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De acordo com a versão mais aceita, Asclépio era filho de Apolo e da ninfa Corônis, filha de Flégias, rei dos Lápitas. Seu nascimento dera-se por parto cesariana, procedimento que os gregos registram desde 1200 a.C. Originalmente, era Apolo quem afastava as epidemias com suas flechas, até confiar seu filho aos cuidados do centauro Quíron, médico formado no saber de Apolo, cujo nome grego Kheíron, provém de kheirurgós (aquele que trabalha com as mãos), de onde saiu o nome “cirurgião”. O personagem mítico aqui também se confunde com o histórico, visto que Asclépio, cujo nome significa “o bom e o simples”, deve de fato ter vivido por volta do século 13 a.C. Fixando-se em Epidauro, domínio de Apolo, o sábio fundou uma escola de medicina, também hospital; na verdade, um templo destinado a receber doentes de toda a parte que vinham se submeter a tratamentos mágicos. Com a observação cotidiana dos casos e mediante ampla prática clínica, a arte médica dos gregos pôde dar seu primeiro passo no universo do “espírito científico”, base de toda a medicina acadêmica do mundo ocidental.
Asclépio era chefe de uma família dedicada à medicina. Tinha um verdadeiro corpo clínico em sua casa. Seus filhos, Podalírio e Macaón, surgem como médicos da Ilíada, além de Higéia e Panacéia, que cuidavam das serpentes no templo – a primeira, dedicada à higiene (medicina preventiva); a segunda, à cura das doenças. Com os séculos, a escola alcançou fama desmedida. Os discípulos de Asclépio migraram por toda a Grécia, fundando novas escolas, as asclepíades, sendo famosas a de Pérgamo, a de Cós e a de Cnido, esta a mais antiga, do século 7 a.C. Nelas se praticava, além das preces e oferendas aos deuses, a ausculta dos pulmões com os ouvidos colados ao tórax, incisões renais e outros feitos, longe, porém, do rigor científico. Lá também moravam os escribas, cuja função era registrar em “tábuas votivas” o que lhes contavam os pacientes curados. Hipócrates nasceu em Cós; seu pai, um médico, mandou-o estudar em Atenas. Ao regressar, fundou a Asclepíade de Cós. Imprimindo seu gênio, criou o método de observação ao pé do leito, descrevendo cada um dos casos, sentindo o operar tênue ou abrupto dos sintomas. Hipócrates formalizou assim uma extensa obra, a maior parte dela escrita por seus alunos, que cristalizava o saber empírico das tábuas votivas num pensamento sistematizado e notável, desligando a medicina das crenças mágicas. Nascia assim a ciência médica ocidental, marcada pelo rompimento de Cós com a medicina religiosa praticada pela escola rival de Cnido, bem como por todo o restante da Grécia.
À coleção de 53 tratados que compõem 72 livros médicos escritos em Cós – conforme organiza-se a edição francesa, por Emile Littré (1801-1881) – dá-se o nome Corpus Hipocraticum. Seu nó fulcral é o livro de “Aforismos” de Hipócrates, composto de sete seções, que lhe valeu o epíteto de “pai da medicina”. Centrado no homem e atento à observação da natureza, o pensamento hipocrático guarda íntimas semelhanças com a cosmogonia chinesa. E podemos começar aqui as comparações a que nos propusemos desde o início. O primeiro aforismo de Hipócrates, imortalizado na máxima latina ars longa vita brevis, observa que a vida é curta para que aprendamos toda a sua arte. Ora, essa preocupação não é outra senão a do Imperador Amarelo, Huang Ti, personalidade extraordinária que governou a China há mais de 4.500 anos. Conta a lenda que em 2697 a.C., Huang Ti tomou o leme da China, sucedendo a Shen Nung. Dotado de sabedoria, e preocupado com a longevidade, iniciou diálogos com seu ministro Chi Po (mestre celeste), seu astrônomo Gui Yu Chi e um de seus discípulos, Lei Gong, a respeito de por que seu povo estava morrendo por volta dos 50 anos, ao passo que os antigos sabidamente viviam mais de cem. Toda a discussão que se seguiu, envolvendo as “questões simples” da vida, que em chinês se diz su wen, acabou imortalizada e revela um profundo saber clínico, conhecido por Nei Ching, o qual compõe o texto sagrado da medicina chinesa, intitulado Huang Ti Nei Ching Su Wen, ou “Questões Simples de Medicina Interna do Imperador Amarelo”. Transmitidos oralmente, os diálogos só vieram a ser escritos originalmente por Chun Yu Yi, nascido em 216 a.C., que, recebendo a tradição da boca de Yang Shin, resolveu tatuá-lo em ideogramas sobre 18 pergaminhos. No século seguinte, o conjunto dividiu-se em dois volumes; nove manuscritos compunham o Su Wen, e outros nove o Ling Shu, que se traduz por “Portal Mágico” e destina-se a ensinar a arte de inserir agulhas. Transpassa por todo Nei Ching a cosmovisão taoísta que situa o homem como elo entre o Céu e a Terra, animado