A PALMATÓRIA DOS CLÁSSICOS

 

 

Ao lado das causas externas da hibernação crítica de Marques Rebelo, há outra mais estilística e visceral. Trata-se da feição algo antiquada de sua obra e de seu quase beletrismo, apesar das influências modernistas que sofreu.

Nunca renegou os clássicos que, desde a adolescência, marcaram a sua formação literária. Primeiro, lidos na estante paterna: Claude Tillier, Sterne, Thackeray, Stendhal, Flaubert, Galsworthy, Daudet, Dumas, Vitor Hugo, Herculano, Camilo, Eça, Balzac, Bourget, Anatole, sobretudo Machado. Depois, durante os três anos de aulas particulares com o filólogo Mário Barreto, que o faz ler todo um

 

fartão de obras clássicas — o alicerce às vezes penoso — ora indicadas, ora emprestadas, ora tiradas da biblioteca do professor, mas rigorosamente devolvidas, menos uma — certa tradução de Beaumarchais, toda anotada pelo olho exigente do gramático, muito atilado para os problemas de semântica.

 

Quando estudou com Mário Barreto tinha quinze anos. Era 1922, ano da Semana de Arte Moderna. Nessa época, já conhecia a Bíblia “de trás para diante. Foi um dos livros que mais me influenciaram como escritor”, conta Rebelo. Em 1924, já fazia

 

uma versalhada de tatibitate, com os cacoetes da época. Estávamos em plena campanha moderna, existia um esforço de artistas e intelectuais de valorização do homem brasileiro, de redescoberta do País nos seus próprios termos. Da mesma forma que o movimento romântico foi nosso primeiro surto de anticolonialismo artístico, o movimento de 22 levou-nos para a cultura do século XX.

 

É por aí que publica seus primeiros trabalhos, nas revistas Para Todos e Beira Mar. Enquanto isso, convive com o rigor do professor-filólogo, que muito o ajuda,

 

mormente naquilo que eu não precisaria para me tornar escritor, e era severíssimo nas redações; em cada aula tinha de apresentar uma, previamente determinada, e que ele corrigia, discutindo as correções, achando graça em achados meus, incentivando-me ou reduzindo-me a pó — um extraordinário exercício!

 

Paulo Francis, entrevistando Rebelo em 1961 para a revista Senhor, observa: “Ataca, elogia e esclarece com os pronomes, partículas e verbos nos lugares certos. Usa 'tivera', 'fora', 'houvera' assim como 'já os tivera', etc., em conversação normal.” Era ainda a sombra de Mário Barreto a seu lado...

Não hesita em confessar, numa passagem de O espelho partido:

 

Às vezes penso que devo todos os meus erros literários aos clássicos, ou chamados clássicos, ou pseudo-clássicos, erros, defeitos, formalismos, limitações e, ainda por cima, uma inelutável tendência para a reação fria, como se não tivesse ficado liberto deles, marmóreas potestades, como se continuassem a correr dentro de mim qual rio subterrâneo.

 

Da severidade neo-parnasiana de Mário Barreto à desenvoltura quase modernista de suas primeiras obras, houve um elo fundamental: a presença iluminadora do modernista moderado Prudente de Morais, neto. “Ele, confessa Rebelo, aclarou-me vários problemas, ajudou-me bastante, mais pelas nossas conversas do que pelo que escrevia, pois, é evidente, nem sempre se ocupava de mim.” E continua:

 

Propôs-me as questões da composição, que tanto me preocuparam, a historicidade do método, a latitude da gramática, como instrumento de precisão que o escritor não podia deixar de manejar, até mesmo para contrariar certos dogmas consagrados, a construção do estilo, cristalizando-se entre duas forças poderosas, a do tempo, sem modismos, e a de cada um, sem cacoetes.

 

Ledo Ivo viu, muito bem, essa mescla estilística de Rebelo:

 

(...) sua arte de miniaturista (...) modernizava as lições do passado, fugindo a grosserias e palavrões, banhando seres, coisas e paisagens de uma luz lírica (...) destoava do  gosto da época, que não via com bons olhos os estilistas e beletristas, suspeitos de ligações póstumas com Coelho Neto.

 

Produto de um homem inteligente reagindo à sua circunstância, a obra de Marques Rebelo mira além da época que a provocou — pois sua perspectiva era machadiana e trans-histórica. Exercício monacal avançando pelas “noites cariocas”, o jogo da escrita era para ele

 

uma paciência, paciência sem cartas. Anda, escreve, mão delicada, pequenina, insatisfeita! Que importa se o produto não tenha imediato consumo nos balcões de livraria! O tempo é balcão de uma livraria maior (o espelho sorri) — avante!

 

Esse espírito anticlerical com coração de monge (vale para Rebelo essa autodefinição de Jules Renard) poderia repetir o verso de Antonio Machado: “Quien habla solo espera hablar a Dios un día”. Marques Rebelo não acreditava em Deus, mas era pensando nalguma forma de transcendência que ele criava.

 

MARQUES REBELO
José Carlos Zamboni                                              Ensaio
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