O Virtual Como Dispositivo na Clínica Institucional*

Simone Mainieri Paulon1

 

A crescente demanda social por diferentes formas de trabalho com a subjetividade contemporânea, a ineficácia de muitas das tentativas de mera transposição dos ensinamentos freudianos ao âmbito coletivo são alguns dos limites que nos têm feito pensar uma intervenção clínica fora do tradicional setting psicanalítico.

 

Os sujeitos que sofrem psiquicamente nem sempre têm clareza sobre aquilo que os faz sofrer. Geralmente não sofrem sós, ou a dois, ou a quatro paredes. Os sujeitos adoecem na vida, e a vida está em toda a parte, estruturada em instituições.

 

Podemos nesta medida pensar que o corpo que adoece, sofre, goza não é uma abstração de um certo ramo científico - dos médicos quando chega à organização hospitalar, dos fisiatras quando chega à academia, dos psicólogos quando chega à instituição manicomial... Não! O corpo que indica um sofrimento está marcado por várias instituições: quando atinge alguns desses espaços organizados para "cuidar" dele já chega marcado por uma educação autoritária, por uma sexualidade moralista, por uma produção econômica exploradora, por uma sociedade, enfim, que exige adaptação a inúmeras instituições.

 

A queixa tão corriqueira de que as instituições que construímos são fonte, antes de sofrimento do que de qualquer satisfação possível, amplifica-se na escuta clínica carregando para o espaço analítico infindáveis coletivos que, em seu trânsito conturbado, parecem falar da emergência de novas formas de sofrimento psíquico, novos modos de subjetivação. Estaremos instrumentados para enfrentá-los? Estaremos dispostos a escutá-los? Até que ponto nosso instrumental freudiano dá conta das questões que se colocam emergenciais em tempos de "novos dilúvios"?

 

Cartografar o percurso do desejo através dessas suas estranhas estratificações, onde ele parece se revelar pelo seu revés, pode ser um curiosa aproximação aos processos de subjetivação contemporânea. Afinal, como referiu-se Naffah Neto às instituições: "Essas virtualidades imanentes ao desejo permanecem, nesse sentido, tanto mais ativas quanto mais ampla a multiplicidade dos caminhos por onde se enveredar a produção inconsciente e, ao contrário, tanto mais inativas quanto mais essa produção seja filtrada e unidirecionada." 2

 

Isso põe a necessidade de explicitarmos melhor o que nos leva a formar estas e não outras instituições. Remete-nos, ou acaba mesmo se confundindo, com a questão da formação desejante de nosso tempo. Remete-nos, às intrincadas relações entre inconsciente e instituição e acaba nos confundindo em relação aos nossos equipamentos para embarcar nesta obscura "viagem" pela subjetividade de um novo milênio.

 

Este ensaio não se proporá obviamente a tantas explicitações. Não apenas pelos limites cabíveis a uma coletânea de textos como esta, mas também pelos próprios limites do momento da pesquisa onde ele se insere.

 

Vimos trabalhando na perspectiva de trilhar um caminho em busca da viabilização - ou, quem sabe, da desilusão - de uma clínica genealógica institucional o que requerá, por certo, aprofundamentos teóricos bem maiores do que aqui faremos no que tange à gênese das instituições. O desassossego, entretanto, que gerou tal pesquisa é fruto de algumas emergências, que reúnem questões e pensadores deste livro e que nem sempre aguardam o tempo de nossas formulações acadêmicas. Daí a vontade de transformar um desassossego difuso e solitário em um projeto de trabalho e pesquisa compartilhado Com outros desassossegados3!
Venha ou não um novo dilúvio, a necessidade de uma releitura da saúde e adoecimento psíquico, que remeta a uma concepção ampliada da clínica, pode ser entendida como uma questão do laço social contemporâneo. Laço tão mais fluido, tênue, múltiplo, esquisito, esquizo, que parece demandar um outro jeito de relação, mutabilidades de intervenção. Trataremos, então, num primeiro momento, de aproximar as noções de desejo e instituição, pois tais conceitos parecem-nos um equipamento interessante aos navegadores das novas subjetividades.

 

Em seguimento à questão: "Como o percurso do desejo se conformou às nossas atuais instituições?" avançaremos um pouco na leitura da psicanálise trágica para pensarmos a tarefa analítica através de uma certa compreensão dos processos de produção de saúde/doença.

