Nietzsche, a Psicologia e Outros "Bichos de 7 Cabeças"*
Simone Mainieri Paulon**
2001, bebês clonados, genoma revelado e a psicologia buscando inspiração num filósofo do século retrasado. Não parece que tem algo errado?!
Das duas uma: ou isto atesta o quanto esta também é uma profissão
ultrapassada que, como muitos têm se esforçado por demonstrar,
perdeu o bonde da história e já não sabe o que inventar
na tentativa de se atualizar; ou este tal filósofo sabia bem o que dizia
ao afirmar-se como um desses raros homens que nascem póstumos.
A perspectiva aberta pela leitura que o prof.Giacoia Jr. faz da psicologia
presente na obra nietzscheana - em seu livro "Nietzsche como Psicólogo"
recém lançado pela Editora UNISINOS - é um sedutor convite
para aderirmos à segunda hipótese.
Sem entrar na polêmica discussão do quanto há de inspiração - mais ou menos assumida - deste filósofo na criação da Psicanálise quem quiser que acompanhe o argumento de Nietzsche acerca do equívoco do processo civilizatório como veio se aprofundando no seio da modernidade saberá reconhecer sua atualidade no que tange à compreensão das questões subjetivas.
Tão admirado quanto combatido, Nietzsche parecia ter a exata dimensão
do impacto que causariam suas idéias no âmbito do pensamento ocidental.
Criticando, sem meias palavras, a aliança entre o primado da razão
com a lógica cristã como responsáveis pelo profundo processo
de esgotamento da vontade de vida, em muitos momentos ele parece ter antecipado
os sintomas de decadência da humanidade que hoje assistimos amplificados
com o advento da mídia contemporânea. Violência urbana, erotismo
banalizado, infâncias roubadas por relações pervertidas,
juventudes deterioradas em adições das mais variadas, corpos adoecidos
pelo trabalho esvaziado, Estados corrompidos, instituições esfaceladas...
não são exatamente temas pontuais identificáveis entre
as preocupações do filósofo. Mas todos eles estavam lá,
pululando entre os sintomas de retrocesso que ele percebia crescente numa sociedade
cujos valores afastavam-se cada vez mais da vida como valor maior.
Decadente, para Nietzsche, é uma sociedade que ao invés de perceber
como forte a capacidade de criação de valores, a ousadia de invenção
do novo, a coragem da transgressão ao instituído valoriza àqueles
que se resignam ao que está posto e desmerecem tudo o que não
conhecem.
Decadente, para Nietzsche, é a incapacidade de enfrentamento com a radicalidade
do destino, o medo ao que a vida pode nos apresentar de novo, o receio em lançar-se
aos infortúnios dos acontecimentos ao invés de apostar na possibilidade
de jogar o jogo da existência. Criar no lugar de imitar, expandir no lugar
de conservar, experimentar ao invés de só representar e ver que
jogo dá. Isto seria a grande saúde. Isto seria viver... "e
não ter a vergonha de ser feliz"!
O que disto vemos estampado em nossos cotidianos?
O sucesso e pavor despertado pelo recém premiado filme de Bodanzky nos dá uma boa dica sobre esta questão. Famílias "zelosas", filhos incompreendidos, técnicos alienados, valores corrompidos.
Solidão, perversão e instituição: eis uma boa combinação
para que a decadência se instale!
O sofrimento do protagonista da história de Carrano apresenta uma das
mais terríveis facetas da deterioração social a que a "evolução"
da civilização moderna parece ter-nos conduzido. Destoante da
moral dominante sintetizada nos valores pequeno-burgueses de sua caricata família,
o jovem transgressor é pego aviltando regras fundamentais de sua classe
social ao fumar um cigarro de maconha e sair para brincar com amigos pichando
muros de sua "límpida" cidade latino-americana. Como espécie
de "Estranho do Ninho" versão 3o milênio, o destino do
protagonista não difere em muito daquele celebrizado por Jack Nicholson
nos anos 70. Entregue às mãos daqueles que por sua formação
técnica devem "saber o que é bom para ele", o jovem
sofre todas as conhecidas agruras de usuários das instituições
psiquiátricas até ser devidamente normatizado e sair com as indeléveis
marcas cabíveis a um desviante da "moral e bons costumes" de
sua época.
O tema não é novo. O desfecho tampouco. Mas o "bicho de 7 cabeças" que foi feito em cima da inconformidade juvenil do personagem de Santoro com a mesmice de valores de sua família talvez ainda tenha muito a nos ensinar sobre o quanto temos a questionar as instituições que nos regulam. Não raro, como mostra dramaticamente o filme, nos estrangulam.
Nietzsche extemporaneamente parece ter percebido isto. Em uma de suas veementes
críticas aos valores sociais cristalizados em instituições
moralizantes como as ilustradas pelo filme - a familiar, psiquiátrica,
estatal, técnica, etc... - ele dizia que as desgraças do mundo
advinham "dos velhos contratos". Mais especificamente, enfatizava
que para "banir as desgraças do mundo" é preciso "declarar
guerra à velha sociedade, aos costumes, leis e instituições
sob a qual se assenta a tradição e a moral". Tarefa "singela",
aliás, que ele atribuiu "por excelência" à psicologia
intitulando-a "a Sra. de todas as ciências, para cujo serviço
existem todas as demais", a despeito da clássica função
até então exercida pela teologia.
Vale, entretanto, aqui lembrar que a tradição dos costumes e
a segregação daqueles que não comungam as opiniões
das médias maiorias não acontece por acaso. Silenciar as vozes
que denunciam uma realidade social controversa é o que justifica a criação
de tantas instituições repressivas. É como se a sociedade
pudesse se livrar de seus males simplesmente marginalizando os porta-vozes dos
desejos que não se encaixem ao que está prescrito como norma.
Só que a vida não é medíocre. É inusitada,
imprevisível, trágica e a qualquer momento nos exigirá
uma estratégia nunca d´antes experimentada, uma saída ainda
não pensada, um novo jeito de enfrentar o que virá. De repente
aquele emprego seguro foi pro espaço, o casamento que parecia ideal explodiu-se,
as certezas tão sólidas desmancharam-se no ar. E a gente tem que
virar outra pessoa! Achar um jeito outro de trabalhar, amar, viver passa a ser
um privilégio dos fortes - daqueles que souberam lançar-se às
incertezas do desconhecido, dos poucos que ousaram experiências de estranhamento,
não só de ensimesmamento. Usando uma expressão de Fernando
Pessoa, saúde, nesta perspectiva, é muito mais uma capacidade
de "outrar-se", descobrir outros dentro da gente, do que de cumprir
o mesmo e tedioso repertório de comportamentos prescritos pelos contratos
sociais.
É possível que a psicologia tal como se institucionalizou no
século passado, em muito ao lado da moral vigente e bons costumes, tenha
muito pouco a fazer pela ainda emergente tarefa de banir do mundo os velhos
contratos. Mas também me parece possível que resgatando com Nietzsche
a possibilidade de viver a vida como ela é, a psicologia possa vir a
ser uma outra coisa. Nem um bicho de 7 cabeças, nem uma cabeça
que se queira dona da verdade sobre o bicho-homem.
Notas
* - Texto publicado no site Instituinte em 05 de setembro de 2002.
** - Psicóloga, analista institucional, docente universitária com especialização em Psicologia Social (PUCRS), mestrado em educação (UFRGS) e doutora em Psicologia Clínica (PUCSP). É sócia da INTERSECÇÃO: Instituições e Clínica onde desenvolve atividades de análise institucional e psicoterapia individual e em grupo.