A CANETA E O CONTA-GOTAS

 

 

Marques Rebelo (1907-1973) foi autor dos mais lidos, no Brasil, até a década de sessenta, com uma fortuna crítica invejável. Veio, depois, o eclipse. Este ensaio pretende mostrar que seu esquecimento não é benéfico ao país.

Tido, por alguns, como costumista (jeito disfarçado de chamar de menor), é Marques Rebelo o autor de uma obra densa, que tem nos costumes um elemento puramente circunstancial, contorno e não centro de seus escritos torturados, obsessivamente reescritos. “Uma arte difícil e, na sua simplicidade, uma arte clássica”, como a vê o professor Bosi. Uma fina arte, nas palavras de Otto Maria Carpeaux, “que só é plenamente reconhecida pela crítica mais exigente”.

Marques Rebelo é carioca. Começou como escritor em 1931, com Oscarina (livro de contos editado pelo amigo, depois inimigo e novamente amigo Augusto Frederico Schimidt), obra tida pela melhor crítica da época — João Ribeiro, Tristão de Athayde, Mário de Andrade, Prudente de Morais, neto, Agripino Grieco — como baliza renovadora da narrativa curta entre nós. Tinha vinte e pouco anos quando o escreveu e vinte e quatro quando o publicou, em 1931.

Volta dois anos mais tarde com Três caminhos, publicado quando o escritor tinha vinte e seis anos.  Eram “capítulos imperfeitos de três romances tentados”, como ele mesmo diz em nota inicial. Um deles, Vejo a lua no céu, talvez seja a obra mais bem realizada de Rebelo e uma das mais bonitas novelas escritas em português.

Em 1935 ganha o Grande Prêmio de Romance Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, com o romance Marafa, dividido com Música ao longe, de Érico Veríssimo, Os ratos, de Dionélio Machado e Totônio Pacheco, de João Alphonsus. Era um mergulho na marginalidade carioca, que o aprendiz de boxeador Rebelo mandou para o concurso sob o pseudônimo de José Maria Nocaute.

Vem, em seguida, a experiência decisiva na ficção: A estrela sobe, de 1939, escrito e reescrito várias vezes de 1935 a 1939, ambientado no mundo do rádio, o bastante para desagradar a corrente introspectiva dos Otávio de Faria e dos Cornélio Pena, mas com um final um tanto “metafísico” para contentar os Jorge Amado, os Armando Fontes e outros neo-realistas de grupo nordestino. Tem um assunto interessante (o mundo do rádio), personagens bem construídos (Lenisa, Oliveira, Mário Alves, até os secundários Porto, Dulce, dona Manuela e seu Alberto), mas alterna momentos brilhantes com certa pieguice kitch. É sua obra mais conhecida, sobretudo depois que se transformou em filme, no início dos anos setenta.

De 1940 é a peça de teatro Rua Alegre, 12, nunca encenada, e dois anos depois reaparece — e pela última vez — com um volume de contos, Estela me abriu a porta, confirmando-lhe a posição de mestre da história curta. É sua reerguida qualitativa: está de volta a substância do contista de vinte e poucos anos, aliada a uma maior densidade de expressão. O estilo, aqui, já está afiado para iniciar a escrita de O espelho partido, que começa a ser escrito nessa época (no verso da página de rosto dessa obra, já está anunciado O espelho partido com outro nome, A onda solitária).

No ano seguinte, produto de estóicas pesquisas nos arquivos empoeirados da Biblioteca Nacional, escreve e publica a pioneira Vida e obra de Manuel Antonio de Almeida, um dos seus mestres brasileiros.

Encerrando a primeira fase de sua obra, volta em 1944 com um livro de viagem pelo país, Cenas da vida brasileira, crônicas e flashes do interior, sobretudo mineiro, onde o escritor passou a infância.

São quase quinze anos, de 1931 a 1944, de atividade literária intensa. Exerce a crítica literária não nos rodapés dos jornais, mas nas portas de livraria e nos cafés. Foi talvez a língua mais ferina de sua geração, que misteriosamente convivia bem o coração de manteiga, sempre disponível aos amigos e aos escritores mais novos.

Fica mais de dez anos sem publicar livro novo, apesar da colaboração assídua em jornais e revistas. Na segunda metade de cinqüenta volta ao livro, com dois relatos de viagem: Cortina de ferro, de 1956, passeio bem humorado pelo “paraíso socialista”, e Correio europeu, de 1959, impressões de viagem pela Europa Ocidental do pós-guerra, usando técnica fragmentária e aforística.

Em 1959 começou a publicar O espelho partido, romance-rio e à clef, previsto para sete volumes. Nesses últimos quinze anos de sua vida, quase tudo o que saísse da sua caneta ácida e exigente — conta-gotas pingando a palavra justa — tinha rumo certo: virava afluente dessa obra cíclica.

Uma dessas raras exceções foi a novela O simples Coronel Madureira, sátira contra a ditadura militar publicada em 1967. A moral da história era que o vírus da corrupção (um dos motes dos golpistas) se insinuava esperta e lentamente no próprio organismo revolucionário. Não é obra de nenhum idealista de esquerda, como Antonio Callado, frustrado com a queda de Jango e a impossibilidade de construir no Brasil uma sociedade sem classes. Foi escrita pelas mãos do desconfiado Rebelo, que já no primeiro parágrafo deixa clara sua tese pessimista da vida e da literatura. Doi anos depois, em 1969, saiu o terceiro tomo do romance-rio: A guerra está em nós. 

O espelho partido é sua obra mais ambiciosa, embora tenha sido interrompida com a morte do escritor, em 1973. Dos sete tomos previstos, escreveu três e o início do quarto, mas é indispensável para o conhecimento do Brasil na primeira metade do século XX. Merece um capítulo à parte.

 

MARQUES REBELO
José Carlos Zamboni                                              Ensaio
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