Descartes e o “Homem Moderno”:
Antecedentes e Conseqüências Históricas

Paulo Cesar Gomes de Borba1

 

O século XVII foi abalado pelo surgimento de diversas máquinas que divertiam a aristocracia, estátuas mecânicas movidas à água existiam nos jardins Europeus. Mas a máquina que mais impressionou a época foi o relógio e seu impacto no pensamento científico. “Os relojoeiros foram os primeiros a aplicar teorias da física e da mecânica à construção de máquinas. Além dos relógios, foram desenvolvidos bombas, alavancas, roldanas e guindastes para servir às necessidades humanas” (SCHULTZ, 1981). Era o espírito mecanicista da época o “Zeitgeist” que foi do século XVII a XIX, a idéia central era de que o Universo podia ser comparado com uma grande máquina, “todos os processos naturais são mecanicamente determinados e podem ser explicados pelas leis da física” (SCHULTZ, 1981).

Descartes foi um mecanicista e muito estudou a respeito da mente e o corpo e seu funcionamento como uma máquina, mas foi sua obra a respeito do método científico que mais influenciou o mundo moderno. Para Descartes é na razão que se busca a certeza científica, mas para alcançar esta certeza antes é preciso afastar toda a possibilidade de dúvida.

É o que faz Descartes, quando afirma: “existe apenas um caminho para superá-la (a dúvida): não o que contorna, mas o que atravessa toda, esgotando-lhe todos os aspectos”. Ou seja: é impossível vencer a dúvida evitando-a ou pretendendo se instalar desde logo numa frágil certeza. Descartes aceita o desafio da dúvida para dar-lhe combate com suas próprias armas. E começa a duvidar, metodicamente, de tudo. Segue a sugestão de Montaigne: o campo de batalha final entre a certeza e a incerteza é o próprio eu.

Descartes descobre as idéias “factícias” que se referem ao mundo exterior, mais instáveis e que mudam constantemente. As idéias “fictícias” que variam de acordo com o arbítrio do sujeito e as idéias “inatas” que são mais claras e estáveis, “utilizadas pelos matemáticos” como por exemplo. São idéias que podem “pertencer a qualquer pessoa que às descubra, sem sofrer deformações subjetivas”.

Descartes então ainda tem dúvidas e imagina: “e se a realidade tôda fosse regida por um princípio maligno que justamente manifestasse sua maldade mais requintada ao fazer com que o homem errasse tôda vez que tivesse impressão mais forte de que estava acertando? No entanto aí surge a primeira certeza inabalável: “Se duvido, penso. E quanto mais duvido, mais repito em mim mesmo essa experiência: se duvidar de novo, pensarei de novo (a dúvida), e se quiser duvidar de que estou duvidando só posso fazê-lo pensando a dúvida de que duvido”. Porém , simultaneamente, outra evidência se impõe: “Se duvido, penso; penso, logo existo (como ser pensante)”. Surge a certeza que servirá de ponto de partida para a justificativa cartesiana do valor do conhecimento científico: o “cogito” (“penso, logo existo” - em latim: “cogito ergo sum”). Além de representar uma primeira certeza que escapa ao alcance de qualquer dúvida, o “cogito” passa a constituir o modelo para todo o tipo de conhecimento legítimo”.

A partir disso a ciência jamais seria a mesma e o homem mudaria com ela. Mudou todo um pensamento que se baseava no senso comum, o homem viu que existia sempre algo além das aparências vistas. Por exemplo: “Cena: um copo quebrado. Senso comum: “O copo quebrou porque foi submetido a um forte golpe”. Ciência: “O cristal do copo é constituído por pequenas partículas, ligadas por forças muito fracas. Um forte golpe é suficiente para eliminar esta ligação e decompor o copo em pedaços””. (LUNGARZO 1989)

No entanto, começam a surgir críticas à teoria de Descartes, segundo Mueller a física Newtoniana no fim do século XVIII começa a destrona-lo. Tanto em Descartes como em Hegel, em ambos os casos o método se volta contra o sistema. O método têm pouca flexibilidade no que diz respeito à questões sociais e subjetivas do homem.

“De Descartes conservou-se o livre exame e o critério das idéias claras e distintas como fundamento da supremacia da razão individual; assim a dialética da razão universal se voltará contra o hegelianismo como teoria pretensamente definitiva da natureza e do Estado”.

“Assim é que a crítica, à moda cartesiana, direta ou velada se exerce, desde os fim do século XVIII, sôbre todos os temas até então respeitados : crenças religiosas, problemas políticos e sociais, inspirada, simultaneamente, numa desconfiança nos sistemas excessivamente ambiciosos e num interesse cada dia maior pelas pesquisas concretas.”

