RAÍZES NEO-SIMBOLISTAS

 

 

Nem só de Modernismo era feita a década de vinte no Brasil. Nem só de neoparnasianismo e de Coelho Neto. Alguns poetas e prosadores pós-simbolistas, que começaram a escrever na década anterior, continuariam pelos anos vinte afora; rotulados depois de “penumbristas”, suas obras se caracterizavam por uma franca rejeição do artificialismo parnasiano então vigente, sem no entanto aderirem aos vôos mais ousados dos “futuristas”.

Eram autores que preferiam situar seus contos e poemas numa ambiência mais de sombra que de luz, mais à noite que de dia, algumas vezes exagerando no uso da atmosfera de lusco-fusco, como meio de exprimir uma concepção de vida marcadamente desalentada. Álvaro Moreira, Guilherme de Almeida, Felipe de Oliveira, Ribeiro Couto, o primeiro Bandeira — são alguns nomes, entre outros, que bem ilustram essa tendência “crepuscular” da época; mais tarde, não hesitariam em se alinhar ao Modernismo, embora mais na teoria que na prática.

Na verdade, esse “penumbrismo” tinha em comum com o movimento modernista, apesar de diferenças notórias, pelo menos um traço: incomodava-os a impassibilidade parnasiana. Não deixavam de ser, a seu modo, tanto um como outro, manifestações neo-românticas em pleno século XX: o primeiro, pelo timbre decadentista, a sedução da sombra, do silêncio, do mistério; o segundo, no propósito de liberação incondicional das forças do inconsciente, rompendo com as velhas formas literárias.

“Penumbrismo” pós-simbolista e Modernismo compõe a perspectiva literária ideal para a compreensão da arte rebeliana, depois de Machado de Assis. Aliás, Rebelo estrearia na literatura como poeta, e poeta não indiferente a esse clima de recato e silêncio, ainda timidamente modernista. Aos dezessete anos, em 1924, publicou os primeiros trabalhos literários na revista Para Todos, dirigida pelo “penumbrista” Álvaro Moreira, onde voltaria com poemas em 1927, entre eles o “Rua indolente”, título de livro planejado e que enfim não saiu.

“Rua indolente” tem pelo menos o mérito de antecipar o ambiente preferido e definitivo do futuro prosador:

 

Da minha janeta, convalescente,

eu vejo a minha rua,

a minha rua indolente de subúrbio,

adormecer ao sol do meio dia.

Quase silêncio.

Roupas a secar na corda.

O capim, muito verde, cresce na sarjeta

de grandes pedras desiguais.

Um velho tamarineiro enche duma sombra

malandra o botequim da esquina.

Passa um mascate.

Outros pregões... Os pregões de todos os dias

de vozes cansadas e arrastadas

que ficam muito no ar...

Há um longínquo bater de roupas.

Nas janelas azúis do teu branco chalé,

do teu chalé imperial,

os cortinados de cassa

parecem me chamar...

E, de repente,

o teu piano, meio desafinado, enche

o quase silêncio da minha rua indolente,

com uma velha valsa sentimental

que não se toca mais.

 

Descritivismo do cotidiano, com toques simbolistas e pre-modernistas, lembra a leveza das crônicas de Álvaro Moreira que, mesmo tendo participado do movimento modernista, deve sua melhor produção à fase pós-simbolista, na opinião de Rebelo, que assim julga a obra do amigo: “Tem a prosa toda epigramática, singela, sensível e fluente e foi um mestre da pequena crônica”.

“Rua indolente” lembra também a prosa suburbana e manchada de sombras de Lima Barreto, o lirismo doméstico de Manuel Bandeira. Lembra, sobretudo, o sentimentalismo discreto de Ribeiro Couto, cuja obra não gesticula nem fala alto... Poesia e prosa em que predominam os meios-tons, um intimismo cheio de pudor, como uma conversa mansa e velada num “jardim de confiências” (nome do seu primeiro livro de poemas).

Rebelo teria apreciado, em Ribeiro Couto, a concisão da prosa, o coloquialismo vigiado, os acontecimentos do dia-a-dia, suburbano, vividos pelos mesmos funcionários públicos, escriturários, vendedores ambulantes, donas de casa, mocinhas casamenteiras, boêmios, prostitutas.

Coloca-o entre os escritores que o impressionaram em certa época, como contaria ao jornalista Paulo Francis. Dele poderia dizer o mesmo que disse de Eça de Queirós: “Hoje construímos melhor do que ele, mas houve época em que era um achado”.