 

Finalmente, propomo-nos a pensar o conceito do virtual como um possível dispositivo que pode elucidar o analista/cartógrafo em sua intervenção nesses processos. Como demanda irrefutável do contemporâneo, a questão do virtual parece clamar por um espaço de escuta subjetiva que ainda não se apresentou, ou padece de importância, nas clássicas intervenções institucionais.

 

Como ele, quem sabe esses novos ventos ( e novas águas...) não tragam, também, novas possibilidades de navegação para os momentos diluvianos que parecem se avizinhar.

 

AS INSTITUIÇÕES E OS TORTUOSOS CAMINHOS DO DESEJO (E DAS PRÁTICAS PSI)

Desejo que esses investigadores que estudam a alma ao microscópio, sejam criaturas generosas e dignas, que saibam refrear o coração e sacrificar os seus desejos à verdade, a toda a verdade, ainda à verdade simples, suja repugnante, anti-cristã e imoral... porque tais verdades existem. Nietzsche

 

O que se refere usualmente por instituição não parece, ao primeiro olhar, envolver qualquer produção subjetiva e muito menos implicar uma dimensão inconsciente. Leigamente confundidas com a idéia de entidades ou estabelecimentos, as instituições costumam ser designadas como meros lugares que - por qualquer motivo geralmente imperceptível a quem deles se utiliza - conquistaram certa garantia de sobrevivência ou atingiram um grau tal de organização que os tornou "merecedores" do título.

 

Nesta concepção, o lugar onde trabalhamos, o clube que freqüentamos, a seita de que participamos não pode mesmo parecer campo de qualquer intervenção psicológica. No máximo, a associação possível entre um trabalho com a subjetividade e estes "lugares" onde as pessoas simplesmente se encontram seria com um caráter organizativo ou intenções adaptativas, que podem até ser compreendidas como intervenções nas relações interpessoais, mas está longe de justificar uma abordagem psicanalítica.

 

Só que nem esta é a única compreensão de instituição, nem a psicanálise manteve-se apartada desta discussão. De fato há todo um trabalho - no qual, em boa parte, sustentamos nossas argumentações4 - que veio tratando da dimensão inconsciente das instituições e, para fazê-lo, inevitavelmente recorreu aos ensinamentos de Freud.

 

Mas este foi um caminho tortuoso. Passando pela filosofia, direito, sociologia, fenomenologia, psicologia, com nuances não menos diversas dentro de cada uma dessas áreas de estudo, a questão das instituições não avizinhou-se da psicanálise sem percalços. Daí nossa compreensão ( e pretensão) de que este caminho também não esteja terminado. Sequer esteja suficientemente bem explorado.

 

Timidamente aproximada à psicologia através das primeiras correntes da Psicologia Social, a instituição emergirá no campo das ciências humanas reforçando a dicotomia Indivíduo-Sociedade. Associada, é claro, exclusivamente, ao pólo social (plano molar) a instituição encarnaria, ainda, tudo que de mais instituído, reprimido e repreensível, nele se encontrasse.

 

Sem retirar o mérito que circunstancialmente teve uma leitura psicológica que propunha um olhar menos restrito à natureza do sujeito, ao enfatizar apenas o aspecto instituído do conceito de instituição, as psicologias sociais transformaram o trabalho institucional numa espécie de atividade militante, onde a redenção do sujeito se daria - meio magicamente - através da libertação de tudo que se relacionasse às instituições.

 

Esta conotação libertária que se dava ao trabalho com (contra, para ser mais precisa) as instituições justifica uma passagem importante da psicologia cientificista do início do século a uma psicologia social de bases materialista-dialéticas, que - por razões óbvias - floresce muito mais em solos latino-americanos do que no ambiente europeu5.

Sem compreender exatamente toda a disputa teórica e ideológica que circundava as diferentes concepções de instituição, a concepção jurídica foi sustentáculo, por alguns anos, de muitas de nossas práticas psicológicas cujo objetivo parecia adequadamente contemplado na seguinte proposição: "Estar em instituição meramente instaura a falta que produz o desejo de escapar dela... ou, quem sabe, de a ela retornar sempre para lamentar o quanto não nos permite?"6


Imbuídos do espírito redentor do maio de 68, munidos dos imprescindíveis conceitos freudo-marxistas de subjetividade e da respectiva práxis que deveria libertá-la, os psicossociólogos tomavam as instituições como verdadeiras muralhas, monolíticas represas erguidas contra qualquer movimento desejante.