“Caracteriza-se o século XVIII, por isso, por um alargamento da curiosidade nos mais diversos domínios e por uma extensão do espírito positivo que, de certa forma, o grande nome de Lavoisier (1743 - 1794 ) irá simbolizar. Curiosidades quanto ao passado (gosto nascente pela história: Voltaire, Hume), como em relação ao presente afastado (as descrições dos viajantes e missionários passam a ter grande importância).”(MUELLER, 1960)

É portanto no empirismo que a nova perspectiva cultural irá se revelar de forma mais clara e oposta à metafísica. O empirismo preocupa-se com os fatos, a experiência empiricamente comprovada, vivenciada.

O fundamento principal do empirismo é que o conhecimento humano não têm caráter absoluto, ou seja, o homem jamais pode atingir a verdade, de maneira definitiva, pois o conhecimento humano está enraizado nos fatos, e, por mais que o homem os observe e observe suas relações, não conseguirá descobrir neles necessidades.

A conseqüência dessa tese é um agir metodológico, uma leitura contínua da realidade e do acontecer dos fatos. As verdades obtidas, nesse processo de leitura tornam-se experiência passada e dependem, continuamente, de experiências futuras. “A leitura continua em ato; a verdade está sempre se fazendo e, muitas vezes, se refazendo; o homem não pode repousar em aquisições definitivas.”

O empirismo cria elementos céticos que vão ajudar ainda mais na ruptura da unidade cultural do ocidente e vão permitir uma diversidade de pontos de vista. O empirismo vai tirar do homem fundamentos definitivos e dogmáticos, negando a intuição intelectual e situando o conhecimento humano no plano do sensível ou do empírico.

Dois grandes influenciadores da ciência moderna além de Descartes foram Francis Bacon (1561 - 1626) e Galileu Galilei (1564 - 1642). Para Bacon a fonte do conhecimento são os fatos, que devem ser cuidadosamente observados, também devem servir de controle ao pensamento. Por outro lado Galileu diz que a finalidade da ciência é descobrir as leis que regem os fenômenos e essas leis devem ser expressas em linguagem matemática, o que para o homem moderno resultou no grande progresso técnico, o que gerou suas consequências. “O homem contemporâneo está preocupado em situar-se e mover-se neste mundo de coisas, está preocupado em possuir as coisas, usufruir delas e precaver-se de perdê-las. A ciência é a única porta de salvação para o homem assim coisificado.”

Mas, apesar de todo o conhecimento científico e técnico atual, o homem moderno ainda têm uma visão mágica da realidade, ainda está preso à crenças religiosas. Principalmente nas camadas menos abastadas financeiramente das sociedades, mas, também nas camadas abastadas existe esta visão, e é bastante difundida, pois atualmente existe uma burguesia que deseja ser intelectual e geradora de culura dominante, mas o poder de posses não consegue ser tudo e essa burguesia está presa a idéia de possuir tudo aravés do dinheiro, transformando o que poderia ser realmente intelectual e cultural em uma cultura “trash” e de senso comum.

O que existe também é um grande distanciamento da ciência, ela está fechada sobre si, não permitindo-se ou não sendo permitida a alcançar todos os patamares da sociedade. Por motivos financeiros, mesquinhos, o homem não consegue permitir que todos tenham acesso ao conhecimento. Desta forma “trabalham” para garantir que a grande maioria continue iludindo-se, continue sonhando, continue somente comprando e não criando, o que seria o ideal para o ser humano. Percebe-se esta defasagem do espírito criativo nas palavras de Einstein:
“Hoje, que direi da época, do estado, da sociedade e da pessoa humana? Nosso planeta chegou a uma população prodigiosamente aumentada se a comparamos às cifras do passado. Por exemplo, a Europa encerra três vezes mais habitantes do que há um século. Mas o número de personalidades criadoras diminuiu. E a comunidade não descobre mais esses seres de que tem necessidade essencial. A organização mecânica substituiu-se parcialmente ao homem inovador. Esta transformação se opera evidentemente no mundo tecnológico, mas já em proporção inquietadora também no mundo científico”. (EINSTEIN, 1953)
Por outro lado, este homem que precisa ser criativo, deve tomar cuidado e evitar de levar o pensamento científico aos extremos, pois ele parece endurecer o ser humano, correndo-se o risco de nos tornarmos uma sociedade tão técnica quanto a sociedade descrita por Huxley em sua obra “Admirável Mundo Novo”, onde a técnica científica substitui toda a “fantasia humana” ou toda a “mitologia humana”, a fantasia existente é criada cientificamente, “não há mais maternidade, amor, liberdade e todos são obrigados a ser felizes”, parece-me que nós já vivemos hoje como descreveu este escritor da década de 30, não tão explícitamente, mas tudo é visto com muita naturalidade, aceitamos passivamente tudo o que nos impõem, quase com a mesma ingenuidade daqueles personagens de Admiravel Mundo Novo.
Einstein também fez comentários a respeito do endurecimento científico, talvez não de forma crítica, mas assim mesmo nos mostra um pouco do que é esse endurecimento.

