O TERCEIRO CAMINHO

 

 

Difícil, repita-se, enquadrar Marques Rebelo numa das duas mais representativas correntes literárias da década de trinta (época em que aparece e se afirma como escritor). Na verdade, entre o romance social e a ficção introspectiva, o autor de A estrela sobe escolheu um caminho intermediário, a que não eram estranhos a abertura ao mundo exterior do primeiro nem o impulso confessional do segundo.

Tanto nos contos de Oscarina, Três caminhos e Stela me abriu a porta, como nos romances Marafa e A estrela sobe, nota-se a preocupação do escritor em situar e datar suas narrativas, incorporando o ambiente carioca das primeiras décadas do século. Especialmente o Rio dos subúrbios e dos bairros que muito morosamente saíam do século XIX, à margem do progresso que começava a desembarcar na zona praieira com a administração do prefeito Pereira Passos, homem da geração de Machado de Assis e responsável, nas palavras de Afonso Arinos de Melo Franco, por “intensa era de trabalho e luta, de destruição e construção, que em poucos anos iria transformar a fisionomia da metrópole e provocar um impacto consagrador na opinião do país”, por meio de um plano urbanístico renovador que incluía a abertura das Avenidas Mem de Sá, Beira Mar e o túnel do Leme. Era o começo do fim do Rio Antigo.

Nessa encruzilhada de dois momentos cariocas, nasceria em 1907 o escritor Marques Rebelo, no bairro de Vila Isabel. Mesmo passando a infância em Minas, a que ficaria ligado por toda a vida, o escritor permaneceria sempre um homem carioca.

Naquelas cinco primeiras obras do autor, todas dos anos trinta e começo de quarenta, há forte presença dos ambientes suburbanos, que deixam de predominar em O espelho partido, obra da maturidade e publicada depois de cinqüenta. Aqui, o escritor viaja pelo Rio inteiro, da Zona Sul à Zona Norte, da Floresta da Tijuca às praias, dos Arcos da Lapa à Livraria José Olympio, das casinhas simples dos subúrbios aos salões decadentes da última aristocracia imperial. E até sai do espaço carioca, com várias incursões pela hinterlândia brasileira.

Marques Rebelo não é só o contista e novelista da “gente humilde” da Zona Norte carioca, visão apressada e insuficiente para a compreensão de uma obra complexa que, sob a casca costumbrista, escondia um investigador atento da vida, com agudo senso das contradições humanas: um machadiano menos amargo que o Mestre, talvez adoçado pela influência de Manuel Antônio de Almeida e Lima Barreto.

A paisagem natural e social do Rio aparecem com freqüência na prosa altamente elaborada de Rebelo, mas não funcionam simplesmente como cenário cercando a ação e os personagens. Antes de tudo, são elementos que entranham no seu modo de ser, repontam na sua fala, interferem no seu destino. Marcado pelo pós-simbolismo, suas descrições são breves, liricamente concisas, sugerindo a atmosfera em vez de “desenhá-la” com o microscópio naturalista. Mais sugerindo do que impondo, como viu Álvaro Lins. Um escritor  que pouco insistia, segundo Carpeaux.

Conforme foi dito, essas descrições rápidas lembram, de certa forma, os traços despojados do pós-impressionismo de Cézanne — pintor caro a Rebelo — quando reduzia a paisagem a suas linhas básicas. Como nesse panorama de Belo Horizonte:

 

E o vento parou de fustigar o pé de manacá e a tarde cai radiosa. Os sujos cabritos juntam-se num grupo voraz no caminho que leva ao Cruzeiro, onde há cascavéis. A serra da Piedade recorta-se contra o céu com uma nitidez impressionante. E o fumo dos jantares se fazendo cobre a cidade já perturbada por tolos e ridículos arranha-céus.

 

Por outro lado, a forte infiltração lírica nos seus textos convive muito bem com o observador atento e malicioso, preocupado com as nuanças mais significativas do comportamento, sem nunca se perder nos becos sem saída do psicologismo minucioso e cansativo de um Cornélio Pena, de um Lúcio Cardoso, de um Otávio de Faria; e sem limitar-se a ser um repórter dos subúrbios.

