer grotesco, quem decida andar com eles pendurados nas mamas, no umbigo, no nariz, ou onde muito bem lhe der na real gana. Serão os piercings uma manifestação de masoquismo ? Os que cultivam tal arte, dizem que não. Mas mesmo que o sejam, em que é que isso nos afecta, sabendo-se que o que mais há é masoquistas encapotados nas ruas, sem coragem para se assumirem tal como são ? 

É bom que se diga que a Marta não é a única criança da sua classe, que afirma usará um piercing quando for grande. Outros colegas seus, para arrelia dos progenitores, também afirmam o mesmo, pelo que daqui a alguns anos se a sua disposição se mantiver, e a moda também, a próxima geração será constituída por indivíduos que não só darão aos pendentes um uso maior do que aquele que as anteriores lhe deram, como os exibirão em locais anatómicos onde nunca foi muito usual ostentá-los. E se atendermos ao que se passou nos anos 60, quando muitos rapazes para contestar o ideal militarista de uma sociedade que os enviava de cabelo cortado à escovinha para o Vietname, a Argélia, ou as colónias ultramarinas portuguesas, passaram a usar cabelos compridos ( e foram apodados de maricas ), e as mulheres que, descoberta a pílula reclamavam o direito de dispôr do seu corpo livremente, começaram a usar mini-saia ( e foram apelidadas de galdérias ), o piercing não constituirá muito provavelmente, escândalo algum. Tal como já não o é, ver uma mulher de mini-saia, ou um homem de rabo de cavalo.

 No meio disto tudo, o curioso é ver os que se indignam contra o uso de tais apêndices, não darem conta que os piercings não são um fenómeno recente no mundo ocidental, mas que pelo contrário, as mulheres já os usam desde há muito como objectos de adorno. Ou será que os brincos, que desde pequenas a maioria dos pais mandam incrustar nas orelhas das filhas, não podem ser considerados piercings ? Então porque razão os mesmos, que os consideram estéticos quando suspensos de orelhas femininas, e que merecem até importantes trabalhos de ourivesaria, os encaram como repulsivos quando exibidos noutras partes do corpo ? Afinal se usar um brinco no nariz, é condição de suíno, como já ouvi dizer, usá-lo na orelha deveria ser equivalente a considerar a sua portadora, como uma vaca. Parece-me aliás, muito mais condenável o costume de furar as orelhas a meninas de tenra idade, do que o de furar o corpo de adultos que voluntariamente se submetem a tal ritual. E porque razão os homens não os deverão usar, se na verdade muito antes de o brinco fazer parte da indumentária feminina, ele já era utilizado pelos representantes do sexo forte, em especial pelos marinheiros, que tinham fama de possuir uma mulher em cada porto, e se tal hábito não servia para demonstrar a efeminilização de quem andava com eles, mas a sua virilidade?

 Acho ainda que esta moda dos piercings, pode ter uma motivação filosófica e antropológica que escapa aos seus detractores. Pode significar, e significa de certeza, a oposição a uma uniformização cultural, que baseada na cultura ocidental, marcou os finais do século XX. Nesse aspecto, o piercing é louvável. É que ele encontrava-se disseminado por muitas tribos de África e da Oceânia. Tal como as tatuagens e as escarificações na pele, tendo as primeiras cada vez mais adeptos nesta banda do hemisfério. Por isso, mais do que atribuir a implantação desta tendência às estrelas pop e rock, que também terão a sua influência, está claro, talvez nos devessemos interrogar se ela não corresponderá a uma necessidade de fuga sentida por muitos adolescentes, a um modelo civilizacional que se mostra incapaz de compreender os seus anseios existenciais, a um ressurgimento do mito do bom selvagem, idealizado no século XVIII por Rousseau, e a afirmação dos valores perenes do tribalismo e do primitivismo, mas que assustam ainda hoje muita gente.

 E por isso, talvez um dia, quando a Marta for grande e resolver mesmo usar um piercing, quem sabe se eu, não decidirei seguir-lhe o exemplo. Quero lá saber que me chamem suino, ou outro substantivo do género. Afinal suinos são os outros, que não compreendem nada da relatividade dos valores e das culturas.


 


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