À SOMBRA DA ESTANTE OCIDENTAL

 

Quando amigos lhe transmitiam o quanto determinada pessoa admirava O homem sem qualidades e quão feliz ficaria em conhecê-lo, a primeira pergunta de Musil era: “Quem mais ele admira?”

 

                                     Elias Canetti

 

 

Se Rebelo nunca fez um balanço sistemático de suas leituras estrangeiras, deixou inúmeras pistas nas entrevista e em O espelho partido. Não são juízos serenos de crítico, antes parti pris apaixonado de criador, algumas vezes simples menções; é possível, contudo, traçar o perfil do escritor à sombra da estante estrangeira, nesse esboço de biografia do leitor que ele também foi: “Escrever, fatiga. Descansemos lendo o que os outros escrevem. Mas escolhamos estes outros”.

Muitos nomes da literatura ocidental fizeram parte de sua estante de cabeceira ou, de algum modo, tocaram na sensibilidade e na inteligência desse “leitor voraz” que avançava pelas madrugadas, cigarro atrás de cigarro, numa verdadeira sensualidade da leitura, como diria Augusto Meyer.

Esse “vício impune” começou muito cedo. Em 1911 (Rebelo tinha quatro anos), a família sai do Rio e vai morar em Barbacena, Minas Gerais, onde faz o curso primário na escola de Dona Rosinha Ede (que mais tarde transformaria em personagem de conto). Entrou para a escola praticamente alfabetizado — e por conta própria — com o auxílio semanal da revista Tico-Tico e diário do Jornal do Brasil.

Rápido passou ao livro, afundando-se “pelo mundo maravilhoso da carochinha, lastro incorruptível de sonho e imaginação — debaixo duma pedra do jardim poderia encontrar um tesouro, com uma varinha de condão poderia transformar minha tia em sapo!”

Tinha nove anos quando leu a obra decisiva desse período. “A professora — lembra Rebelo — deu-nos o Coração, de Amicis, como novo livro de leitura e cópia (...) Henrique, Derossi, Nelli, Garrone, Crossi, Stardi, Garoffi e Precossi passaram a ser os meus irmãos”. O escritor guardaria para sempre aquele exemplar, com sua assinatura em “gorda letra horizontal”, datada de 6 de março de 1916. Traduzido por João Ribeiro, “colou para sempre — é responsável por todo o sentimentalismo que minha pena desfila, apesar da vigilância”, confessaria o escritor mais tarde.

Quando de passagem pela Dinamarca, no começo dos anos cinquenta, não deixou de visitar a cidade de Odessa, onde nasceu outro escritor de sua infância: Hans Christian Andersen. Anotou no seu livro de viagem: “Então uma estrela de brilho nunca visto pousou sobre uma casinha branca da Frônia, que hoje é museu. E ali nasceu Andersen. E lembre-me das palavras da borboleta do conto: 'Não se trata somente de viver; é preciso também liberdade, um raio de sol e uma florzinha'“.

Outra escritora nórdica, a sueca Selma Lagerlof — que gozava de enorme popularidade entre crianças e adolescentes da bella époque — também marcou muito o escritor carioca que, pelas mãos de Nils Holgerson, partiria em “viagem maravilhosa” pela Suécia.

Esse contato literário de juventude com a paisagem da Europa do Norte foi decisivo para a simpatia do Rebelo adulto pelas literaturas nórdicas. Inolvidável dama de olhos azúis — assim chamaria a Suécia, mais tarde, nos seus dois livros de viagem, Correio Europeu e Cortina de ferro.

Entre as obras que, em várias épocas, serviram de marcos em sua vida de leitor, estão algumas de autores nórdicos. Ibsen, com sua Casa de bonecas. Strindberg e A senhorita Júlia. O Diário de um sedutor, do filósofo e teólogo Kierkgaard. A obra de Sillampaa, para a qual tinha um adjetivo de que não abusava muito: “extraordinária”. Knut Hamsun, o norueguês que escreveu A fome, Um vagabundo toca em surdina, Pan e que Rebelo Relutava em identificar com o posterior adepto da ferocidade nazista, desculpando-o pela idade (oitenta anos), “idade em que o miolo pode estar mole”.

Mas à frente de todos estava Jens Peter Jacobsen, com seu romance Niels Lyhne, que Rebelo incluiria entre aquelas poucas que provavelmente levaria para uma ilha: a Bíblia, o Journal de Jules Renard, o “segundo” Machado. Quando passou pela cidade de Jacobsen, na Dinamarca, anotou, telegráfico e contundente: “E um último pensamento para Jens Peter Jacobsen”.