Mário de Andrade, mestre modernista de Rebelo, foi um dos que primeiro enxergaram o lado não costumbrista do autor de Oscarina. Considerando-o “um dos mais notáveis analistas de almas” da literatura brasileira contemporânea, vai além e reconhece nele “o nosso criador mais pessimista”, cujos livros seriam “irrespiráveis se o escritor não usasse temperar tamanha flacidez moral com o sentido muito vivo da comicidade e um certo sentimento poético, que freqüentemente deixa escapulir, na malvadez seca dos casos e das almas, uma perquirição mais lírica”.

O crítico modernista tocou num ponto fundamental da obra rebeliana: os costumes seriam, em seus textos, disfarces da tragédia cotidiana, elemento de equilíbrio para torná-los “respiráveis”, juntamente com o senso do cômico e do lírico.

Antes de Mário de Andrade, já Tristão de Athayde, depois de ler Oscarina em 1931, notava esse lado disfarçadamente sombrio do escritor, quando acentuava a preferência desse irredutível pessimista por “personagens que rolam a encosta, que baixam de classe” ou que, de qualquer outro modo, decaem.

Narrar o percurso da decadência ou descrever o estado atual do personagem decaído — eis boa parte da viagem ficcional que Rebelo empreendeu pelo desencantado cotidiano dos homens, em que criaturas sem Deus são freqüentemente expulsas dos seus paraísos: a infância, o dinheiro, o amor.

Esse mundo desencantado foi, no entanto, visto e mostrado com tolerância, sem a rudeza com que outro machadiano — o nordestino Graciliano Ramos — faria sua marca registrada. Rebelo livrava-se um pouco das sombras por meio das lentes líricas que usava para assistir aos trabalhos e aos dias dos cariocas; continuou sendo sempre, em prosa, o poeta que não conseguiu ser em verso nas revistas Antropofagia, Leite Crioulo e Verde, quando ainda aquecia o motor literário no final dos anos vinte.

O curioso é que esse grande pessimista literário não chegou a ser, na sua vida pessoal, um Dom Casmurro. Era de generosidade rara entre escritores, geralmente narcisistas e inclinados a sofrer com o sucesso alheio. Drummond testemunha:

 

Lançou e projetou escritores, ajudou outros em momentos de crise e desânimo, e no meio de tudo isso fingia-se de mau. Quem ia casmurro e pensando no pior, iluminava a mente com cinco minutos de papo com ele. Mas parece que fazia rir e ria, para diluir o sentimento de que a vida não é alegre nem cômoda (...) espírito forte — torturado mas forte — que soube zombar de ridículos, fraquezas e imperfeições, sem deixar de praticar o exercício do carinho para com o ser vivo.

 

Rebelo gostava sempre de repetir um verso do poeta italiano Tasso, de quem aliás não gostava: “Perdutto é tutto il tempo /Que in amor non se spende”. Esse “exercício do carinho para com o ser vivo” só podia ser praticado nesse mundo e nessa vida (única em que Rebelo acreditava), vida que “precisa ser paixão para ser vida, calada ou faladora, taciturna ou desvairada, mas paixão. O meio-termo cabe às almas medíocres, prudentes, formalistas”.

Segundo Herberto Sales (uma das inúmeras “vítimas” do carinho do escritor carioca), esse

 

Doce Rebelo, tão cáustico na aparência (...) amava a sua cidade, amava o Rio, era impressionante o seu ar de felicidade quando andava pelas ruas do Rio, falando com Deus e o mundo, e para Deus e o mundo sorrindo. Tinha mesmo um ar de tão comunicativa felicidade, que dava a impressão de que falava até com quem não conhecia. Mas todos conheciam Marques Rebelo, sabiam quem era Marques Rebelo, figura da cidade, um dos sete cariocas do Rio.

 

Como o homem Rebelo, assim é sua escrita: entre pessimista e lírica, amarga e comovida, cheia de oculta tragédia sob a aparente felicidade das casas e das ruas. Foi sempre um escritor vigilante, procurando policiar brandamente as paixões, o ritmo exacerbado do sangue, a ramificação das imagens, os conceitos obscuros.

A epígrafe que escolheu para o livro Stela me abriu a porta revela bem esse desiderato estético: “O tempo conserva de preferência aquilo que é um pouco seco” (Jacques Chardonne). Era seu lado Machado de Assis — sempre em luta com sua faceta Camilo Castelo Branco...