 

Duas práticas basicamente daí decorriam: aquelas "pró-desejo", que tomavam a intervenção analítica como equivalente a "explodir muralhas"; e as práticas mais conformistas que tomavam como tarefa terapêutica ajudar as pessoas a conviver com elas, achando formas adaptativas de circular, driblar ou até se alojar nos "muros da vida". Duas variantes de resultados semelhantes: "Instituições: ame-as ou deixe-as".

 

Só que, ambas assentadas na concepção jurídica de instituição, não percebiam os arrimos desejantes que sustentavam estes muros. Não percebiam que as instituições são como estátuas de areia7: aparentemente imóveis e intocáveis, mas constituídas de grãos que se movimentam imperceptivelmente de forma a garantir sua forma sempre arriscada a sucumbir ou deformar-se frente à força da próxima onda.

 

Criticar instituições, dizer que nada temos a ver com elas, contrapormo-nos, confrontá-las, brigarmos dentro delas, propor saídas a elas, ensaiar essas saídas, odiar não consegui-las... não são movimentos exatamente originais pelo menos àqueles que têm tentado levar a vida de forma um pouco mais reflexiva e interessante.

 

O mais complicado é que quem faz essas instituições, ou seja, quem estabelece esses padrões de exigência e adaptação são os próprios homens que, em seguida, queixam-se da "sociedade" que lhes impões normas e valores. Estar em instituição meramente instaura a falta...?

 

Se procurarmos, a partir daí, definir o caráter mais geral da instituição, seja o Estado ou outra, tenderíamos a concluir que ele consiste em organizar as supostas relações poder-governo, que são relações moleculares ou `microfísicas' , em torno de uma instância molar: O Soberano, ou A lei, no Estado; o pai, na família; o dinheiro, o ouro, ou o dólar no mercado; Deus na religião, O sexo na instituição sexual.8

 

Dito de outra forma, a vida em instituições é feita por todos nós que passamos criticando as instituições que construímos. É a própria atualização do que Freud chamou de Mal-Estar causado pela luta eterna entre os desejos mais narcísicos e as leis que viabilizam a cultura.

 

Se queremos, (e precisamos!) ampliar as possibilidades de produzir saúde e sair de uma posição mais passiva e corporativa de quem fica esperando a doença lhe procurar seja lá onde for - no hospital, na academia, na clínica - é hora de levarmos um pouco mais dos conhecimentos acerca do sofrimento psíquico lá onde ele se origina e produz, lá onde as instituições começam a se afastar dos desejos. É hora, de outro modo, de pensarmos a clínica psicológica menos como mera ampliação de campo de atuação da mesma psicologia racional de sempre (no estilo psicologia "aplicada" às instituições) e mais como desdobramento teórico-metodológico de uma psicanálise trágica que seja capaz de se arriscar nos mistérios do mundo, tomando "a vida como ela é ".

 


INSTITUCIONALIDADE E NIILIZAÇÃO DA VIDA
(Grandes Instituições para pequenas almas)


"A tendência é satisfeita por meios que não dependem dela" anunciava Deleuze ao questionar-se sobre a utilidade das instituições. E é no rastro desta curiosidade que o filósofo falava da inevitabilidade de que a formação das instituições venha sempre acompanhada de algum constrangimento, sabotagem, transformação e sublimação. "De tal modo que a neurose é possível"9 , concluia. E, pior, tanto mais possível quanto mais direta a possibilidade de satisfação oferecida pela via institucional.

 

A relação entre a produção inconsciente e o filtro ou bloqueio que as instituições acabam operando mereceria, como comentamos, aprofundamentos outros que aqui não caberão. Parece-me oportuno, entretanto, para os interesses deste artigo, ressaltarmos este processo de embotamento criativo, embotamento dos movimentos vitais a que Deleuze referiu como um fenômeno de redução que as instituições impõem ao desejo.

 

Como se opera tamanha redução? Perguntávamo-nos inicialmente: Como o desejo seguiu tal percurso?.