Mas foi pela porta da literatura francesa que Rebelo entrou no mundo das letras. Numa página admirável do Correio europeu (verdadeiro ensaio de sociologia da cultura sem jargão especializado), Rebelo mostra como, no começo do século, a vida brasileira era monopolizada pela presença da França. Dos jornais às revistas, dos livros às bebidas, das roupas aos brinquedos, dos galicismos à arquitetura, dos doces aos remédios, passando pelos pardais, pelos nomes das lojas e dos cinemas, tudo isso podia “vir pelo correio, para os mais ronceiros rincões, diretamente de Paris, a um simples pedido, sem complicações de licenças prévias, divisas e cambiais”.

Marques Rebelo viveu sua infância nesse Brasil que se deliciava “com os romances de Feuillet, inebriando-se com as poesias de Paul Fort, embalando-se com as melodias de Chaminade.” Foi na estante paterna, com duzentos e poucos volumes, que o escritor adolescente leu Dumas, Bourget, Daudet, Balzac, Vitor Hugo, Anatole, Buffon, além de Charles Darwin na traduçào francesa.

As editoras para cá mandavam suas publicações com facilidade, inundando “nossos balcões com variado e barato sortimento”. Sua biblioteca francesa foi aumentando, de Moliére a Beaumarchais, de Rabelais a Voltaire, de Renan a Bergson, passando por Stendhal (sobretudo o de De l'amour), o Flaubert de Madame Bovary e Educação sentimental, Proust, Martin du Gard, Gide, Montherlant, Radiguet e a poesia de Valery (cujo Cemitério marinho chamou de “pélago hermético e escuro”).

Certa vez, numa entrevista, o poeta Paulo Mendes Campos lhe perguntou se havia “algum autor fundamental em sua formação”. Rebelo não hesitou: “Jules Renard”, respondeu.

Num trecho de O espelho partido, há o seguinte programa de leituras para o verão de 1936: “ ... reler o Diário de Renard e Madame Bovary, como se toma um reconstituinte; reler Proust é lição perigosa (...) mas que tem que ser enfrentada da primeira a última linha, repisando muitas delas”.

Entre os ingleses, depois do obrigatório Shakespeare “declamado irresistivelmente”, Rebelo destacou Fielding, Sterne, George Eliot, Thackerey, Thomas Hardy (que recomendou ao amigo Herberto Sales como modelo de concisão, pois “no seu romance Judas, o obscuro, contava o suicídio — dramaticíssimo — de uma personagem em três linhas”). Joseph Conrad, Georg Moore (de quem aproveitou uma frase como epígrafe de O espelho partido), John Galsworthy, Virgínia Woor, Catharine Mansfield, James Joyce (não o de Ulysses, mas o de Retrato do artista quando jovem e sobretudo dos contos de Dublinenses).

Das literaturas de língua alemã, comparecem os poetas Novalis, Lenau, Holderlin, Stefen George e Rilke. Goethe, em poema e prosa, surge com destaque: “... falar de Wilhelm Meister é falar dos choques dos vinte anos. O que representou para mim o encontro com o aprendiz, 'a finalidade da vida é a própria vida', resumirei — uma exaltação de diapasões burgueses, estremecimentos que ainda hoje — 'Luz! ainda mais luz! — apesar de tudo, me sacodem e retesam”.

Dos prosadores, marcaram-lhe o Kleist de Miguel Kolhaas, o Artur Schnitzler de Fraulein Else, Wasserman, Kafka, de quem traduziu O processo e A Metamorfose. Thomas Mann de José e seus irmãos, “bíblica correnteza” contra a qual Rebelo “procurava desesperadamente nadar, mas que me envolve, me aniquila, me atira inerme em praias apocalípticas”. O “desempenado anão e corcunda Licheenberg”, para quem “um dia será tão ridículo crer em Deus como hoje acreditar em fantasmas”. É outra presença marcante, ao lado do Herman Hesse de Peter Comenzind.

Se Rebelo nasceu e viveu sob a predominância do gosto francês, experimentaria bem a transição para outra tutela cultural: a norte-americana. Viu os brasileiros trocarem “o sorvete de coco pelo sundae, o caldo de cana pelo ice-cream, soda, o café-com-leite pelo milk-shake, o guaraná ou mate gelado pela Coca-cola, viu as primeiras bocas brasileiras mascando chiclete, dizendo OK em vez de está bem, além de hobby, trailer, short, spot-light ...

Mas apesar de certo zelo pela pureza vernacular, herança dos escrúpulos linguísticos do pai e das aulas do filólogo Mário Barreto, o autor de A estrela sobe nunca foi xenófobo. O gosto pela mistura sempre venceu os pruridos conservadores, abrindo-o para a assimilação do que havia de importante lá fora para sua formação literária.

