REBELO E OS MAIS NOVOS

 

 

Rebelo conheceu relativo sucesso, depois do que escreveu na década de trinta. Mas enquanto o público consumidor de romances preferia Jorge Amado, José Lins do Rego, Raquel de Queirós, Lúcio Cardoso, Otávio de Faria, Érico Veríssimo, era Rebelo lido e admirado, de preferência, pelos candidatos a escritor dos anos quarenta. Era “ídolo literário de minha geração”, confessou Fausto Cunha. Fernando Sabino recorda que ele “era visto sempre cercado de jovens escritores nos cafés, nas livrarias, nas ruas. Sua maledicência nos deixava boquiabertos.” Otto Lara Resende, Antonio Bulhões, Aguinaldo Silva, Salim Miguel, Murilo Rubião: são alguns dos que, declaradamente, se beneficiaram de sua amizade e influência.

Exemplo dessa generosidade — um tanto sui generis, como se verá no caso a seguir — está na amizade que o ligou a um autor dessa geração seguinte à sua: o baiano Herberto Sales, autor de pelo menos três romances importantes da ficção brasileira contemporânea, Cascalho, Além dos marimbus e Dados biográficos do finado Marcelino.

O escritor baiano sabia, como poucos, contar uma história, senhor de uma prosa cristalina e elegante, coisa cada vez mais rara nesse país. Seu romance Cascalho, que é uma dessas historias bem contadas e bem escritas, daria assunto para um outro romance — o romance do próprio romance —, tantas foram os fatos que aconteceram ao seu redor.

Tudo começou quando Herberto, então residente em Andaraí, interior da Bahia, decidiu mandar o livro para um concurso literário no Rio de Janeiro, pelas mãos da primeira mulher de Jorge Amado (com quem Herberto se correspondia). Ficou com a cópia em papel carbono e mandou a outra para o Rio, no endereço de Jorge. Como o concurso exigia três exemplares, o jeitinho brasileiro foi acionado para resolver o problema.

Cópia aceita, Herberto começou a arrepender-se de ter enviado o livro. Tomado de ódio contra a própria criação, pegou a única copia que tinha ficado consigo e foi ao quintal de sua casa: rasgou página por página do futuro Cascalho. Como o regulamento do concurso previa destruição das cópias enviadas, o livro, com suas seiscentas páginas, já deixara de existir no mundo dos livros.

 Saiu o resultado do concurso: ganharam Jorge Amado com Terras do sem fim e Oswald de Andrade com Marco zero, que representariam o Brasil na etapa seguinte, com os escolhidos dos demais países da América latina. Herberto, no entanto, começou a sentir-se arrependido do que fizera e tentou recuperar a cópia mandada para o Rio.

Entrou em contato com a mulher de Jorge Amado que, em conversa com Marques Rebelo, mencionaria a loucura do jovem escritor baiano. Rebelo lembrou-se de Herberto, com quem tinha trocado varias cartas, e prometeu fazer o possível. Entrou em contato com Aurélio Buarque de Holanda, que presidira a comissão julgadora do concurso.

Por sorte, a cópia de Cascalho ainda não tinha sido mandada para a fogueira. Aurélio decidira consultá-la com mais cuidado, pois estava cheia de palavras e expressões regionais que poderiam ser aproveitadas da edição de um dicionário que estava quase pronto (que depois se transformaria no famoso Aurélio).Foi a sorte de Herberto Sales. Conseguiu de volta seu original graças àquilo que era menos importante na  obra: os registros lingüísticos da região.

Rebelo, antes de devolver os originais ao autor, decidiu dar uma folheada, que virou leitura compulsória, tão encantado estava com as paginas que ia lendo. Por fim, escreveu entusiasmado ao futuro escritor baiano, jurando que arranjaria editor para o romance. Com um porem: a obra precisava de muitos cortes, e pediu autorização para faze-lo ele mesmo. Herberto respondeu na hora, dando cartas brancas ao seu ídolo literário. Que escritor iniciante não queria ter, como parceiro, o próprio mestre?

Rebelo cortou o que achava desnecessário e enviou ao autor, num envelope, os recortes. Herberto nem se deu ao trabalho de os ler e os jogou fora: Rebelo sabia  o que fazia. Depois da recusa de varias editoras, que alegaram ser Herberto um ilustre desconhecido, a editora O Cruzeiro, dos Associados, aceitou publicar a obra. Na correção das provas, Herberto viu que a obra precisava ser totalmente reescrita, mas não havia como faze-lo então.

Herberto voltou para Andarai e ficou esperando a publicação do romance. Já estava quase esquecido do livro, quando sua mulher ouviu pelo radio um anuncio da editora O Cruzeiro: acabava de sair o livro. Foi uma festa na pequena cidade baiana. O próprio Herberto permaneceu horas diante do rádio para ouvir, ele mesmo e depois de muito tempo, o anuncio da publicação.

MARQUES REBELO
José Carlos Zamboni                                              Ensaio
Hosted by www.Geocities.ws

1