INFLUENCIA DE MACHADO

 

 

... ático, cético, subversivo, queimando como gelo.

Marques Rebelo

 

 

Em 1939, a “família machadiana” cantava os parabéns nos cem anos de nascimento do autor de Dom Casmurro, desejando muitos anos de vida póstuma ao criador de Brás Cubas e, sobretudo, trocando a lente dos óculos da crítica. Machado deixava de ser o Anatole France mulato para se transformar no Bruxo do Cosme Velho, “bruxo alusivo e zombeteiro, que revolves em mim tantos enigmas”, como o sentia Drummond.

Essa comemoração deixou marcas na literatura brasileira. Longe das solenidades oficiais, com o Estado Novo e o DIP batendo na tecla antiga do Machado acadêmico, Machado estátua ática, Machado gramático. Era o comemorar verdadeiro, empreendido pela crítica mais séria: lembrança compartilhada da figura espiritual de Machado de Assis, restauração de sua efígie mental soterrada sob algumas décadas de ufanismo laudatório.

Essa reviravolta da “fortuna crítica” machadiana começou com o Machado de Assis, de Augusto Meyer, publicado em 1935 e botando em evidência o “escritor subterrâneo” e “demoníaco” oculto sob a pele aparentemente impassível do “humourista” inglês.

Continuaria, em 1936, com o ensaio biográfico de Lúcia Miguel Pereira, deixando para trás o esforço pioneiro mas ainda exageradamente descritivo de Alfredo Pujol.

Na mesma linha de exploração biográfica, dissecando o paciente com as ferramentas da neurologia e da somatologia, aparecia em 1938 a obra Doença e constituição de Machado de Assis, do médido e contista Peregrino Júnior.

É do ano seguinte a primeira abordagem de cunho comparatista que realmente cuidava dos textos: Influências inglesas em Machado de Assis, de Eugênio Gomes, onde o crítico mostrava a influência exercida sobre Machado por alguns “humouristas” ingleses: Shakespare, Swift, Fielding, Sterne, Lamb, Thackeray e Dickens.

Também de 1939 é o “Romancista do Segundo Reinado”, estudo sociológico do fundador do Partido Comunista do Brasil, Astrogildo Pereira (que, adolescente ainda, visitou Machado morimbundo no chalé de Cosme Velho). Um marxista mostrando à esquerda que Machado foi um atento observador de sua época. Atento e crítico.

Mário de Andrade, um dos chefes da destruição modernista recente, revelava em ensaio do mesmo ano o ferveroso culto (ainda que não amor...) que dedicava ao escritor que considerava “um gênio”, apesar das restrições ao homem.

Alguns anos depois, em 1943, surgiriam os artigos inteligentes de Barreto Filho, relendo o mestre do Memorial de Aires pelo ângulo do existencialismo cristão.

Machado de Assis, enfim, tomava conta da cena. “Nenhum outro escritor brasileiro, em nenhum tempo, foi tão falado, tão manuseado, tão esquadrinhado quanto Machado de Assis atualmente”, testemunhava Astrogildo Pereira naquele 1939. E era naquelas “milietas de interpretações distintas para uma só divindade” que Mário de Andrade confirmava a primazia do criador de Brás Cubas: “Só os gênios verdadeiros se prestam a este jogo dos interesses e das vadiações humanas. São tudo, aristocráticos, burgueses, populistas. Morais, imorais e amorais”.

Havia um entrelaçamento quase ideal entre a obra de Machado — revisitado por esses novos escafandristas — e certa vertente literária da época, representada por escritores que já se cansavam do experimentalismo farrista dos anos vinte e buscavam encarrilhar seus textos na tradição clássica da língua, em seguida à demolição dos “modelos ultrapassados” empreendidos pelos modernistas.

Esse refluxo literário levava consigo a poesia e a ficção. Aparece em poetas da geração anterior, como Manuel Bandeira, Guilherme de Almeida, Dante Milano; em poetas novos, como Drummond, Emílio Moura, Mário Quintana, Abgar Renault, Cecília Meireles (e até um Vinícius de Morais, de palavra pródiga e derramada, abandonava esporadicamente seus versículos quilométricos, de feição bíblica, pelo decassílabo de corte camoniano).