Foi assim que nasceu a admiração pela literatura norte-americana, que estaria expressando uma realidade nova. Chegou a frequentar um curso de extensão universitária, na Universidade do Brasil, sobre Literatura Norte-Americana, concluído com uma tese sobre o contista Bret Hart, em 1945.

Para Rebelo, “os novos escritores americanos, pioneiros de sendas nas quais os Adonias não acreditam, negam, fazem pouco caso, com uma cegueira entre imbecil e irritante, (...) terminarão em larga estrada real, de internacional concorrência, para opróbrio dos que os negaram”.

Na nova literatura norte-americana, o escritor carioca identifica algumas obras que qualifica como “modestas obras-primas”, paradoxo que destrinça num trecho de O espelho partido que vale a pena transcrever:

 

É maravilhoso que, na carta celeste literária, não nos venha a luz apenasmente das gigantescas, esplendorosas estrelas. Há uma imensa constelação de obras-primas de segunda, terceira e até de quarta grandeza, de que jamais  nos  olvidaremos, assim como algumas humildes criaturas, um mata-mosquitos, um gari, um lavador de pratos, podem nos dar inesquecíveis sensações do humano, e como certas flores de beira de estrada, pequenas, recônditas, sem nome, colhidas por Luísa e Catarina nas nossas andanças montanhesas, e murchas minutos depois, podem nos levar, com as suas corolas, à fixação de todo o cosmo floral.

 

Entre essas “modestas obras-primas”, estavam Sem cama própria, de Val Lewton, Katrina, de Sally Salminen, Grito de mãe, de Helen Grace Carlisle, “sofrido como um romance de Dreiser, com o truque emotivo de evitar a pontuação, experiência que nos tenta”, ajunta Rebelo. Outra obra que se enquadraria na categoria acima é As vinhas da ira, de Steimbeck, “escritor de somenos importância” mas que “tem a seu favor a trágica rusticidade dos personagens que põe em ação, envolvidos pela morte, pela violência, pela loucura, mas dulcificados muita vez por um halo místico”.

De Babbit, de Sinclair Lewis, diz ser “importante, apesar do êxito, apesar do insistente humorismo que carrega em todas as passagens”. Thomas Wolfe “é um atormentado perseguidor de imagens proustianas, temperadas habilmente com uma revivescente ternura dickensiana”. O'Neil é “luz original na cansada ribalta” (noutra nota, faz referência a Desire under the Elms desse dramaturgo). Acompanhou a trilogia USA, de John dos Passos, outra possível fonte de influências de O espelho partido.

Do romancista de Sartoris e Luz de agosto, diz ser o autor dum “retrato um tanto ectoplásmico de um mundo de crueldade”. Apesar disso, a prosa de Faulkner — reconhece Rebelo — “me atrai e tonteia, me envolve e me expulsa”. Mais serena é a relação com a obra de Catherine Anne Porter; “Não será obra profunda, diria o escafandrista de tigelas Adonias Ferraz (Cornélio Pena) se o lesse, mas, tão bem escrito, sacudiu muita fibra recôndita”.

Outros prosadores norte-americanos que frequentavam a estante de cabeceira de Marques Rebelo: Henry James, Scott Fitzgerald, Willa Cather, Robert Penn Warren, Stephen Crane, Ben Hecht, Ring Lardner, Thorton Wilder.

Na poesia, além de Ezra Pound e Williams Carlos Williams (“manso como um regato”), há Edgar Lee Masters, de quem cita o belo poema de “ubi sunt”: “Wher are Ella, Kate, Mag, and Edith, the tender heart, the simple soul, the loud, the proud, the happy one? — All, all, are sleeping on the hill ...”, que Rebelo faz ecoar em várias passagens de sua obra, especialmente em O espelho partido.

Outras literaturas comparecem timidamente nessa estante de cabeceira do escritor carioca. Da italiana, além de Dante, aparecem Tasso (de quem não gostava muito mas que lhe emprestou um verso — “Perduto é tuto il tempo que in amor non se spende” — que carregaria como um ex-libris vida afora), Bocaccio, Pirandello. Sem esquecer Amicis de Cuore, a grande leitura da infância.

Cervantes, São João da Cruz e Camilo José Cela são as simpatias espanholas: os únicos três nomes citados da literatura de Azorin e Antonio Machado.

