PASSEIO NO PURGATÓRIO

 

Je n'imaginais pas d'oeuvre plus admirable

 que le drame de la generation d'une oeuvre.

                                          

                                                                               Paul Valèry

 

Desmistificadores  por  excelência,  responsáveis  por uma literatura auto-reflexiva — criam e ao mesmo tempo investigam os segredos da criação—, há um time de escritores que não admitem espontaneísmo no jogo literário, ao mesmo tempo em que lutam contra os perigos da inteligência esterilizante, fazendo uma espécie de literatura da literatura, como Hörderlin, segundo Heidegger, escrevia a poesia da poesia, poesia sobre a essência da poesia.

Rebelo pertencia a essa família pouco numerosa. Sem ter exercido a crítica literária, foi sempre leitor atento de si mesmo e dos outros, vivendo e pensando em literatura, o que transparece nitidamente em O espelho partido, romance ensaístico em que cultiva sem escrúpulos essa irreprimível tendência de sua personalidade intelectual: investigar o porquê da criação. E isso sem abdicar do ato criador, sabendo misturar sucessiva, simultânea e entrelaçadamente essas duas atividades mentais que só aparentemente se repelem.

Esse “diabo de língua solta” (como o definiu Drummond) era excessivamente cuidadoso quando se tratava de palavra escrita e não gostava de perder as rédeas da criação; ao contrário, apertava mais que podia a barrigueira do indócil animal. Sua obsessão da reescrita (“De cada página que publico, faço de quatro a oito versos”) tornava-o à Flaubert um perseguidor quase doentio da forma absoluta, como se houvesse um topos uranos da literatura e lá se encontrassem os melhores padrões de nossas páginas imperfeitas, arquétipos fugidios sempre retardando a aterrissagem.

Diferente da ourivesaria afrescalhada dos parnasianos e neoparnasianos, tratava-se aqui de uma lapidação que desprezava o brilho acidental da epiderme e procurava chegar ao ventre do diamante. Essa obsessão da reescrita combina com os anos trinta, depois de esgotada a pirotecnia carnavalesca da primeira fase modernista e iniciado, aqui e ali, um certo refluxo construcionista, de preocupação com a arquitetura literária, espécie de “meia volta, volver!” no rumo da obra em si e seus mistérios de construção, em seguida ao impulso neo-romântico da década anterior.

Esse topos uranos da obra escrita, que o ateu Rebelo identificava não acima, mas noturna e expiatoriamente abaixo, só era acessível depois do “ofício torturante” da reescrita:

 

Arqueólogo noturno, faço as minhas pacientes escavações, pena na mão qual picareta rombuda de tanta tentativa (...) Ofício torturante (...) exercendo-o com a severa paixão de um sacerdócio (...) a cada passo mais tempo e esforço me consome o ingrato exercício monacal, como se o cérebro não soubesse coar as idéias, nem filtrar as memórias, como se as palavras esgotadas, inválidas, recusassem a me obedecer e no tinteiro a pena só encontrasse borra. Mas, em contrapartida, constitui uma necessidade—necessidade, ânsia, sorvedoiro—a que me torno mais constante.

 

Se essa obsessão da reescrita não deixava de ter em Rebelo, como em todo rescritor, um aspecto neurótico (com “idéias obsidiantes, compulsão a realizar atos indesejáveis, luta contra estes pensamentos e estas tendências, rito exconjuratório, um modo de pensar caracterizado nomeadamente pela ruminação mental, a dúvida, os escrúpulos, e que leva a inibições   do   pensamento   e   da ação”,  conforme  uma  descrição da obsessão neurótica num dicionário de psicologia), pode também resultar em legítimas criações literárias, que nem de longe deixam supor o drama de sua construção.

Há, em O espelho partido, dezenas de notas e reflexões sobre essa “necessidade, ânsia, sorvedoiro” da reescrita, reunidas a seguir sem nenhuma intenção de deitar o escrito no divã freudiano ou contribuir para um diagnóstico de comportamento obsessivo. São, antes, testemunhos para a compreensão do escritor Rebelo e de sua elaboradíssima arte literária, construída com lucidez e disciplina bem pouco brasileiras. Não é outro o propósito dessa coletânea.

 

 

1. E palavras! Torvelinho das palavras para a escolha da expressão exata, sublime ou vulgar. Tem acento? Não tem acento? E consulto o dicionário, presa de indecisões ortográficas, lamacento e pegajoso terreno que pisarei até a morte, atolando-me a cada passo.