Um romancista como Cornélio Pena, católico e introspectivo, cuidava bem de sua narrativa em câmera lenta. Graciliano Ramos, nordestino e de esquerda, falava da seca — física, social, psicológica — com a aspereza de sua linguagem posta ao sol para estorricar. A aventura literária do Plínio Salgado modernista cedia lugar ao romancista de A voz do Oeste, que retomava a tradição do romance histórico e dizia: “Quando se pensa volver ao Passado, está-se caminhando para o futuro”. Rodrigo M. F. de Andrade, Ciro dos Anjos, João Alphonsus (sobretudo o das últimas obras) escreviam como se o vento do modernismo de vinte e dois não tivesse soprado na literatura brasileira: era uma prosa límpida e bem penteada.

É certo que nem só de “bom estilo” vivia a pátria literária de então. Havia aqueles romancistas desleixados “de Norte” — Jorge Amado, Armando Fontes, José Lins do Rego — que pareciam agradar mais ao leitor comum que ao público cultivado; sua prosa naturalista, requentada com temperos de folhetim, apontavam para uma realidade pouco explorada literariamente e dela pareciam se aproximar com o desatavio de cantador de feira. Mais que os clássicos, a literatura de cordel era seu inconfessado paradigma literário. Marques Rebelo refere-se, em O espelho partido, a um romancista nordestino que se vangloriava de haver escrito o último romance “num mês” e declarava à reportagem literária: “Compor para quem tem paciência, criar para quem tem força”.

Pacientes construtores. Criadores vigorosos. Aí estão, delineadas, as duas tendências estilísticas mais importantes do momento, reencarnações de uma pendenga literária que tem a idade da Literatura.

Criadores esbanjando força podiam jogar no time dos regionalistas do Nordeste como no dos introspectivos católicos. José Lins do Rego, de lá, e Otávio de Faria, de cá, são exemplos típicos desses “búfalos” literários (o apelido é de Oswald de Andrade) disparando em campo aberto, arrombando as cercas e as porteiras da língua, mais preocupados em contar história que produzir arte literária.

Certo que em menor número, construtores pacientes também jogavam de lá e de cá. É o caso do comunista Graciliano Ramos e do católico Cornélio Pena, dois estilistas obcecados pela reescrita, o que os aproximava do time intermediário, aquele terceiro grupo dos romancistas de centro que não olhavam nem para Roma nem para Moscou: menos pressionados pelo “parti pris” ideológico, desincumbidos da missão de salvar a alma ou a carne, tinham mais disponibilidade (no sentido gideano) para “compor com paciência”.

A própria onda “construcionista” que tomaria conta da década seguinte — com os poetas neoparnasianos da “geração de quarente e cinco”, a secura monocórdica de João Cabral, o neo-regionalismo gongórico de Guimarães Rosa, a angústia existencialista de Clarice Lispector — não teve certamente o seu impulso mais importante nessa maré das comemorações machadianas, mas sem dúvida dela se beneficiou.

Até a crítica literária mudava, buscando acertar o passo pela nova dança. A leitura impressionista — algumas vezes saborosa, mas em geral palpiteira — cedia lugar a ensaios que observavam mais “pacientemente” como os textos estava “compostos”, sem menosprezo dos fatores ideológicos e, nos momentos mais felizes, acolhendo bem a própria “impressão”, vista como pressuposto importante da análise e do julgamento, como acontecia com um Mário de Andrade, um Augusto Meyer, um Eugênio Gomes, um Sérgio Milliet, um Tristão de Athayde, um Prudente de Morais, neto, um Barreto Filho, um Brito Broca, um Cavalcanti Proença, um Álvaro Lins.

O próprio Álvaro Lins, nesse ano do centenário machadiano, escrevendo um “rodapé” para o Correio da Manhã, dizia que “para a família literária de Machado de Assis são muitos os chamados e raros os escolhidos”. Condições, segundo o ensaísta pernanbucano, para ser admitido nessa família: ter uma natureza semelhante à do Patriarca, um estilo elegante e preciso sem perder em simplicidade, uma visão penetrante do homem e da vida social.