 

Quantas de nossas instituições suportariam o teste da potência de vida,? Gostaria eu de retornar eternamente a este instante e viver este casamento assim como o fiz? E se este momento de minha relação com meu trabalho for eternamente este momento terei eu sido o profissional que quero ser? Se esta aula que assisto/aplico/replico for "A" aula de minha vida quereria eu tê-la feito assim? Seria esta a experiência de família que quero produzir? Minha inserção política constrói uma cidadania como quero instituir em meu país? E se isso for tudo, for para sempre, retornar eternamente... terá tido sentido minha vida? Tenho feito deste presente o que pensaria um romântico para seu futuro ou um saudosista para seu passado?

 

Duro teste de valoração da vida este que nos propôs Nietzsche! Duro modo de enfrentar o presente. Difícil jeito de imaginar a existência. Cruel maneira de avaliar nossas instituições: estas curiosas elaborações humanas de uma satisfação possível.

 

Por que mesmo seria esta uma provação tão difícil? Por que será, ainda hoje, tão áspero a nossos ouvidos cristãos o som de nosso próprio eco?

 

Encontro parte deste questionamento em Deleuze quando afirma que "É preciso reencontrar a idéia de que a inteligência é coisa social mais que individual, e que ela acha no social o meio intermediário, o terceiro meio que a torna possível. (...) Nós reencontramos a conclusão seguinte: o homem não tem instintos, ele faz instituições." 10

 

Seriam, então, as instituições um fiel e terrível espelho de nossos modos de existência? Seremos então tão mesquinhos, intragáveis e pequenos quanto aquilo que, em geral, achamos delas?

 

Pensar as instituições passou a representar, desde então para mim, pensar o paradoxo que a afirmação deleuziana nos aponta. Se, como ele, entendermos que o tipo homem é um projeto de formação de instituições, deveríamos imaginar instituições como lugares do desejo, da singularização, produção de vida.

 

Vemos, ao contrário, o processo de institucionalização como espaços de apequenamento, estrangulamento desejante, encontro de últimos homens.

Por quê? Como se opera tamanha inversão de valores?

 

Daquela forma organizada de busca de satisfação, que a experiência individual transformou em tendência da espécie, parecemos tão completamente distantes que já pouco parece restar de "humano" a estes meios institucionais por nós inventados. As figuras kafkanianas de homens que se transmutam em monstros-animais que se confundem novamente com homens são fortes expressões desta trajetória.

 

Parafraseando Toscani11 : Não seriam as instituições, como a publicidade, um desses cadáveres que nos sorri? Aquele sorriso enganoso do morto que nos deixa, assim, sem saber se é uma última imagem do falecido ou um truque da habilidade do coveiro Não creio que elas estejam mortas, mas estranhamente também não é fácil encontrar indicativos de vida dentro delas.

 

Também Nietzsche ao buscar a figura do Sacerdote como metáfora da instituição12 assinala este caráter decadente da sociedade ocidental que cristalizaria, nos aglomeramentos humanos, a descaracterização dos valores mais fundamentais à existência: "O verme como apogeu" seria a contundente referência por ele feita ao processo de adoecimento do homem moderno que não apenas habita, mas constitui ativamente as instituições que hoje conhecemos e vivemos.

 

O desafio apresentado pela tábua de valores nietzschianos pode re-apresentar a relação instinto-instituição através de um tipo de filtro que a transformaria em seus fins: o filtro moral. Tomar os valores morais como a mediação por excelência de nossa sociedade ocidental abre um caminho para se pensar a gênese institucional.

 

Tipos fracos, dependentes, parasitários são os que, muitas vezes, mais comodamente se instalam no poder, numa total inversão àquilo que Nietzsche pensava como valorização da vida. Forte para Nietzsche é o que muda, o que tem poder para transmutar. Fraco é o que conserva, mantém. É uma espécie de anti-darwinismo pois, para Darwin, os fortes são os mais adaptados, e para Nietzsche são os mais extemporâneos, porque impõem valores, não podendo mesmo ser reconhecidos pelos valores de sua época. Forte, nesta perspectiva, é quem exerce seu poder de mutabilidade, quem vai ao limite de sua força. Fraco é quem está separado dela e re-sente sempre o mesmo. O equivalente às noções de saudável e doente que Canguillem13 chama de capacidade de ser normativo em oposição à condição de ser normal.