 

2. Sim, estou sempre escrevendo, mentalmente escrevendo, não um, mas cem livros; transformar, porém, o arquitetado em matéria escrita é para mim extremamente difícil, penoso, duro como carregar pedras. Por mais que me esforce, que esprema o cérebro, as coisas caem da caneta com a mirrada parcimônia dos conta-gotas.

 

3. A alguém, jovem e interessado, que se queixara da dificuldade de escrever, Collete teria dito que se regozijasse, que esta dificuldade era o sintomático sinal de um autêntico escritor. Embora não seja mais jovem, tudo pode ser consolo!

 

4. O grandioso me inibe e enaltecer é difícil.

 

5. Tentei começar um novo romance. As primeiras páginas saíram num ímpeto, oito páginas sem interpolações nem emendas. Ao relê-las rasguei-as.

 

6. Começa-se com uma idéia, reminiscências nos torcem, acabamos por nos perder. Retornemos ao caminho: continuemos enxutos. Talvez que quando não tenhamos nada mais para dizer, a nossa vaidade nos empurre para as adiposidades das metáforas, das antíteses, das inversões para o luxo vocabular, para a invenção de palavras como se os dicionários não contivessem riqueza bastante para a nossa imaginação.

 

7. Também um pedaço de romance andou para a frente (...) arrastado, contrapontado, fragmentado, suspenso no espaço como galáxia sentimental, que precisa de muito fortificante ainda para ter o esqueleto firme, de muitas doses de reconstituintes para enrijar a musculatura bamba. Mas vai. E se não for, louve-se a intenção e a paciência, esta também um mérito literário.

 

8. Iniciei efetivamente o novo romance. Quatro páginas, apenas, que refiz várias vezes e que passadas a máquina ficarão reduzidas talvez a menos de duas folhas. Não há ímpeto, há segurança e controle.

 

9. Por que razão, me pergunto, como já o fiz tantas vezes, não consigo escrever sem cortar, acrescentar, retocar, inverter, remexer, incapaz dum fluxo normal, retilíneo de pensamento? Por que as lembranças me acodem picadas, desconexas, e a clareza e a lógica que lhes procuro dar são fruto de tanto esforço e paciência?

 

10. Não é método, processo, técnica. É a natureza irresistível ao método e à técnica. Ir construindo os personagens, e com eles a ação e o meio, pelo acréscimo de ínfimos cristais, impalpáveis às vezes.

 

11. Nunca poderá ser admissível um livro escrito, às carreiras, para um concurso literário. Tenho que reescrevê-lo para atenuar esta nódoa, se houver o ensejo de uma segunda edição.

 

12. Os personagens é que me levam—chegamos a isto. E vou por um caminho escuro, serpenteante, beirando abismos. Tenho que ir devagar, às apalpadelas, para não me despencar e arrastá-los na queda. Um que outro lugar-comum pode servir de amparo, de cerca protetora. Nem é possível excluir os truísmos dos romances.

 

13. Escrever é vencer dificuldades (...) A mão é fraca, corta, substitui, modifica, pára a cada linha, angustiosamente, o talhe variando como um desafio aos grafólogos.

 

14. Cada noite uma linha. Cada linha um pouco da nossa miséria.

 

15. ...tentando adiantar o romance que se arrasta para frente e para trás como os carangueijos...

 

16. Três horas para escrever uma linha. Acabar não escrevendo nada.

 

17. Sou o leitor de mim mesmo. Isto é importante.

                   

18. Como é que se pode trabalhar firme num romance? Há tarefas para as quais não basta ter firmeza, disciplina, força de vontade. Apenas paciência.

 

19. Inventar, não! O ideal é obter-se um máximo de realidade num máximo de adaptação.

 

20. O que se puder escrever em duas linhas, nunca escrever em três.

 

21. Propôs-me (Prudente de Morais, neto) as questões da composição, que tanto me preocuparam, a historicidade do método, a latitude da gramática, como instrumento de precisão que o escritor naaa podia deixar de manejar, até mesmo  para  contrariar  certos  dogmas  consagrados, a construção do estilo, cristalizando-se entre duas forças  poderosas, a do tempo, sem modismos, e a cada um, sem cacoetes.22. ...entrava pela madrugada dando retoques nos originais de A estrela...

 

23. A estrela está composta (...) mas falta-lhe uma última demão. É mister relê-la, sofrer em cima de cada linha, mondar, enxertar, enxugar os transbordamentos, polir, repolir, tarefa severa e atenta que tanto pode durar um mês quanto um ano (...) Cada livro que faço vai me dando mais trabalho.

 

24. Às vezes penso que devo todos os meus erros literários aos clássicos, ou chamados clássicos, ou pseudo-clássicos, erros, defeitos, formalismos, limitações e, ainda por cima, uma inelutável tendência para a reação fria, como se não tivesse ficado liberto deles, marmóreas potestades, como se continuassem a correr dentro de mim qual rio subterrâneo...