O crítico e poeta Ledo Ivo afirma que Rebelo, apesar de sua “vivacidade técnica”, pertencia a categoria de escritores “de preferências e posições literárias bastantes limitadas, e marcado mesmo por uma clara descuriosidade estética”. Isso não parece verdade. Rebelo leu os principais autores de seu tempo, embora os lesse selecionando, pondo de lado a imparcialidade do crítico quando julgava, buscando mais as afinidades eletivas de seu espírito: não lia pela obrigação de estar informado. O próprio Ledo Ivo explica o porquê desse rigor quando, a seguir, diz com acerto: “Os seus modelos preferidos eram, quase sempre, os mestres consagrados do século passado, os clássicos portadores das qualidades de clareza, fabulação e linearidade caras ao seu espírito, que desestimava as desordens e disformidades ...”

Mas esse espírito clássico tinha a volúpia da mistura. O mesmo leitor de Homero, Platão, Ovídio, Vergílio, Patrônio, Dante, Cervantes, Moliére, Goethe, Voltaire, Rabelais, lidos na idade da formação literária, conhecia Joyce, Herman Hesse, Gide, Lawrence, Pirandello, Conrad, Kafka, Rilke, John dos Passos, Proust, O'Neil, Pound. Empreendia, já maduro, o conhecimento da literatura norte-americana moderna. Em música, ouvia Bach e Varese, Handel e Poulenc, Mozart e Ravel, Schubert e Bartók, Haydn e Villa-Lobos. O jazz de Fats Waller e o samba de Ataulfo Alves. A pintura de Rembrandt, Rafael, Tintoretto, Boticelli (ou dos brasileiros Visconti, Batista da Costa) encaixavam bem no seu espírito junto com Cezanne, Picasso, Braque, Vlaminck, Campigli (ou Pancetti, Guignard, Portinari).

Com relação a Marques Rebelo, é proibido falar em “descuriosidade estética”. Em afinidades eletivas, sempre. Muitas vezes selecionou e elegeu com rigor talvez excessivo — poder-se-ia dizer. Mas foi sempre sincero no “gostar, desgostar e voltar a gostar” (Drummond) de alguém ou de alguma obra.

Gostou e depois desgostou de alguns escritores como Dickens, Daudet e Eça de Queirós: “... são literaturas para a adolescência literária”, diria certa vez. Insistia: muitos deles são “artistas menores, como Eça de Queirós, por exemplo. Hoje construímos melhor do que ele, mas houve época em que era um achado”.

Outro “achado” que o tempo reduziu à sua verdadeira dimensão foi Jean Christophe, de Romain Rolland. Conta Marques Rebelo: “... me apanhou desprevinido, senti-o maravilhoso, mas após o terceiro volume o interesse decaiu (...) A obra, que fez furor, traduzida em todas as línguas da terra, já estava um pouco enterrada sob a areia de um tempo convulso e anti-germânico, em que se confunde germanismo e mazismo”.

O leitor desbocado que exprimia seu gosto com todas as letras (“penitencio-me de algumas injustiças — obras que achei chatas, tornaram-se realmente chatíssimas”), não se envergonhava, no entanto, de corrigir uma opinião. Havia, também, aqueles “julgamentos recorríveis”, passíveis de reformulação: “gitano e hermafrodita, Garcia Lorca é pouco (...) e até quando as circunstâncias do assassínio do mancebo contribuirão para a sua valorização?”

O mesmo aconteceu em relação à obra de Dostoievski que, com seu clima “mórbido, místico, desesperado”, nunca foi do agrado do criador de A estrela sobe. Mas importante: Rebelo não deixava de admitir a grandeza do escritor russo. Dos russos, gostava mesmo era de Tchecov.

Outras antipatias literárias do escritor carioca: Chesterton, Aldous Huxley, Kipling, Stefen Zweig, D'Annunzio, Peguy, Tagore, Hemingway. Referiu-se ao prosador de Adeus às armas com desprezo, chamando-o de “repórter”, “primário”, “influenciado pelo cinema e influenciador de muito noviço das letras daquém e de além-mar”.

Se Rebelo não se limitou a beber da fonte vernácula, tendo sido também grande viajante da literatura ocidental, é preciso admitir no entanto que suas eleições de leitura mal fugiam daquela tríplice baliza que marcou sua formação intelectual e estética: os autores estrangeiros que lia se aproximavam, de algum modo, da concepção machadiana da literatura; outros, vinculavam-se a uma certa vertente pós-simbolista; por fim, aqueles ligados a uma linha mais moderada de modernismo.

É do cruzamento dessas três ordens de influências que surge e se afirma o escritor Marques Rebelo, dono de estilo inconfundível e único na literatura brasileira. O espelho partido é a consolidação literária dessa “triplice aliança”.

 

MARQUES REBELO
José Carlos Zamboni                                              Ensaio
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