Lírico que não desprezava os contornos sociais do eu recôndito, Marques Rebelo estava consciente dessa terceira via que escolheu para sua obra, partindo do ponto de intersecção entre o íntimo e o coletivo, a emoção e o escárnio, a intuição e o conceito.

Era com a bandeira machadiana que esse “diabo de língua solta” — sem nenhum tédio da controvérsia — investia contra o romance do Nordeste e a ficção católica: sempre no rastro do “clássico” Machado de Assis.

Como já foi observado, Rebelo era incansável crítico do romance nordestino de trinta, naquilo que, salvo exceções, tinha de mais condenável — a indiferença pelos valores artísticos da obra —, ficando conhecido à época como seu maior adversário, “o inimigo número um dos escritores do Norte, o que ele se punha a desmentir com um riso que mais parecia uma confirmação...” Disse, certa vez, numa entrevista: “São escritores de má qualidade literária. Historicamente têm importância pois decorrem da revalorização do homem brasileiro, delineada pela campanha de 22 (...) Mas não constituem um movimento aceitável pelos seus valores próprios”.

Manuel Bandeira, no poema “Os voluntários do Nordeste” (de Estrela da manhã, 1936), registra a implicância rebeliana:

 

Nisso aparece em cabelo

O novelista Rebelo,

Que é Dias da Cruz também!

Mais uma voz para o coro!

E foi um tremendo choro:

— E vêm os do Norte! E vêm ...

 

Fazia, também, restrições à literatura introspectiva, de matriz católica, sem janelas para o mundo exterior, como a que era feita pelo amigo Cornélio Pena, Lúcio Cardoso, Otávio de Faria.

Sobre Fronteira, de Cornélio Pena, escreveu a seguinte página onde se mesclam rigor e compreensão:

 

Pouco extenso sem ser enxuto, paupérrimo de diálogo sem ser opulento de narrativa, virtuosamente escrito sem revelar um grande estilo, soturno sem ser dramático, é uma desfilada de fantasmas — mas à margem do tempo, fantasmas antigos, de rabona e bandós, fantasmas aflitos, tomados pelo medo, mais calculado que profundo, do abismo e da danação. E todo envolvido numa atmosfera de fifó, com uma linha irônica no meio sobre Floriano Peixoto, a única em que nos dá um sinal de vida — descuido, por certo, do autor ... É mais um esqueleto do que um corpo, falta-lhe a carne estuante, o sangue que corre, o coração de gente, mas resiste. Resiste e ergue uma barricada no campo das letras, na qual as baionetas de chumbo irão se entortar. Será um outro 'romance branco' para os vitoriosos fabricantes de romances sociais — coloridos, por suposto; como será, especialemnte, uma lição de seriedade e de convicção no introspectivo para um Helmar Feitosa, para um João Soares, para outros que tais, se forem capazes de compreender e aceitar uma lição de belas-letras.

 

No roman-à-clef O espelho partido, de onde foi tirado esse trecho, Helmar Feitosa é o romancista José Geraldo Vieira e João Soares é Otávio de Faria. Rebelo apostou no melhor do grupo, Cornélio Pena, que, dos romancistas católicos, está sendo o mais lido e estudado hoje em dia.

Lição de belas-letras, para Marques Rebelo, significava compreender o social e o psicológico como valores literários. “Não basta ter o que contar, é capital saber como contá-lo. A beleza é o único veículo permanente da verdade literária (...) É preciso escrever bem.” Fosse um engenho do Nordeste nas mãos do romancista telúrico, ou a angústia metafísica nas mãos do autor católico, o que importava era a transfiguração estética dos ambientes e dos sentimentos pela artesania do escritor, consciente dos meios empregados e dos efeitos a atingir.

Foi Mário de Andrade quem primeiro viu, com clareza, o modo pelo qual se dava essa mistura de alma e ambiente na prosa rebeliana, em boa descrição estilística da sua “maneira”. Mostra como o escritor carioca só compreendia a consciência individual presa ao mundo exterior ou até dele fazendo parte. Trata-se do artigo “Psicologia em ação”, de 1939, ano do lançamento do romance A estrela sobe:

O artista entrelaça os seus diálogos com passagens descritivas em que todos os elementos da expressão verbal são utilizados, sem preferência por um só. Geralmente frases curtas que se sucedem (...) com uma rapidez rítmica estonteante, um verdadeiro simultaneísmo. Reflexões de autor, pensamentos de personagens, seus cacoetes de reflexo, notações de ambiente, de traços físicos, de sentimentos, tudo se ajunta, se entrelaça, se contraponta, forma contrastes, reforços, reações, confirmações, como uma verdadeira chuva de imagens multicoloridas. E nesses rodamoinhos de elementos expressivos, si a ação parece vigorar, na verdade o que sobe a tona do interesse são as almas.