 

25. Hosana! Podada e penteada, A estrela está pronta! Foram perto de dois meses de refrega contra o manuscrito e da derradeira lixa somente as epígrafes escaparam.

 

26. Ia levar A estrela ao editor, não satisfeito, porém, fiquei catando miudezas, vírgulas mal colocadas, reticências tolas, esdruxularias—piolhos do estilo.

 

27. E continuo de ancinho, arrancando tiriricas e matapastos.

 

28. ...que pode, em última análise, haver de louvável e amenizante nestas resmas de A estrela, que me consumiram quatro anos de esforço e sacrifício, sacrifício de tempo e de sonhos, de sono e de prazeres, de amores e de conquistas sociais?

 

29. Um escritor no Brasil tem que ser também revisor. A indústria editorial engatinha ainda, a apresentação dos volumes é de neófitos, mas neófitos sem nenhuma intuição artística, não existe o técnico gráfico, o especialista de edições.

 

30. ...estou suando diante da pilha de provas de A estrela.

 

31. Duvidar sempre. A arte só caminha pela dúvida.

 

32. ...não é possível se escrever um grande romance sem uma boa dose de mau gosto e até de muitíssimo mau gosto. O requinte, a excessiva, quase feminil sensibilidade, perturba a grandeza, a amplidão, a masculinidade do panorama. Não é possível vestir uma águia com as penas delicadas do colibri.

 

33. —Você não vai escrever hoje?—pergunta Luísa.

      —Vou.

   Espreguicei-me, levantei-me da cama, sentei-me à mesa, abri o diário e, depois de uma hora, escrevi isto.

 

34. Releio páginas passadas e dou com um alhures. Corto-o como se corta uma verruga. Homem, vigia o teu estilo! O estilo é o homem.

 

35. E a minha pena se torna pesada e estéril, incapaz de iniciar uma coisa nova, parando exangue às primeiras desconjuntadas linhas de cada tentativa, como se tudo que pudesse dizer já tivesse escrito.

 

36. A vida sem o gasto dos superlativos pode parecer seca, egoísta e antipática, mas tem uma grandeza muito mais superlativa.

 

37. Não basta ter o que contar, é capital saber como contá-lo. A beleza é o único veículo permanente da verdade literária. E a falange que, desde 1930, corajosamente invadiu e dominou a área das letras, embora com o merecimento de descobrir afinal o Brasil aos brasileiros, como que fez tábula rasa do estilo e quer fazer crer que a propriedade e o polimento sejam recursos de quem nada tem para dizer, confundindo simplicidade com pauperismo.

 

38. É preciso escrever bem. Os termos bíblicos não vingam para a composição literária—não há tempo de escrever bem e tempo de não escrever bem. Todavia, é difícil explicar o que significa escrever bem, quando as forças telúricas se soltam e o êxito empolga. E desse antagonismo vem se estabelecendo muita inimizade literária. Não há vez para o equilíbrio—é o louvor ou a diatribe.

 

39. Ontem naaa escrevi. Faltou luz exatamente quando me dispunha a fazê-lo, e a cada passo mais tempo e esforço me consome o ingrato exercício monacal, como se o cérebro naaa soubesse coar as idéias, nem filtrar as memórias, como se as palavras esgotadas, inválidas, recusassem a me obedecer e no tinteiro a pena só encontrasse borra. Mas, em contrapartida, contitui uma necessidade—necessidade, ânsia, abandono, sorvedoiro—a que me torno mais constante, e levantei-me—que seca!—e colei a cara à vidraça, perscrutei a rua de breu.

 

40. Quem arma o enredo com demasiada facilidade denuncia—gato escondido com o rabo de fora—que não é romancista.

 

41. Escrever (...) se esforçando severa e ingentemente para não se confundir com o jornalista, ou pior, com o repórter.

 

42. E larguemos a caneta e tomemos um comprimido, que a cabeça dói, lateja mais do que dói.

 

43. Uma proporção justa: cem páginas lidas dos outros para uma linha nossa escrita.

 

44. Como te explicar certos estados de inação, que necessitariam laudas e laudas, qual autópsia psíquica, quando o próprio estado me tolhe?

 

45. O bom, o ideal seria que nunca tivesse escrito nada, pois já me assaltam outras dúvidas antes não articuladas. Ler as ilusões alheias é que é sabedoria.

 

46. Euloro Filho declara à reportagem literária que escreveu seu último romance em um mês—”compor para quem tem paciência, criar para quem tem força”. Inocente Euloro!

