ANO III  Nº 25  Abril 2000
Director : Armando Moreira Fernandes

 


 

 

Palavras actuais
Rui Ribeiro da Costa

 

 

dias vieram-me parar às mãos excertos de uma conhecida obra de Bento de Jesus Caraça, publicada no distante ano de 1933 - o mesmo ano em que Salazar fazia aprovar por plebiscito a Constituição que marcaria o início do Estado Novo -intitulada A Cultura Integral do Indivíduo. Entre as muitas ideias explanadas naquele ensaio, retive esta que particularmente me chamou a atenção:...os males não estão na máquina, mas na desigualdade da distribuição dos benefícios que ela produz. O mal não está em que se reduza de 100 para 5 o número de horas necessárias para a fabricação de dado produto, mas sim em que o benefício correspondente seja reservado a uma minoria, escravizando a essa má distribuição a maioria. Quer dizer, o problema fundamental é não um problema da técnica, mas um problema de moral social.

Bento Caraça  escrevia numa época em que o impacte das novas tecnologias não se tinha feito sentir com a mesma acuidade com que se coloca no nosso tempo. No entanto a sua posição parece-me muito mais dirigida aos dias de hoje, do que áqueles em que ela foi tornada pública.

Nestas suas breves linhas, o ilustre pensador injustamente perseguido pelo Antigo Regime, expõe com mestria o grande dilema com que desde sempre as forças progressistas de todo o Mundo se defrontaram: o problema da produção e redistribuição de riqueza em moldes mais equitativos e solidários. Só que contrariamente ao postulado bíblico, com que no Génesis Deus amaldiçoou o homem - comerás o pão com o suor do teu rosto - Bento de Jesus Caraça enfatiza o conceito do trabalho dissociado da ideia de sacrifício, como consequência do progresso tecnológico, enquanto simultaneamente proclama a necessidade desse progresso ser colocado ao serviço de todos os homens, e não apenas, como tem sucedido, dos detentores dos meios de produção. O ensaísta português tinha provavelmente presente o exemplo da Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra do século XVIII, em que o surto tecnológico que com a invenção da máquina a vapor nessa altura se fez sentir, só aproveitou à burguesia industrial, agravando as assimetrias sociais, e criando enormes exércitos excedentários de mão de obra disponível, que iam engrossar a população indigente. Não porque a riqueza criada não pudesse ser repartida por todos os excluídos do aparelho produtivo, mas porque não havia vontade política para o fazer. É aliás nesta falta de vontade da classe dirigente dos países que empreenderam o take off industrial, que radica o aparecimento dos primeiros movimentos de índole socialista e anarquista, que se propunham combatê-la.

Hoje em dia estamos a viver uma fase pós industrial, que Alvin Tofler apelidou de Terceira Vaga, em que a tónica se deslocou do automatismo da maquinaria pesada, vigente ainda no tempo de Jesus Caraça, para o domínio das comunicações. E tal como aconteceu no tempo da Revolução Industrial, esta nova vaga está a gerar um aumento de riqueza, de inovações tecnológicas, e a oferecer mais possibilidades de oferta no campo dos bens e serviços.

No entanto, um estudo divulgado o ano passado por uma Universidade norte americana, dava conta de que nos países ricos do Ocidente tem vindo a crescer o número de desempregados, de sem abrigo, e mesmo nos EUA aumentou o número de pessoas que não sabe de onde lhes virá a próxima refeição. Por isso me parecem actuais as palavras de Jesus Caraça: é que no presente, tal como no passado, a melhoria dos meios técnicos de produção que possibilitaram a irradicação do papel do trabalhador obrigado a labutar de sol a sol, e permitiram o aumento da produção com menor dispêndio de energia humana, continuam ainda a aproveitar a um restrito conjunto de indivíduos. Direi mesmo, que se tivermos em conta a relação existente entre o número de ricos e de pobres, vivendo abaixo do limiar da dignidade, o desenvolvimento económico e o progresso técnico acentuaram ainda mais nos últimos anos o fosso entre uns e outros, precisamente porque falta ainda ver reconhecida e implantada a nova moral social reclamada por Bento de Jesus Caraça há quase 70 anos, na obra citada. A sociedade globalizada do século XXI, ainda continua muito longe da visão idealizada por Tofler, segundo a qual o indivíduo apesar de só necessitar de trabalhar duas ou três horas por dia, conseguiria perfeitamente suprir as suas necessidades, e onde portanto a pobreza estaria irradicada.

Numa altura em que de acordo com os resultados eleitorais de 10 de Outubro, Portugal efectuou politicamente uma viragem à esquerda, seria bom que a actual maioria parlamentar procurasse dar resposta a esta situação. É que os partidos desta área, e que se encontram a dirigir os destinos de quase todos os estados da UE, apesar das suas raízes ideológicas e históricas, têm-se limitado a aplicar uma política de gestão corrente dos grandes problemas mundiais, e abdicado dos seus objectivos genéticos, que seriam o de criar condições para que uma nova ordem económica e social podesse ser estabelecida.

O progresso tecnológico, que supostamente deveria ser utilizado para libertar o homem da escravidão, para nada mais tem servido do que para continuar a aprofundar as assimetrias existentes, gerando cada vez mais riqueza para uns, mas agravando as condições de vida dos assalariados, dos excluídos e inadaptados. Não é por acaso que à medida que aumentam os avanços tecnológicos, intensificam-se fenómenos como a violência urbana, o terrorismo, o proselitismo politico e religioso, a delinquência juvenil e a toxicodependência...

Em Novembro do ano passado, escrevi nas páginas do Notícias de Penafiel, que a viragem à esquerda, pode não ser tão evidente como a leitura da correlação de forças na AR, pode sugerir, e depois de ter relido as palavras de Bento Caraça, ainda mais as mantenho. Até porque pelas notícias que me chegam da vida laboral, cada vez aumenta o número de empresas que deitam mão a um expediente legal para reduzir efectivos, que é a extinção de postos de trabalho por razão de reconversão tecnológica.  Se como sustentava o Professor Agostinho da Silva, o homem fez-se para criar, e não para trabalhar, tal como nos anos 30 não é a disponibilidade dos braços e dos cérebros que deve ser condenada - foi ela aliás, no século V a. C., a principal impulsionadora do milagre cultural e das transformações políticas atenienses, uma vez que propiciou condições para que o cidadão ocioso livre das pressões de um trabalho extenuante e alienador, desenvolvesse todas as suas aptidões naturais - mas a riqueza que graças a ela continua a ser gerada em doses crescentes, mas que em nada irá beneficiar os braços e os cérebros forçados à exclusão.


 


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