Mário de Andrade, como poucos na década de trinta, já atentava na composição dos textos sem descuidar do seu espírito, amorosamente despindo-os e recompondo-os, sem reduzi-los a cadáveres para dissecação (como faria a crítica positivista algumas décadas depois). Antecipa, vinte anos antes da publicação, a planta baixa de O espelho partido, quando Rebelo utilizaria de forma mais ostensiva aqueles recursos: entrelace de diálogo com descrição e narração, pluralidade de elementos de expressão em contraponto (reflexões do autor, pensamentos dos personagens, suas reações, seus sentimentos, seus cacoetes, seus traços físicos), frases curtas e nervosas entre períodos longos e lentos como adágios, revelando apurado senso rítmico da prosa. Simultaneísmo de tempo e de ambiente. Amor ao contraste que chegaria até à mistura de gêneros literários: poema em prosa, crítica literária, crônica do cotidiano, minicontos, reflexões sobre a existência, aforismos, documentos históricos.

Dessa fusão dos elementos mais diferentes nascem as “almas” dos personagens, como que flutuando a tona dos acontecimentos, numa verdadeira “psicologia em ação”. E é interessante notar a coincidência de visão entre Mário de Andrade e um jovem escritor francês que naquele mesmo ano — 1939 — escrevia um ensaio sobre um conceito fundamental da fenomenologia: a idéia de intencionalidade.

Era o Sartre anterior à psicanálise e ao marxismo, ainda marcado por Heidegger e Husserl. Nesse ensaio, recusava a noção duma consciência desligada do mundo exterior. Seria, antes de mais nada, um movimento de fuga para fora, “um deslizamento fora de si. Se por milagre entrásseis em uma consciência, seríeis arrastados por um turbilhão e lançados fora (...) pois a consciência não tem interior (...) Se a consciência tenta recuperar-se, se tenta enfim coincidir com ela própria, a quente, com as janelas fechadas, aniquila-se”.

Tudo, incluindo o sujeito, estaria “fora”, irremediavelmente fora, “entre os outros”. Enfim, “não é em nenhum refúgio que nos descobriremos: é na rua, na cidade, no meio da multidão, coisa entre as coisas, homem entre os homens”.

Mário de Andrade também entendia a “alma” como soma da exteriorização da fala, do pensamento, do sentimento — e no mundo da ação. Assim como as pessoas de carne e osso, esses “homens de papel” devem ser construídos “em ação”, no meio dos outros personagens que lhes delimitam o horizonte social e psicológico. Não existe uma subjetividade desligada do todo ou nele se apagando mas, antes de tudo, se afirmando enquanto dele depende.

Sujeitos presos em suas almas: assim são muitos personagens de Lúcio Cardoso. Sujeitos desaparecidos nas ruas: assim outros tantos de Jorge Amado. E essa terceira via de Marques Rebelo (nem a narrativa sem alma de certos romancista “sociais” da época, nem os textos só de alma de seus colegas católicos do Sudeste) põe a alma em ação, captada no seu “deslizamento fora de si”.

A ficção de Machado de Assis é o exemplo mais acabado dessa tendência: o conto “O espelho”, em que a alma e o uniforme do Alferes se confundem, ilustra-o de modo cabal. O “sociólogo” Lima Barreto (muito marcado pelo “psicólogo” Dostoiévski) conseguiu misturar alma e sociedade nas suas melhores obras. Raul Pompéia também, descontado o tributo que pagou à estética dos irmãos Goncourt.

Depois do Modernismo — com a linguagem devidamente saneada pela varredura anti-verborrágica —, aconteceria o mesmo com a literatura de um Ciro dos Anjos, de um Graciliano Ramos, de um Aníbal Machado, de um João Alphonsus. Mas nunca, ou só esporadicamente, com os textos de Otávio de Faria ou de Armando Fontes, contemporâneos de Rebelo e dele tão distantes na alma e na ação.

 

MARQUES REBELO
José Carlos Zamboni                                              Ensaio
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