ANO III  Nº 24  MARÇO 2000
Director : Armando Moreira Fernandes

 


 

 

Lunáticos do fim de Século
Alfredo de Sousa

 

O caso poderia ter acontecido no século XVI. Ou no século XIX. Ou em todos os séculos. Porque é de todos os séculos. Porque é de todos os tempos  a existência de lunáticos.

Embora tendo o seu auge com Nostradamus, no século XVI, os profetas e as profecias, ou seja os lunáticos e as asserções dos lunáticos, vieram até aos nossos dias, e é ponto assente que a sua existência se perde na memória dos tempos. Ainda hoje há, e haverá por certo em todo  o futuro, quem devote uma atenção peregrina aos lunáticos da nossa praça que, através de adivinhações, benzeduras, curandices, cartas, e outras quejandas e insólitas práticas de insinuação, tentam convencer e convencem muito boa gente que a esses lunáticos, oportunistas, trapaceiros, bruxos ou simples curiosos, recorrem na ânsia de encontrarem o remédio para males e padecimentos que a maior parte das vezes não passam de imaginários.

Um destes lunáticos passou há dias por Penafiel. Publicitava as suas destrambulhadas sentenças em verso, em duas folhas A4 policopiadas e preenchidas cada uma com nove quadras decassilábicas de uma confrangedora pobreza poética, onde se podia ler preciosismos como estas rimas: infalível / afável; vão / criação; amizade / autoridade; irmãos / naus; escrever / prazer; vaidade / desvairados; ventos / tormentos; sabedoria / viria; irritar / nadar, etc., ou seja, outras tantas rimas totalmente descabeladas.

Nas palavras, que pretendia fossem persuasivas e convincentes, e que endereçava às pessoas a quem se dirigia oferecendo as duas folhas A4 policopiadas, solicitando em troca uma moeda, mas não a exigindo, fazendo questão em salientar essa não exigência, o lunático / poeta procurava explicar o significado das quadras que escrevera. À sua maneira, já se vê. De qualquer modo, a forma como o fazia permitia que se lhe adivinhasse uma certa auréola de idealista frustado, que não se furtava à divulgação das suas poesias com o mesmo empenho de quem divulga produtos de limpeza ou outros quaisquer das nossas precisões quotidianas e consumistas.

Essas explicações alertavam, porém, para o sentido metafórico / absurdo dos escritos que, mesmo mal escritos, pretendiam, segundo a explicação do seu autor, ter significados diferentes daquilo que se lia. Por exemplo, nesta quadra, que se transcreve textualmente, Ai! ai do mar e da terra que canta, / O mar!, com grande fúria na vaidade,,, / Para a terra, abrir a sua garganta, / E, os reis dela ficarem desvairados, nesta quadra, o vate / lunático explicou muito convicto que mar significava povo. Só não explicou a razão por que utilizou tão extravagante pontuação, como as vírgulas em triplicado e os pontos de exclamação a despropósito, bem assim como o desconexo sentido frásico e a adulteração das rimas. Porém, a convicção que deu às suas explicações mirabolantes, tão estapafúrdicas como os próprios poemas, dava a certeza de que se estava em presença de um lunático, de um autêntico fin de siècle.

A única e verdadeira ilação retirada deste episódio, em que fui também interlocutor, permitindo-me, por isso, tecer estes comentários, é a de que esta é uma forma original de se levar a vida sem se deitar mão a outros recursos menos próprios e até reprováveis, como a ociosa pedinchice ou a criminosa roubalheira, ou então o odioso faz de conta que é ser arrumador de automóveis em parques de estacionamento, pagos ou não, engrossando a caterva de drogados que pululam impunemente não se sabe protegidos por quem, e que aparecem quando menos se espera e sem se saber donde, de mão estendida como mealheiros onde se depositam as moedas, sob pena de, se o não fizerem, esses mesmos correrem o risco de verem os seus carros riscados como represália.

Assim, pela originalidade deste modo de vida, o lunático poeta, interlocutor atrevido de alguns penafidelenses há uns dias atrás, prova à puridade que se tratava, realmente, de um verdadeiro lunático, já que a poeta nem com a explicação metafórica e absurda dos seus versos consegue lá chegar!...
 

 


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Penafiel - Março 2000

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