desde a primeira inspiração por chi, energia primordial que dos pulmões se espalha por todo o corpo. Exatamente como pensava Hipócrates, que foi aluno em Atenas do sofista Protágoras, o qual o ensinara a ver o homem como a medida de todas as coisas. O médico grego igualmente aceitava que o segredo da vida estivesse no sopro vital, ao qual o jônico Anaxímenes chamara de pneuma. O chi expressa-se por duas polaridades opostas e ao mesmo tempo complementares entre si, chamadas yang (o cheio) e yin (o vazio), que em tudo se manifestam. A saúde é resultado do equilíbrio dinâmico entre essas duas energias. Yang e yin estão em todas as células, em todas as partículas e predominam alternadamente um sobre o outro, como se fossem dois cajados a apoiar os passos do universo. O desacerto entre yin e yang leva aos excessos ou às estagnações, também aos vazios, e se revela sob a forma de doenças. Por isso, a função do acupuntor é dissipar as pletoras, tonificar os vazios e mobilizar as estagnações.
Hipócrates diz o mesmo em seu aforismo 22, seção II, afirmando que as moléstias causadas por repleção curam-se pela depleção e vice-versa, ao que ele chama de “cura pelos opostos”. Expande esse conceito nos aforismos 39, 40 e 48 da seção IV; também do 16º ao 25º da seção V. Influenciado pela filosofia de Empédocles, seu contemporâneo, o médico via a natureza composta por quatro elementos (água, fogo, terra e ar), definidos pela mistura, duas a duas, das quatro propriedades básicas: seco ou úmido, frio ou quente. De novo desvelamos na medicina ocidental o binômio yin/yang. Hipócrates relacionou os elementos aos quatro humores do corpo humano (sangue, bile negra, bile amarela e fleugma), determinando assim quatro temperamentos segundo os quais respondemos às vicissitudes, aos fatores climáticos causadores de doenças e, principalmente, aos nossos sentimentos.
Os chineses concordam em absoluto. Embora admitam cinco elementos (água, madeira, fogo, terra e metal), no movimento desse conjunto está a metamorfose da vida, aproximando mais uma vez o taoísmo do pensamento grego. E os chineses vêem o corpo humano como imagem do universo, associando, par a par, os dez órgãos nobres a cada um dos cinco elementos. Pulmões e intestino grosso, por exemplo, estão ligados ao metal e são respectivamente as principais vias de entrada e saída para a passagem de chi pelo organismo. A medicina taoísta atribui ainda um sentimento (medo, cólera, alegria, preocupação e tristeza) a cada víscera, traduzindo-os em temperamento, capazes que são de influir em nossas reações ao meio interno ou externo. Essa é a mais antiga referência a uma medicina psicossomática. Fazem contraponto aos sentimentos seis agentes perversos externos, deflagradores de doenças em organismos previamente desarmônicos: a secura, a umidade, o fogo, o vento, o frio e o calor. Hipócrates, por sua vez, escreveu um tratado inteiro a respeito do tema. Em Sobre os Ares, Águas e Lugares, observa os fenômenos climáticos e geográficos como propiciadores de moléstias. Em seus Aforismos faz ampla menção aos agentes apontados pelos chineses. Por outro lado, quase não há diferença nos métodos terapêuticos propostos por hipocráticos e chineses. Ambas as medicinas propõem exercícios respiratórios, ginásticas, dietas e jejuns, massagens e sangrias como tratamento. Divergem pouca coisa no exame clínico. Os chineses procuram ler na tomada do pulso o prognóstico, observando a língua como um mapa de todo o corpo. Há ainda uma rica farmacopéia herbárea própria de cada cultura, mas seus princípios estão em sintonia. A medicina chinesa propõe o diferencial uso das agulhas como forma de restabelecer o equilíbrio entre yang/yin, para prevenir ou curar situações patológicas, detalhando a técnica no Ling Shu. O distanciamento entre essas duas cosmovisões ocorreu, sem dúvida, devido a Galeno (131-200 d.C.), o último médico grego afamado que a história fez servir ao último dos grandes romanos, Marco Aurélio. Galeno não sorvera da fonte ateniense em que bebera Hipócrates e jamais pôde compreender o sentido da doutrina hipocrática. Dela deteve sobretudo a técnica, jamais sua sabedoria. Chegou a provar que a urina se forma nos rins, realizou certos feitos e escreveu 300 livros, dos quais 118 sobrevivem, eivados de superstição misturada a uma boa técnica e confessa arrogância. Ao contrário de Hipócrates, só relatou seus sucessos terapêuticos, nunca suas falhas. Galeno era monoteísta na acepção mais reducionista do termo, só aceitando um deus e uma verdade, o que facilitou bastante para que suas idéias ganhassem força, propagadas pelo cristianismo, que se alastrou pelo Império Romano desde o Edito de Milão, assinado por Constantino, em 313 d.C.
