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Palavras actuais
Rui Ribeiro da Costa
Há
dias vieram-me parar às mãos excertos de uma conhecida obra de Bento de Jesus
Caraça, publicada no distante ano de 1933 - o mesmo ano em que Salazar fazia
aprovar por plebiscito a Constituição que marcaria o início do Estado Novo -intitulada
A Cultura Integral do Indivíduo. Entre as muitas ideias explanadas
naquele ensaio, retive esta que particularmente me chamou a atenção:...os
males não estão na máquina, mas na desigualdade da distribuição dos benefícios
que ela produz. O mal não está em que se reduza de 100 para 5 o número de
horas necessárias para a fabricação de dado produto, mas sim em que o benefício
correspondente seja reservado a uma minoria, escravizando a essa má distribuição
a maioria. Quer dizer, o problema fundamental é não um problema da técnica,
mas um problema de moral social.
Bento Caraça
escrevia numa época em que o impacte das novas tecnologias não se tinha
feito sentir com a mesma acuidade com que se coloca no nosso tempo. No entanto a
sua posição parece-me muito mais dirigida aos dias de hoje, do que áqueles em
que ela foi tornada pública.
Nestas
suas breves linhas, o ilustre pensador injustamente perseguido pelo Antigo
Regime, expõe com mestria o grande dilema com que desde sempre as forças
progressistas de todo o Mundo se defrontaram: o problema da produção e
redistribuição de riqueza em moldes mais equitativos e solidários. Só que
contrariamente ao postulado bíblico, com que no Génesis Deus amaldiçoou
o homem - comerás o pão com o suor do teu rosto - Bento de Jesus Caraça
enfatiza o conceito do trabalho dissociado da ideia de sacrifício, como consequência
do progresso tecnológico, enquanto simultaneamente proclama a necessidade desse
progresso ser colocado ao serviço de todos os homens, e não apenas, como tem
sucedido, dos detentores dos meios de produção. O ensaísta português tinha
provavelmente presente o exemplo da Revolução Industrial, iniciada na
Inglaterra do século XVIII, em que o surto tecnológico que com a invenção da
máquina a vapor nessa altura se fez sentir, só aproveitou à burguesia
industrial, agravando as assimetrias sociais, e criando enormes exércitos
excedentários de mão de obra disponível, que iam engrossar a população
indigente. Não porque a riqueza criada não pudesse ser repartida por todos os
excluídos do aparelho produtivo, mas porque não havia vontade política para o
fazer. É aliás nesta falta de vontade da classe dirigente dos países que
empreenderam o take off industrial, que radica o aparecimento dos
primeiros movimentos de índole socialista e anarquista, que se propunham combatê-la.
Hoje
em dia estamos a viver uma fase pós industrial, que Alvin Tofler apelidou de
Terceira Vaga, em que a tónica se deslocou do automatismo da maquinaria pesada,
vigente ainda no tempo de Jesus Caraça, para o domínio das comunicações. E
tal como aconteceu no tempo da Revolução Industrial, esta nova vaga está a
gerar um aumento de riqueza, de inovações tecnológicas, e a oferecer mais
possibilidades de oferta no campo dos bens e serviços.
No
entanto, um estudo divulgado o ano passado por uma Universidade norte americana,
dava conta de que nos países ricos do Ocidente tem vindo a crescer o número de
desempregados, de sem abrigo, e mesmo nos EUA aumentou o número de pessoas que
não sabe de onde lhes virá a próxima refeição. Por isso me parecem actuais
as palavras de Jesus Caraça: é que no presente, tal como no passado, a
melhoria dos meios técnicos de produção que possibilitaram a irradicação do
papel do trabalhador obrigado a labutar de sol a sol, e permitiram o aumento da
produção com menor dispêndio de energia humana, continuam ainda a aproveitar
a um restrito conjunto de indivíduos. Direi mesmo, que se tivermos em conta a
relação existente entre o número de ricos e de pobres, vivendo abaixo do
limiar da dignidade, o desenvolvimento económico e o progresso técnico
acentuaram ainda mais nos últimos anos o fosso entre uns e outros, precisamente
porque falta ainda ver reconhecida e implantada a nova moral social reclamada
por Bento de Jesus Caraça há quase 70 anos, na obra citada. A sociedade
globalizada do século XXI, ainda continua muito longe da visão idealizada por
Tofler, segundo a qual o indivíduo apesar de só necessitar de trabalhar duas
ou três horas por dia, conseguiria perfeitamente suprir as suas necessidades, e
onde portanto a pobreza estaria irradicada.
Numa
altura em que de acordo com os resultados eleitorais de 10 de Outubro, Portugal
efectuou politicamente uma viragem à esquerda, seria bom que a actual maioria
parlamentar procurasse dar resposta a esta situação. É que os partidos desta
área, e que se encontram a dirigir os destinos de quase todos os estados da UE,
apesar das suas raízes ideológicas e históricas, têm-se limitado a aplicar
uma política de gestão corrente dos grandes problemas mundiais, e abdicado dos
seus objectivos genéticos, que seriam o de criar condições para que uma nova
ordem económica e social podesse ser estabelecida.
O
progresso tecnológico, que supostamente deveria ser utilizado para libertar o
homem da escravidão, para nada mais tem servido do que para continuar a
aprofundar as assimetrias existentes, gerando cada vez mais riqueza para uns,
mas agravando as condições de vida dos assalariados, dos excluídos e
inadaptados. Não é por acaso que à medida que aumentam os avanços tecnológicos,
intensificam-se fenómenos como a violência urbana, o terrorismo, o
proselitismo politico e religioso, a delinquência juvenil e a toxicodependência...
Em Novembro do ano passado, escrevi nas páginas do Notícias de
Penafiel, que a viragem à esquerda, pode não ser tão evidente como a
leitura da correlação de forças na AR, pode sugerir, e depois de
ter relido as palavras de Bento Caraça, ainda mais as mantenho. Até porque
pelas notícias que me chegam da vida laboral, cada vez aumenta o número de
empresas que deitam mão a um expediente legal para reduzir efectivos, que é a
extinção de postos de trabalho por razão de reconversão tecnológica.
Se como sustentava o Professor Agostinho da Silva, o homem fez-se para
criar, e não para trabalhar, tal como nos anos 30 não é a disponibilidade
dos braços e dos cérebros que deve ser condenada - foi ela aliás, no século
V a. C., a principal impulsionadora do milagre cultural e das transformações
políticas atenienses, uma vez que propiciou condições para que o cidadão
ocioso livre das pressões de um trabalho extenuante e alienador, desenvolvesse
todas as suas aptidões naturais - mas a riqueza que graças a ela continua a
ser gerada em doses crescentes, mas que em nada irá beneficiar os braços e os
cérebros forçados à exclusão.
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