“A maneira científica de pensar tem outra característica. Os conceitos que utiliza para construir seus sistemas coerentes não expressam emoções. Para o cientista, existe apenas o fato de “ser”, não o de desejar, avaliar, não existe o bem nem o mal; nenhum objetivo. Enquanto permanecemos no campo da ciência propriamente dita, jamais poderemos nos defrontar com uma sentença como esta: “Não mentirás”. Há algo da moderação puritana no cientista que busca a verdade: ele se mantém afastado de tudo que seja voluntarista e emocional. Por falar nisso, essa característica é resultado de um desenvolvimento lento, peculiar ao pensamento moderno ocidental”. (EINSTEIN, 1956)

Para complementar o pensamento a respeito da ciência e o homem hoje, pode-se verificar uma característica atual e que influencia o pensamento em todas as áreas seja científica ou não, é o que chamamos de pós-modernidade. A pós-modernidade caracteriza-se pelo descaso à grandes teorias, saberes, pela ironização, pela superficialidade e pela infantilização das opiniões. É um niilismo assustador, que engloba inclusive a ética. Em geral já não se tem ética no fazer científico, existindo, é claro, suas exceções. Se antes procurava-se a unidade, a centração do saber, hoje o que predomina é dispersão, a fragmentação, o homem tornou-se um “mutante” constante e fica difícil trabalhar com um ser humano assim, sem uma base sob seus pés, é uma desterritorialização constante que se por um lado é positiva, porque torna-nos mais abertos às mudanças, por outro é perigoso, pois perdem-se pontos de referência, como por exemplo os éticos.
Hoje a ciência está se adaptando a esse homem pós-moderno:
“Ninguém tem mais coragem por exemplo, de descartá-lo como simples moda passageira (pós-moderno). Trata-se de uma questão de fato. O modo de interpretá-lo pode diferir, e muito, mas não há como ignorá-lo. Além disso, seu horizonte parece ter abraçado todos os campos do pensamento e do fazer humanos.

“Enfim, não apenas no contexto sócio-econômico-político, mas principalmente no mundo mais restrito das ditas pesquisas avançadas, são inegáveis as evidências de mudanças paradigmáticas na compreensão humana do mundo e de si mesmo. As teorias do caos determinista, na matemática, as pesquisas dos sistemas auto-organizativos, estruturas dissipativas, investigações da ordem a partir do caos, no mundo físico, rebatem no avanço das ciências cognitivas que estão ganhando um novo estoque de idéias a respeito de representações e processos, assim como estão aparecendo novas metodologias para o teste de hipóteses através do uso de simulação computacional, tudo isso aliado a mudanças profundas no modo de viver, pensar, produzir e reproduzir conhecimento graças às continuamente renovadas tecnologias de apoio que não cessam de se aprimorar. Trata-se decididamente de uma nova paisagem de mundo que tem exigido modificações profundas no nosso intelecto e sensibilidade”.(SANTAELLA)

A ciência está aprendendo a trabalhar no mundo pós-moderno, mas ela não pode continuar no erro de ser igual a ele, o que já é uma característica inata da ciência, ser “dura” e desinteressada pelo ser humano, em certos aspectos. Muitas vezes ela em nome do conhecimento traz a morte, nos expõem ao perigo existencial sem o menor remorso.

O que se precisa hoje é de muita ética para trabalhar a ciência e também nas relações humanas. No momento que o homem respeitar seu semelhante eticamente, a ciência e o homem serão plenos. Talvez isso seja uma utopia, mas que não devemos deixar de analisar, pensar e repensar constantemente. Precisamos acreditar que acharemos as soluções, não importando o que venha a acontecer.

Desde Descartes até hoje, o “homo científicus” evoluiu muito e irá evoluir muito mais, só precisamos de um pouco de bom senso, e aprendermos a conviver com o desejo de “poder”, existente dentro de nós. Desejo esse, quase instintivo, animal, que nos leva a considerar nossos semelhantes como eternos competidores na luta pela sobrevivência.


BIBLIOGRAFIA

*Enciclopédia “Conhecer” - Abril Cultural. 1973 / SP Vol. III, pag. 166-167

*SCHULTZ, Duane D. Sydney Schultz - História da Psicologia Moderna. Cultrix, 1992 / SP pag. 33-34

*HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo.

*LUNGARZO, Carlos - O que é ciência? (Coleção Primeiros Passos). Ed. Brasiliense. 1989 / SP pag. contra capa

*MUELLER, Fernand-Lucien - História da Psicologia. Ed. da USP 1968 / SP pag. 246 e 247

*Material da Cadeira de Introdução a Filosofia - Prof. Cleide

*SCHENBERG, Mário - Albert Einstein (Pensamento político e últimas conclusões). Ed. Antologias e Biografias. 1983 / pag. 104

*EINSTEIN, Albert - Como vejo o mundo. Ed. Nova Fronteira. 1981 / RJ pag. 15-16

*SANTAELLA, Lúcia - (Pós-Moderno e Semiótica). Pag. 21-22


Notas

1 - Graduando em psicologia pela UNISINOS. e-mail: [email protected]


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