 

47. E inconformado me encontro diante do meu caminho literário, só que não me denuncio, não me queixo nem pública nem intimamente, busco forças mergulhando nas minhas páginas da madrugada, refrigero-me com alguns oásis no deserto do noticiarismo, espero, espero...

 

48. Releio o que escrevi ontem e não me escapou aquela “polifonia de buzinas e motores”, que soará mal ao maestro Magalhães Braga, inimigo de melodias vulgares. Não me escapou, mas naaa a corto como calosidade espúria e indigna de  um  aluno de  estilística. A expurgar, teria que não me restringir à desafinada imagem musical. Há outras desafinações menos evidentes e nada atonais, no diálogo que esquematizei, e que não passarão em branco a um ouvido severo. Mas me sinto sem forças para tentá-lo. Que fique, portanto, a má composição como isca para os pulverizantes críticos musicais—é um risco que se corre.

 

49. ...a Arte é um filtro.

 

50. Como de palavra em palavra, vai dando substância e forma aos seus escritos.

 

51. Arqueólogo noturno, faço as minhas pacientes escavações, pena na maaa qual picareta rombuda de tanta tentativa.

 

52. Entendo do meu ofício—escrever!—exercendo-o com a severa paixão de um sacerdócio (...) Ofício torturante e mal remunerado, escravizador dos dias e das noites, pois quando a caneta não me tenta a mente porfia, incessante, que escrever é coisa mental, eterno e traiçoeiro atoleiro para cada passo, inglório afó, de entendimento escassamente discernido no aluvião da concorrência, entendo do meu ofício, em segredo vos digo, confissão impossível de se arrancar de minha boca mortal, e espontânea agora e aqui por que resvalante razão não saberia explicar!

 

53. Escrever é trabalho de grilheta.

 

54. De cada página que publico, faço de quatro a oito versões.

 

55. Posto que não pudesse vivar da pena, ou para tentá-lo teria que descer demais, cortejando público e editores, aceitando um jornalismo escravizante e dissolvente, para não sufocar ou atrofiar a vocação, optei por uma vida modesta, modestíssima, inversa do carreirismo—e note-se que a literatura entre nós funcionou muito como brilhante muleta para a ascensão social, econômica e política do cidadão semi-alfabetizado. Entreguei-me a um ascetismo de empregos modestos, mas relativamente folgados, que facultassem o maior tempo possível para o ócio de pensar e repensar, na proporção  de  vinte livros lidos para vinte linhas escritas, linhas que se reduziam a duas publicáveis, aliás uma excelente média. E não me arrependi jamais da opção—na vida só aspirei a ser escritor.

Compreenda-se que o exercício da verdadeira literatura é, antes de tudo, um ato de coragem. E além da coragem para múltiplos sacrifícios, precisamos, especialmente, de coragem para cortar. E cortei, corto, cortarei sem avareza e arrependimentos, como se cortasse a obra alheia—e dá-se que se vê sempre melhor o mal alheio que o nosso. Diminui a bagagem vendável, mas diminui também o campo do erro, do excesso, do supérfluo. E com tal sistema podador acabamos por vencer a torpe facilidade, que infelicita tantos valores ponderáveis. E condicionada decorrência, porém, necessito de tempo na minha frente para resolver as paradas literárias, mesmo as aparentemente simples, pois nada é simples nos domínios da criação—ó extenuante ócio! Quanta vez me ofereceram trabalho com pagamento atraente —afinal o dinheiro é assunto cobiçante e útil—digamos uma ou duas páginas de colaboração urgente. E sempre combinei:

—Pelo menos uma semana, meu amigo.

Felizmente tenho amigos (...) E os prazos eram concedidos. Menos uma vez. Certo publicitário queria um conto de Natal, cinco páginas no máximo, em quatro dias. Estávamos em novembro.

—Preciso de um mês, pelo menos. Serve?

Não serviu—fiquei sem os quatrocentos mil cruzeiros.

 

56. Encouraçado com mil exigências natas e adquiridas, cometi uma falta clamorosa — fabriquei um romance para concorrer a um prêmio. Ganhá-lo não me comoveu. E quando o livro saiu, me desesperei. Por quase dez anos refiz o livro para a segunda edição e, publicado, o desespero se renova. E outro largo tempo mexendo em cada página, com uma paciência já doentia, e lá apareceu a terceira edição, ainda insatisfatória — o mal vem do ovo.

 

57. Levei quatro anos capinando as oitenta e oito páginas iniciais de A estrela sobe.

 

 

MARQUES REBELO
José Carlos Zamboni                                              Ensaio
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