 

De um ponto de vista extra-moral, o 'escravo' é um fraco, um infeliz que denomina 'malvado' o aristocrata. O tipo forte de homem. A moral judaico-cristã, total inversão dos valores positivos da ética aristocrática, expressa um enorme ódio contra a vida - ódio dos impotentes - contra o que é positivo, afirmativo, ativo na vida, negação da vida que tem justamente a função de aliviar a existência dos que sofrem. Em uma palavra, é niilista.14

Apresenta-se aí uma possível relação entre a gênese das instituições e nosso devir-escravo. Uma genealogia institucional pareceria indicar um caminho para análise do percurso moral dos processos de institucionalização. A gênese do próprio sentimento moral aparece, portanto, como possível ponto de partida a uma releitura da clínica institucional.

 

Se o movimento que produz as instituições é aprisionado, como mesmo um rápido olhar parece indicar, por um circuito-escravo, então a institucionalidade apresenta sua faceta de coartação e apequenamento das forças da vida. Daí o devir-escravo constrói um mundo de representações monolítico, instituído de forma tal que as instituições aparecem como guardiãs e prisioneiras da moral.

 

Mas será só isso que nos mantém em instituições? Será para isso que as criamos e sustentamos? Estaremos fadados a carregar tais instituições como fardos do nosso inexorável destino de seres civilizados? Seremos todos, então, meio "prisioneiros da própria partida??"


BRECHAS INSTITUCIONAIS E DEVIR-HERÓI
(Quando as instituições fazem água...)

Acho que não, ou, pelo menos, que isto não nos ajudaria a ir muito além com nossa questão acerca das formações desejantes. Os arrimos das muralhas que erguemos é que precisam ser tocados. Ora, não foi todo este o esforço de Foucault em sua genealogia do poder? "Foucault dizia: a gente cortou a cabeça do rei, mas não cortou a cabeça do rei na nossa cabeça, nos moldes em que a gente se representa o poder continua o rei, o rei manda na guilhotina" 15

 

É aí que algumas trilhas se apresentam ao cartógrafo equipado dos movimentos do desejo de seu tempo.

 

Afinal, as instituições que fazemos e de que somos feitos não são homogêneas. E porque "a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte"16 é que podemos pensar o que mais estas instituições que criamos e as quais rejeitamos possam estar dizendo de nossa subjetividade. Acho que ali, onde elas "fazem água", onde as fissuras aparecem é que mais nos revelamos. Pelo menos tentamos!

 

Se, ao primeiro olhar, o que esses sacerdotes/instituições explicitam é uma possível gênese relacionada a nosso devir-escravo, um olhar mais acurado haverá de encontrar, também e paradoxalmente, algum resquício de um devir-herói que inventa fissuras, cria porosidade na aparentemente monolítica instituição da moral.

 

Os movimentos que produzem rachaduras às instituições são aqueles que expandem e intensificam a vida. Então, poder-se-ia dizer que há um certo percurso trágico nos processos instituintes. Há algo de virtualização da subjetividade que inventa formas de sobrevivência do desejo onde ele parecia já não subsistir.

 

Este o sentido do trágico que Nietzsche buscou no apogeu da civilização grega para pensar a vida. Ao transformar uma essência perigosa numa forma artística, a tragédia dá possibilidades, potenciais de vida, cria mais vida... expande-a.

 

Para ele, não existe o querer em si, puro, mas a vontade é vontade de algo. Reside aí sua diferença de Schopenhauer. O que se quer? Não pode ser só a manutenção da vida, seria regredir. Mais que preservar a vida se quer MAIS. Se quer mais da vida do que querer-se a si mesma. A vida como vontade quer ultrapassar-se, quer PODER. A vontade de vida quer potência. A vontade de potência quer um a mais, mais de potência, uma produção de diferença.

 

A vontade de potência é afirmação da vida na sua tragicidade.

 

Uma força quer dominar e comandar, criar algo novo. Dizer-se, entretanto, que forças ativas são dominantes não significa que estejam no poder. As forças ativas são plásticas, mudam e fazem mudar, se transformam e àquilo em que incidem.

