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Lunáticos
do fim de Século
Alfredo de Sousa
O caso poderia ter acontecido no século
XVI. Ou no século XIX. Ou em todos os séculos. Porque é
de todos os séculos. Porque é de todos os tempos a
existência de lunáticos.
Embora tendo o seu auge com Nostradamus, no século XVI, os profetas
e as profecias, ou seja os lunáticos e as asserções
dos lunáticos, vieram até aos nossos dias, e é ponto
assente que a sua existência se perde na memória dos tempos.
Ainda hoje há, e haverá por certo em todo o futuro,
quem devote uma atenção peregrina aos lunáticos da
nossa praça que, através de adivinhações, benzeduras,
curandices, cartas, e outras quejandas e insólitas práticas
de insinuação, tentam convencer e convencem muito boa gente
que a esses lunáticos, oportunistas, trapaceiros, bruxos ou simples
curiosos, recorrem na ânsia de encontrarem o remédio para
males e padecimentos que a maior parte das vezes não passam de imaginários.
Um destes lunáticos passou há dias por Penafiel. Publicitava
as suas destrambulhadas sentenças em verso, em duas folhas A4 policopiadas
e preenchidas cada uma com nove quadras decassilábicas de uma confrangedora
pobreza poética, onde se podia ler preciosismos como estas rimas:
infalível / afável; vão / criação; amizade
/ autoridade; irmãos / naus; escrever / prazer; vaidade / desvairados;
ventos / tormentos; sabedoria / viria; irritar / nadar, etc., ou seja,
outras tantas rimas totalmente descabeladas.
Nas palavras, que pretendia fossem persuasivas e convincentes, e que
endereçava às pessoas a quem se dirigia oferecendo as duas
folhas A4 policopiadas, solicitando em troca uma moeda, mas não
a exigindo, fazendo questão em salientar essa não exigência,
o lunático / poeta procurava explicar o significado das quadras
que escrevera. À sua maneira, já se vê. De qualquer
modo, a forma como o fazia permitia que se lhe adivinhasse uma certa auréola
de idealista frustado, que não se furtava à divulgação
das suas poesias com o mesmo empenho de quem divulga produtos de limpeza
ou outros quaisquer das nossas precisões quotidianas e consumistas.
Essas explicações alertavam, porém, para o sentido
metafórico / absurdo dos escritos que, mesmo mal escritos, pretendiam,
segundo a explicação do seu autor, ter significados diferentes
daquilo que se lia. Por exemplo, nesta quadra, que se transcreve textualmente,
Ai! ai do mar e da terra que canta, / O mar!, com grande fúria na
vaidade,,, / Para a terra, abrir a sua garganta, / E, os reis dela ficarem
desvairados, nesta quadra, o vate / lunático explicou muito convicto
que mar significava povo. Só não explicou a razão
por que utilizou tão extravagante pontuação, como
as vírgulas em triplicado e os pontos de exclamação
a despropósito, bem assim como o desconexo sentido frásico
e a adulteração das rimas. Porém, a convicção
que deu às suas explicações mirabolantes, tão
estapafúrdicas como os próprios poemas, dava a certeza de
que se estava em presença de um lunático, de um autêntico
fin de siècle.
A única e verdadeira ilação retirada deste episódio,
em que fui também interlocutor, permitindo-me, por isso, tecer estes
comentários, é a de que esta é uma forma original
de se levar a vida sem se deitar mão a outros recursos menos próprios
e até reprováveis, como a ociosa pedinchice ou a criminosa
roubalheira, ou então o odioso faz de conta que é ser arrumador
de automóveis em parques de estacionamento, pagos ou não,
engrossando a caterva de drogados que pululam impunemente não se
sabe protegidos por quem, e que aparecem quando menos se espera e sem se
saber donde, de mão estendida como mealheiros onde se depositam
as moedas, sob pena de, se o não fizerem, esses mesmos correrem
o risco de verem os seus carros riscados como represália.
Assim, pela originalidade deste modo de vida, o lunático poeta,
interlocutor atrevido de alguns penafidelenses há uns dias atrás,
prova à puridade que se tratava, realmente, de um verdadeiro lunático,
já que a poeta nem com a explicação metafórica
e absurda dos seus versos consegue lá chegar!...
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