No terceiro volume de O espelho partido, aparece um escritor, não nomeado, que tem tudo para ser Ribeiro Couto: “cada vez mais calvo”, “com as lentes cada vez mais espessas”( o autor de Largo da matriz nunca teve muito cabelo, morreria cego), e passando no narrador “animadoras descomposturas”. “Como se eu não tivesse me tornado adulto e livbre dono dos meus passos literários”, reagiria Rebelo.

Ribeiro Couto aconselha-o a continuar no caminho de Oscarina: “Aquilo sim! Que saboroso era!” Rebelo gostaria de ter respondido: “Por que você não continua no caminho da Casa do girassol vermelho? Aquilo sim é que me comovia. Mas não respondo, destorço a conversa. Mais do que amizade, respeito é respeito, gratidão é gratidão” (o título acima, à Ribeiro Couto, foi criado por Rebelo).

Ribeiro Couto confessou, em 1931, quando saiu publicado Oscarina, que foi

 

dos primeiros admiradores da sua prosa, rica de observações do quotidiano. O conto intitulado Oscarina ( que dá o título ao livro à aparecer) saiu há cerca de quatro anos na Feira Literária de São Paulo; desde logo tive a alegria de sentir que, na minha geração, ou antes, na geração seguinte à minha, tão copiosa em poetas, a herança de Machado de Assis, Raul Pompéia, de Lima Barreto, não se perdera. Na maneira incisiva e calma, na atitude meio zombeteira, meio piedosa, a posição espiritual de Marques Rebelo é a de um continuador da tradiçào desses mestres admiráveis da novela urbana, homens para quem a vida citadina de todos os dias existe — a vida humilde, burguesa, monótona, difícil, de toda gente e de todos nós.

 

A novela Oscarina, publicada em 1927 na Feira Ilustrada, não é a mesma que aparecia em livro na edição do peta Schmidt. Declarou Rebelo:

 

Depois que saiu, fiquei desconsolado — achei-a uma porcaria! E modifiquei-a toda. Lembro-me ter descoberto que ela acabava antes uma página do ponto final. Inverti as duas últimas páginas e tudo ficou direitinho - tais são os mistérios da criação. Fato engraçado é que o caro Ribeiro Couto achava melhor a versão inicial...

 

Em Correio europeu, Rebelo se refere a uma troca de correspondência com o contista de O crime do estudante Batista, que viveu muitos anos fora do Brasil como funcionário do Itamarati (morreria, quase cego, em Paris, antes de voltar ao Brasil e gozar da aposentadoria como embaixador). Foi do velho mestre “penumbrista” que recebeu, da Holanda,

 

aquela carta triste e desiludida, escrita por mão branca e trêmula: “nada podemos contra o destino”.

 

Pessimismo que resume bem o espírito dessa vertente neo-simbolista a que se ligaria Marques Rebelo no início de sua carreira, dela conservando alguns aspectos facilmente observáveis em sua obra.

Raul de Leoni foi outro neo-simbolista (alguns o preferem neo-parnasiano) que Rebelo sempre teve em alta estima. De sua Luz mediterrânea tirou dois versos para epígrafe do tomo inicial de O espelho partido:

 

“... Era uma alma fácil e macia,

claro e sereno espelho matinal!”

 

Escrevendo à margem do modernismo, mas de algum modo ligado a esse movimento de renovação, foi poeta de obra pouco volumosa — morreria, tuberculoso, aos trinta e um anos. Contudo, “o pouco que deixou garante-lhe um lugar de primeiro plano na poesia brasileira”.

Em Cenas da vida brasileira, escreve Rebelo sobre Leoni essa pequena elegia (no capítulo “Itaipava”, cidade fluminense em que morre o poeta):

 

Ia andando lento, para aqui, para ali, pela pista de asfalto. “A noite era afetuosa e mansa”. As casas são esparsas e dormidas. O cigarro queima, passa o carro de faróis abertos, depois volta o clarão lunar. Vem um rumor de água escondida — bica escorrendo — cantam os grilos e “os pinheiros pensavam coisas longas, diluindo um cheiro acre de resinas”.

Penso em Raul, Raul de Leoni, poeta meu, que ali morrera, entre a frágua e o sonho.

 

Outros dois neo-simbolistas que admirou (ambos ligados a Álvaro Moreira): Eduardo Guimarães, que “representou, aliás, condignamente, a corrente a que se filiou” e Felipe de Oliveira, em cuja obra Lanterna Verde, já do período modernista, “se observa uma tentativa de disciplinamento dos exageros da corrente”.

 

MARQUES REBELO
José Carlos Zamboni                                              Ensaio
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