 

Apesar de serem originárias no que temos de pior, mais mórbido, as Instituições parecem sobreviver da vontade de potência de quem faz fissuras ao circuito escravo que nelas se instaura. Linhas de fuga existencial que em seu movimento de permanente desterritorialização insistem em criar territórios criativos. Daí nos agüentam, seduzem e ejetam simultaneamente . Daí as agüentamos, explodimos e construímos sucessivamente. Abrem-se aí outras possibilidades, como nos diz Pelbart:

 

A resistência já sem um lugar, mas com todos os lugares possíveis, o que quer dizer uma guerra mais múltipla e disforme. E aí as resistências não são inevitáveis. Não há necessidade ou inevitabilidade histórica. Tudo é possível, mas é precário, quando acontece é necessário, e pode proliferar mas também pode recuar. Tem como que uma precariedade constitutiva mas também uma possibilidade infinita. 17

 

Se a pequenez de todos nós - nosso devir-escravo - inventa instituições, mas nossa vontade de poder inventa linhas de fuga às mesmas, rumamos para entender a tarefa analítica como a cartografia dessas últimas. Isso nos demandaria um cuidado especial, a essa altura, em pensar o que poderia ser produtor de vida no processo institucional.

 

Aquele teste da potência de vida, que ensaiamos no princípio, bem que poderia servir-nos como critério cartográfico do analista institucional!


EQUIPANDO O ANALISTA /CARTÓGRAFO PARA O NOVO DILÚVIO


O que escapa à história, não é o eterno, mas o que Nietzsche chamou de intempestivo ou inatual, Foucault de atual, Deleuze de devir, ou acontecimento. Pouco importam os nomes, o que interessa é que nesse nível que se engendra o nascente. É sempre a partir de uma linha de fuga, que é portanto uma fuga temporal, na medida em que rompe uma temporalidade e faz fugir a história, que se instaura um acontecimento, um novo espaço-tempo. Peter P. Pelbart

 

Acontecimentos indicariam, então, processos de engendramento do nascente - aquilo que, de alguma forma, nos dispusemos a rastrear na tarefa analítica quando a tomamos por potencializadora de vida.

 

Voltemos, então à pergunta inicial: Dispomos de instrumentos para a escuta clínica do contemporâneo? Os neuróticos clássicos, como alguns psicanalistas têm chamado, parecem ser cada vez mais raros ao setting analítico. Aliás o setting analítico parece, em si, cada vez mais raro... Não sem tempo!

 

Obsessivos-compulsivos, histéricas conversivas ... dão lugar a stressados, work-alcoholics, anoréticas que anunciam outro tipo de esgotamento, marcas de outros tempos, limites sintomáticos de uma subjetividade "jogada no fora", exposta a todas (e a nenhuma) injunção institucional. O desmoronamento identitário dos drogaditos ou do paciente de síndrome do pânico não falam de uma insuportabilidade aos padrões de vida instituídos?! A anorética não recusa, em sua morbidez, o padrão estético que lhe está dado como único!?

 

É nesta perspectiva que os processos de estratificação da subjetividade expressos nas instituições podem apontar um caminho interessante para a tarefa analítica.

Para Lévy18 , os processos de institucionalização inscrevem-se na ordem da criação como reificadores, estratificadores das forças e objetivos existentes nos acontecimentos. No contraponto destes estariam os processos de atualização que criam soluções particulares aos problemas do aqui e agora num processo infinito de atualizações e virtualizações que resultam no inusitado, no novo que extrapola a realidade potencialmente existente.

 

A partir da compreensão de Deleuze, Lévy acentua a importância de compreendermos o virtual como uma dinâmica, que não apenas transforma a realidade num conjunto de possíveis, mas eleva a potência de uma dada entidade. É neste aspecto inventivo, não repetitivo, do que está instituído que o processo de virtualização se engancha especificamente a nossa questão de saúde vista como expansão de vida.

 

Definido por Lévy como "complexo problemático, nó de tendências ou de forças que acompanha uma situação, um acontecimento, um objeto ou uma entidade qualquer, e que chama um processo de resolução: a atualização"19 , o virtual é aqui tomado como conceito filosófico e não meramente campo tecnológico. Isso nos permite pensar em que medida esta mudança paradigmática do contemporâneo apresenta saídas criativas ao enrijecimento das relações que se apresentam nas estruturas instituídas.