Nesse sentido, os dois escritores de Trinta que melhor expunham essas virtudes literárias e melhor representavam a “família machadiana” eram o carioca Marques Rebelo e o alagoano Graciliano Ramos. Havia, nos dois, a mesma concepção da natureza humana que em Machado, desaguando em pessimismo ou no mínimo em ceticismo. A mesma aceitação do tabalho artístico rigoroso como caminho único para a realização de uma obra permanente, pela adoção de uma “técnica que signifique completo domínio do mundo imaginativo, sem prejuízo da sua aparência de espontaneidade e abandono”. Revelar, além disso, um “conhecimento dos homens e da vida social que indique aprofundamento constante de visão, sem esquecer a sua fonte de participação nessa existência pessoal e social dos seus semelhantes”.

São aspectos que reúnem Graciliano e Rebelo num mesmo barco, que também tinha à época outros tripulantes de importância: Ciro dos Anjos, João Alphonsus, Rodrigo M. F. de Andrade, Aníbal Machado, Drummond (dos Contos de aprendiz). Mais de uma vez, Álvaro Lins usou dessa “machadianeidade” como critério de julgamento: como, por exemplo, ao escrever sobre o segundo romance do mineiro Ciro dos Anjos, Abdias, publicado em 1940; e a quem apreciou menos por se distanciar da visão cética, complexa e bem humorada de sua obra de estréia, O amanuense Belmiro, de 1936, cujo personagem central era “mais inteligente”.

Marques Rebelo, adolescente ainda, descobre as obras do “mestre”, como revela no diário-romanceado O espelho partido, nas anotações dos dias 21, 22 e 23 de junho de 1939 (a primeira, data do centenário de nascimento do “molecote Joaquim Maria”).

Depois de resumir a visita à exposição comemorativa, patrocinada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão do Estado Novo, “montada com limpeza e significação, como antes nunca se fizera”; e confessar que mora a duzentos metros da “casa onde Machado de Assis viveu tantos anos, onde morreu sem ter transmitido o legado das suas misérias”, o narrador Eduardo/Rebelo fala de seu primeiro contato com o escritor, através de Helena: “...o achei decepcionante e não pensei mais no autor”.

Poucos anos mais tarde, numa antologia ginasiana, reencontra-o:

 

Foi nele que, afinal, encontrei o meu Machado. Vinha em pedaços como fatias de um grande bolo, grande e saboroso. Fui comendo deliciado: aquele admirável trecho do fanático por brigas de galos, o do pesadelo em que o diabo tira libras de um saco para pôr em outro, o episódio da ponta do nariz, a célebre volta aos tempos, cavalgata às avessas, imorredouro retrocesso, e, principalmente, o famoso jantar da família Brás Cubas, ágape a que iria assistir, coberto de vergonha, numerosos similares. E o que não pude acreditar mui prontamente foi que houvesse relação entre o padeiro desses nacos surpreendentes e o confeiteiro de Helena, de tão chocha e açucarada memória. E atirei-me ao manjar inteiro, começando pelas Memórias póstumas de Brás Cubas. Daí para Quincas Borba, depois para Dom Casmurro, quando fiquei para toda vida apaixonado por Capitu, paixão que só se igualaria com a provocada por Vidinha, a gargalhante mulatinha dos lundus. Quando cheguei aos contos — “Conto de escola”, “Uns braços”, “O diplomático”, “Uma senhora”, “Missa do galo”, “Capítulo dos chapéus”, “Idéias de canário” — quando cheguei aos contos, alumbramento de que Antonio Ramos compartilhava, senti que formavam um trilho ideal, caminho único encimado por uma estrela, estrela guiadora, bem diversa daquelas, indiferentes às lágrimas e aos risos, que o mal-aventurado Rubião pedia à bela Sofia que fitasse.

MARQUES REBELO
José Carlos Zamboni                                              Ensaio
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