Álbum de Figurinhas e a Tragédia Humana
Renato Cabral1

 

Permitam-me discordar da velha e consagrada máxima socrática, o "só sei que nada sei". Analisando literalmente a expressão - como fazem alguns religiosos com o "livro" do altíssimo - ficaríamos em dúvida, se Socrátes, realmente queria dizer o que disse, ou se é o sentido figurado da expressão que devemos refletir. Mas é o sentido literal que chama a atenção e nos propõe o embate e o diálogo - estéril claro, pois o autor não está presente.

Seria ingenuidade e, aí sim, ignorância absoluta (que já é uma redundância) considerar que não conhecemos nada, talvez só uma pedra agiria assim, mas não vem ao caso, pois ela não saberia disso. Ignorar com toda a força da alma - as mensagens do mundo seriam então um silêncio total - seria uma dádiva; para alguns.
Nossa tragédia consiste, pois, não no "nada sei", mas sim, "no sabemos de alguma coisa", algo aqui, acolá, um pedaço disso, um pouco daquilo. No fim, um misto/híbrido de leitura de livro, bula de remédio e receita de bolo, um mosaico aparentemente harmônico e bem costurado. Mas, mais cruel ainda, temos que escolher o que fazer com isso; a pedra não. É essa trama conexa, como uma teia simétrica, que alimenta nossa fé no poder que tem a razão de conhecer a realidade; e em nossa liberdade para decidir para qual razão iremos dar a razão.

É isso a angústia primordial, no instante que o mundo nos solicita a dominá-lo - sobrevivência pura - lutamos a vida inteira para conhecê-lo e, depois que estamos neste barco enfrentando as ondas da experiência humana, é impossível nada saber; talvez ser indiferente, ter uma postura inautêntica perante os fatos e situações, mas não ignorar. Depois do espanto e da admiração iniciais, só nos resta uma dialética seca de engolir. Não é no mínimo estranho falar então em acomodação? O acomodado é no mínimo um mentiroso e sínico.

Seria bom que nada soubéssemos, pois a dor que o parto de um pensamento causa, poderia ser evitado. Isso não ocorre e não devemos nos sentir mal; está aí, nesses motivos e não a despeito deles, a possibilidade que todos os seres carregam.

Sócrates proferira sua máxima porque acreditava no poder do pensamento, do logos, da alma superior, que poderia conhecer a verdade absoluta. Seu pensamento justifica-se por causa de sua fé, em que o mundo possível, era o do depois de agora, e o mundo do corpo, da experiência sensível, um erro.


Essa é a nossa tragédia, sabermos, mas não o suficiente para calar nossa angústia, a de todos os homens. As falas, sejam políticas, filosóficas ou religiosas, tentam escamotear esse sentimento - que repito, a pedra não pode ter - dando-nos um pacote pronto, uma álbum de figurinhas em que todas já estão em seus lugares.

Neste álbum, a princípio, não é permitido colar a figurinha no lugar errado, posto que há orientações bem definidas a serem seguidas. Entretanto, por algum motivo, que todo mundo conhece, mas ninguém sabe dizer o que é, somos "descuidados" e sempre existem os momentos em que colocamos a figurinha no lugar "errado", criando um novo mundo dentro do já feito.

Nossa tragédia, que na verdade tem um ar duro e irônico de salvação, é termos que decidir no fim, onde colocar as figurinhas no álbum e, depois, conviver com isso por tê-las posto lá. Seria bom não saber nada e acreditar naquilo que nos é fornecido "gratuitamente", seria no mínimo mais fácil - para alguns isto é ótimo - preencher o álbum. Existe no entanto, uma fissura, uma nervura, entre nós e o álbum; se chama angústia, é de fato ela, que preenche os espaços, dá forma e conteúdo às figuras. Ela paradoxalmente é o signo de nossa tragédia e aquela que mais colore as linhas da nossa salvação.

 

Notas

1 - Graduando em Comunicação Social - Jornalismo pela Unit/Uberlândia. E-mail: [email protected]


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