 

Por um lado, a entidade carrega e produz suas virtualidades: um acontecimento, por exemplo, reorganiza uma problemática anterior e é suscetível de receber interpretações variadas. Por outro lado, o virtual constitui a entidade: as virtualidades inerentes a um ser, sua problemática, o nó de tensões, de coerções e de projetos que o animam, as questões que o movem, são uma parte essencial de sua determinação.20

 

Se o virtual atualiza as questões determinantes de um acontecimento, podemos entendê-lo como nascente do devir que produz efeitos e que o mundo digital só faz potencializar. Como nascente do devir, o virtual deixa fluir novos fluxos antes encarcerados nos estratos, no mundo instituído dos apenas "possíveis".

 

Concebido como um dos principais vetores de criação de realidade, o virtual pode constituir-se , então, em dispositivo clínico. Na medida em que proponha um caminho a ser trilhado do plano molar ao molecular, a virtualização da subjetividade corresponde ao próprio processo de singularização, enquanto a estratificação da subjetividade corresponde à institucionalização.

 

Esta função visivelmente conservadora das instituições é convergente à posição de Naffah Neto quando define as instituições por "espécie de superfície cristalizada, o campo mais denso e sedimentado da produção inconsciente que, justamente por estar cristalizado em identidades fixas e significados padronizados, passou a constituir o campo preferencial da consciência assim dita civilizada". 21

 

Tais "identidades fixas correlatas às consciências" se oporiam aos campos fluidos do inconsciente onde as representações dariam lugar aos fluxos, intensidades, movimentos de alteridade e multiplicidades. Campo, aí sim, "por excelência" da intervenção analítica. Mas se quer a psicanálise, como me parece querer, operar na transformação micropolítica, como desdenhar este campo onde justamente os acontecimentos parecem irromper? Este campo em que o movimento desejante sedimenta territórios definidos e transforma-se em pura representação?

 

O processo de estratificação do desejo pelo campo denso das instituições implica, como vimos anteriormente, também um trabalho do desejo. Desejo em seu revés. Redirecionado, desviado de sua intencionalidade, deturpado em sua finalidade, talvez, mas trabalho desejante. Nesta medida, o desafio há tanto proposto por Freud no sentido de pensarmos uma teoria das patologias culturais encontraria eco nas práticas analíticas institucionais. Mas não só.

 

Pensarmos o processo desviante dos fluxos desejantes nas instituições, a experiência subjetiva mobilizada pelo fato institucional, equivaleria a se elucidar, sob outro ângulo, a própria realidade psíquica. Virtualizar a compreensão da subjetividade só para dizer de outra maneira.

 

Equiparmo-nos, por fim, para a tarefa analítica em tempos de "novos dilúvios" parece demandar que abandonemos muitos de nossos pragmáticos instrumentais científicos que tanto nos foram úteis para pisarmos os firmes territórios de especialismos dos tempos modernos.

 

Navegarmos pela subjetividade em tempos de novos dilúvios requer, talvez, ainda, uma sabedoria trágica, um certo amor pelo que virá, pelo que a vida nos reservará, que - desde a outra virada do século - um poeta22 já anunciava. O que podemos amar no homem é ser ele transição E naufrágio ...

 


BIBLIOGRAFIA CITADA:


BARROS, Regina Benevides. Grupo: A afirmação de um Simulacro. Tese de doutorado (não
publicada), São Paulo: PUCSPS, 1994.

CANGUILLEM, Georges. O Normal e o Patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

DELEUZE, Gilles. Instinto e Instituições. In: DOSSIER Deleuze. Hólon: Rio de Janeiro, 1991.

________ . Foucault . São Paulo:Brasiliense, 1991.

HAUTER, Cristina. Tempo e Subjetividade. Curso ministrado na UFRGS. Porto Alegre, ago 1999.

LAPASSADE, Georges. Grupos, Organizações e Instituições. Francisco Alves. Rio de Janeiro. 1983.

LÉVY, Pierre. O que é o Virtual? São Paulo: 34, 1996.

LOURAU, René. A Análise Institucional. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.

MARTIN-BARÓ, Ignácio. Acción e Ideología: Psicologia Social desde CentroAmérica. San
Salvador: UCA, 1988.

