UM DIABO DE LÍNGUA SOLTA

 

 

Marques Rebelo nunca deixou de ser admirado pela boa crítica de sua época. Refiro-me a João Ribeiro e Álvaro Lins, Tristão de Athayde e Mário de Andrade, Agripino Grieco e Sérgio Milliet, Otto Maria Carpeaux e Fausto Cunha, para só mencionar alguns pesos-pesados. Essa gente via Rebelo como um dos maiores escritores que este país já teve.

Isso não impediu que, nas últimas décadas, caísse num esquecimento quase total, a ponto de ser conhecido das novas gerações (e talvez de nome) pelo romance A estrela sobe, em boa parte por ter virado filme no começo dos anos setenta.

Não é lícito, num país de literatura indigente, desconhecer um artista sutil como Rebelo. São coisas da literatura e do nosso tempo. Quais seriam as causas desse purgatório crítico? Seriam motivos literários ou deveriam ser buscados fora da literatura, como fez Otto Maria Carpeaux em 1960, comentando O trapicheiro, primeiro volume da série O espelho partido?

O ensaísta austríaco, que chamava a atenção para esse fato numa época em que Rebelo ainda era lido, atribuía-o à “fabulosa capacidade do escritor de, pela maledicência, arranjar inimigos. O presente livro — roman à clef, em cujos personagens se reconhecerão muitos contemporâneos sem ficarem lisonjeados — confirma a tese”.

Em 1963 e 1969, em que aparecem os dois tomos seguintes de O espelho partido, aumenta significativamente o número de vítimas da republiqueta nacional das letras, cutucados pela caneta aguda de Rebelo. Os mais visados: Jorge Amado, José Lins do Rego, Armando Fontes, José Américo de Almeida, Gilberto Freyre, Raquel de Queirós, dos que vinham do Nordeste. Lúcio Cardoso, Tristão de Athayde, Otávio de Faria, e até seu amigo íntimo Cornélio Pena — dos “coroinhas do Rio”. E não escapava o próprio Oswald de Andrade, autor dessa expressão com que zombava dos introspectivos católicos (Oswald de Andrade que, na comédia das letras, fazia um tipo nalguns aspectos parecido ao de Rebelo).

De norte a sul, da esquerda à direita, Marques Rebelo ia aumentando seus desafetos. Sabendo-se que cada um desses pontos cardeais da literatura tem seu feudo, sua paróquia, seu distrito de influências, sua província de leitores e de críticos, fica fácil admitir, com Carpeaux, ser o ressentimento a causa de boa parte da quarentena a que foi condenado esse “diabinho de língua solta” (Drummond) que não gostava de “tirar o chapéu para a mediocridade”, como ele mesmo o confessou.

O machadiano Rebelo nunca se definiu, politicamente, do lado dessa ou daquela seita. Embora apaixonado da “causa brasileira” (boa parte das mil e setecentas páginas de O espelho partido são dedicadas a compor, caco a caco, um imenso retrato do Brasil da primeira metado do século), manteve-se sempre, como bom cético, à margem dos projetos salvacionistas da nação:

 

Por tal razão os comunistas me consideram fascista, os fascistas me consideram comunistas, os socialistas me consideram reacionário, os liberais me consideram um sem-vergonha. Não tem a menor importância — por absoluto cálculo e decisão nunca precisei de posição política para criar e viver, seguro de que, com as mãos desatadas, pode-se nadar melhor e escapar das correntes fatais.

 

Essa liberdade na política e na vida poderia muitas vezes parecer desinteresse, disponibilité, instabilidade. Fosse o que fosse, suas atitudes insólitas contribuíram para essa imagem de intelectual irresponsável e moleque que estava muito longe de ser. Quando caiu a ditadura de Getúlio Vargas — foi Magalhães Júnior quem presenciou —, Rebelo participou da alegria quase carnavalesca que então predominou. Isso não o impediu, algum tempo depois, de mudar de posição. É o próprio Magalhães Júnior quem conta:

 

(...) do meio para o fim do governo do Marechal Eurico Gaspar Dutra, Marques me procurou: “Se quiser cortar relações comigo, corte agora”. Quis saber por quê. Explicou: “Porque vou daqui ao apartamento do Getúlio, aqui na Avenida Rui Barbosa. Pedi para ser recebido e vou aderir a ele.” Respondi-lhe que era um direito seu e que, por mais que me surpreendesse tal atitude, jamais cortaria relações com um velho amigo por tal motivo. Marques ficou feliz e me disse, ao estender-me a mão: “Pensei muito e acho que só através de líderes de grande prestígio popular é possível reformar alguma coisa no Brasil. O povo, mesmo, só se interessa por duas coisas: futebol e carnaval.” Fez uma pausa, para completar: “Aliás, ótimas.”

 

E o ex-redator, em 1941, da revista Cultura política, editada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo, não hesitou— na hora da verdade literária — de criticar duramente o Estado Novo e Getúlio nos três volumes de O espelho partido.

Na novela O simples Coronel Madureira, sátira à ditadura militar, dizia em nota introdutória:

 

Que os homens não conseguem viver tranqüilos, não chega a ser produto de maldição, como tentam impingir alguns espíritos malévolos ou obscurantistas. É condição própria da existência humana na luta pelo lugar ao sol, cujos raios bem poderiam ser mais calorificamente igualitários. E os exemplos dessa universal intranqüilidade (...) são, em prosa e verso, para a incompreensão de muitos, a invariável e infindável matéria-prima da literatura pelo tempo dos tempos.

 

Entendia Rebelo que era da natureza da humanidade — à esquerda, ao centro, à direita — viver sempre inquieta, lutando pelas batatas do Quincas Borba, filósofo quixotescamente lúcido e pirado. O que fazer nos partidos e nos governos, perguntaria o escritor, “se tenho como bem único, e consolação de um caminho escolhido e difícil, a literatura, que resiste dentro de nós a todas as agressões, opressões e restrições políticas?”

Rebelo não era nenhum ingênuo: sabia, também, que não tomar partido na drummondiana época “de partidos e de homens partidos”, era menosprezar os formadores da opinião pública e literária, que julgam na imprensa, nos congressos, nas escolas. Época em que todos os pecados são perdoados, menos um: o do absenteísmo político-ideológico. E o criador de Marafa só torceu para dois times na vida: o América do Rio (que se transformaria num perdedor contumaz) e as chamadas artes superiores.

 

MARQUES REBELO
José Carlos Zamboni                                              Ensaio
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