Galeno foi tão prestigiado quanto Aristóteles (384-322 a.C.) pela Escolástica, que encontrava em ambos as provas de que a doutrina cristã era a única verdade sobre a Terra. Paracelso (1493-1541 d.C.), indignado por razões desse tipo, comemorou seu doutorado na Universidade de Medicina da Basiléia de modo original, queimando livros de Galeno em praça pública, acusando-o de não compreender Hipócrates. Corruptela da ciência hipocrática, a medicina galênica estruturou-se, com o passar dos séculos, num terreno dominado pela lógica aristotélica, que desembocou vitoriosa no século 17 sob o nome de ciência moderna, marcada pelas idéias de Galileu e Newton. Nesse exato ponto renasceu a serpente de Asclépio como pensamento médico ocidental, tendo há muito perdido o fio da meada que lhe permitia fazer o diagnóstico sindrômico e energético das moléstias, conforme rogavam as antigas tradições. A alopatia, desde então, nada mais é que o aprimoramento científico da medicina galênica, ao mesmo tempo um mero equívoco conceitual sobre aquilo que Hipócrates chamara ciência dos opostos. Curiosamente, a alopatia sempre ofereceu resistência ao saber médico oriental. É compreensível que a rejeite, posto que aceitamos mal o que pouco entendemos. Entretanto, desde que a acupuntura entrou no Ocidente pela França, no século 19, vem sendo aceita em muitos países e tem se revelado eficiente terapia. Só em 1995, porém, foi reconhecida pelo nosso Conselho Federal de Medicina. Agora aí estão os médicos querendo a prerrogativa exclusiva de sua prática, alegando que nem os enfermeiros possam exercê-la, por falta de conhecimentos anatômicos, principalmente. Fico pensando o que ocorreria se os enfermeiros levassem a lógica ao pé da letra e deixassem de aplicar as injeções, já que o fazem com agulhas até maiores do que as de acupuntura. E minha consciência manda declarar: aprendi acupuntura inicialmente com o dr. Lino Menzato Filho (1946-1987), médico neurologista que, por praticar acupuntura numa época em que ela não estava reconhecida, chegou a causar incômodos ao douto saber tanto quanto Paracelso o fizera no passado. Hoje, pratico a arte, porém, não me furto ao aprendizado que recebo de uma senhora oriental, que não é médica, mas detém a técnica pelo número de anos que eu tenho de vida. E ela corre o risco de perder seu direito de exercer a arte de inserir agulhas por conta de decisões políticas de um Senado que vive pressionado por interesses corporativistas da classe médica, por medicinas de grupo e indústrias far- macêuticas dispostas a dominar todo esse mercado. O que fazer? Ainda que Galeno me autorize a cometer o pecado da soberba diante de qualquer cura que porventura aconteça, tenho ética suficiente para reconhecer que, por mais que eu estude acupuntura, ainda estou muito longe da experiência alcançada pela citada senhora oriental, que nunca se formou na alopatia. Reflitamos todos sobre os pequenos equívocos que, com o respaldo da ciência, podem promover as maiores injustiças! |
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