NAFFAH NETO, A. O inconsciente: Um estudo crítico. Ática: São Paulo, 1985.

NIETZSCHE, F. Para além do Bem e do Mal. Hemus:São Paulo, 1977.

________ . Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Rio de Janeiro:
Civilização brasileira, 1986.

PELBART, Peter Pál . A nau do tempo rei: sete ensaios sobre o tempo da loucura. Rio de Janeiro:
Imago, 1993.

RODRIGUES e SOUZA. A análise institucional e a profissionalização do psicólogo. In: ANÁLISE
Institucional no Brasil. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1987.

TOSCANI, Oliviero. A publicidade é um cadáver que nos sorri. Ediouro: Rio de Janeiro, 1996.

 


Notas

* - Texto publicado no site Instituinte em 26 de julho de 2002.

1 - Psicóloga, docente universitária com especialização em Psicologia Social (PUCRS), mestrado em educação (UFRGS) e em doutoramento em Psicologia Clínica (PUCSP). É sócia da INTERSECÇÃO: Instituições e Clínica onde desenvolve atividades de análise institucional e psicoterapia individual e em grupo.

 

2 - NAFFAH NETO, Alfredo. O inconsciente: Um estudo crítico. Ática: São Paulo, 1985 (p.28). O grifo é meu.

3 - Refiro-me aqui, além do meu ingresso no núcleo de singularização do Programa de Pós-graduação da PUCSP para desenvolver pesquisa sobre a Clínica Institucional, aos produtivos encontros com os professores Arthur Hyppólito de Moura e Rogério da Costa da Ddic, que me colocaram em contato com a obra de Pierre Lévy.

4 - Basicamente aqui me refiro às análises já clássicas do institucionalismo francês: LAPASSADE, Georges. Grupos, Organizações e Instituições. Francisco Alves. Rio de Janeiro. 1983. e LOURAU, René. A Análise Institucional. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.

5 - Ver, para maiores detalhes desta trajetória da Psicologia Social, MARTIN-BARÓ, Ignácio. Acción e Ideología: Psicologia Social desde CentroAmérica. San Salvador: UCA, 1988.

6 - RODRIGUES e SOUZA. A análise institucional e a profissionalização do psicólogo. In: ANÁLISE Institucional no Brasil. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1987 (p.19).

7 - Conforme BARROS, Regina Benevides. Grupo: A afirmação de um Simulacro. Tese de doutorado, São Paulo: PUCSPS, 1994. (não publicada).

8 - DELEUZE, Gilles. Foucault . São Paulo:Brasiliense, 1991. p. 16.

9 - DELEUZE, Gilles. Instinto e Instituições. In: DOSSIER Deleuze. Hólon: Rio de Janeiro, 1991. (pg. 135 e 136, respectivamente).

10 - DELEUZE, Gilles. Instinto e Instituições. In: DOSSIER Deleuze. Hólon: Rio de Janeiro, 1991. (p. 137). O grifo é meu.

11 - TOSCANI, Oliviero. A publicidade é um cadáver que nos sorri. Ediouro:Rio de Janeiro, 1996.

12 - Conforme citado por HAUTER, Cristina. Tempo e Subjetividade. Curso ministrado na UFRGS. Porto Alegre, ago 1999.

13 - CANGUILLEM, Georges. O Normal e o Patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

14 - NIETZSCHE, F. Para além do Bem e do Mal. Hemus:São Paulo, 1977 (& 260)

15 - PELBART, Peter P. Texto extraído de gravação (não revisada) da palestra proferida em 24/11/94 na Role Playing Pesquisa e Aplicação em São Paulo.

16 - Letra de música dos Titãs.

17 - PELBART, Peter P. Texto extraído de gravação (não revisada) da palestra proferida em 24/11/94 na Role Playing Pesquisa e Aplicação em São Paulo.

18 - LÉVY, Pierre. O que é o Virtual? São Paulo: 34, 1996.

19 - Op. Cit. p. 16.

20 - Op. Cit. p. 16.

21 - NAFFAH NETO, A. O inconsciente: Um estudo crítico. Ática: São Paulo, 1985, (p.41)

22 - NIETZSCHE . Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Rio de janeiro: Civilização brasileira, 1986.


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