O Terceiro-Analítico1

Morgana Mengue Saft2

 

 

Começo a escrever este texto e ainda não sei muito bem como vou fazê-lo. Falar do "Terceiro Analítico" é algo que instiga muito, mas é algo que não sei como fazer, já que este outro olhar, esta outra produção, para além da transferência/contratransferência me foi "apresentado" em algumas aulas de Entrevista I3 e, a partir daí, aventurei-me a procurar mais material e tentar entender o que, teoricamente, isto significa, e agora, procuro então, identificá-lo na minha prática clínica.

Confesso que isto ainda me é bastante difícil, e é por isto também, que acredito que este trabalho pode ser mais uma oportunidade de refazer, talvez, uma pequena revisão bibliográfica a cerca de transferência/contratransferência e identificação projetiva, para a partir daí, me arriscar a falar um pouco deste "terceiro" e de como o entendo e posso identificá-lo, na prática.

O mais interessante que vejo nisto, é de que talvez assim, posso, de alguma forma sustentar, teoricamente, o que acredito acontecer na relação analítica, quer dizer, que se produz algo além de sentimentos (transferência/contratransferência ) provocados por nossas questões inconscientes, mas que além disto, nossa história, nossa vivência nesta relação, também produz, também nos faz sujeito neste processo. Não posso entender duas pessoas, uma que fala e outra que escuta, sem que algo as ligue, ainda que cada uma delas, permaneça enquanto sujeito separados, mas afetando-se mutuamente, pela história que ali acontece, que não é nem contata do passado, nem a espera do futuro.

"De modo similar, a intersubjetividade do analista-analisando coexiste em tensão dinâmica com o analista e analisando como indivíduos separados, com seus próprios sentimentos, pensamentos sensações, realidade corporal, identidade psicológica. (...) a intersubjetividade não existe de forma pura (...) se criam, negam e preservam uma a outra"4.

É isto, quero poder falar, ainda que me falte muito conhecimento e entendimento, deste "terceiro" , que nos provoca um encontro com o outro ( subjetividade ) , encontro que jamais nos fará os mesmos. É o destruir e ser destruído por uma alteridade que pode amendrontar, pela diferença nunca antes vivenciada, pelo som nunca escutado antes.

Antes de ( a )efetivamente me debruçar para poder falar com maior sustentação teórica, gostaria de poder dizer como é para mim hoje 5(!). Vejo o "terceiro analítico", mais ou menos como uma tela, onde a subjetividade de dois sujeitos, analista e analisando, onde a história, contada, sentida, (re)vivida de cada um é colocada, fazendo-se um filme, onde não é mais a história de um ou de outro, mas a história desta relação, relação que se cria a partir de ambos, que mantém-se ainda assim, dois!, onde a verdade, o real é a construção disto tudo, da transferência, da contratransferência, do que está para além disto.

É preciso entregar-se a esta história e vivê-la como ela é: única.

É preciso fazer uma canção6 Um trato, uma entrega, uma doação É preciso a chuva escura a noite A solidão É preciso tudo agora Um dissabor uma vitória uma confissão A voz de um instrumento E a tua mão Que nos faça acordar Sim, meias palavras não bastam É preciso acordar É preciso mergulhar mais de mil pés Onde Netuno traça os rumos das marés É preciso acertar a direção dos pés Quando os velhos caminhos se esgotam E os tempos não voltam Não voltam É preciso alcançar outra estação Mesmo com sono, mesmo cansado solto como um cão É preciso o sol, a rua, a tarde A multidão É preciso atravessar lá fora Um corredor, um corredor um rio da história uma revolução O caos de uma palavra novo Um sim e um não Que nos faça acordar Sim, meias palavras não bastam É preciso acordar. É preciso outra estação...

Terceiro7 : "ordinal e fracionário, referente a três, medianeiro, intercessor, alcoviteiro. Quem intercede, intervém".

Analítico: "relativo a análise, que procede por análise"

... referente a três, ao terceiro, que é construído da relação, que "age" como um outro, mediador, que intercede e propicia a intervenção, não como intervenção, "pronta" do analista, de um lugar de saber, mas uma construção da dupla.

Ainda que em alguns momentos, a atenção flutuante, as rêveries8 , possam ser vistas como desatenção, absorção narcísica, conflitos emocionais não resolvidos, na verdade, está para além disto, representando formas simbólicas e protosimbólicas, baseadas em sensações, atribuídas a experiência não articulada e até não sentida do analisando, que vão ganhando forma na experiência do par analítico.

Lembro-me da primeira vez em que acredito ter identificado o "terceiro analítico", durante um atendimento.

Laura é uma mulher de 35 anos e procura atendimento para o filho de 9, encaminhado pela escola, por dificuldades na aprendizagem. Bom, realmente o "paciente", é seu filho, mas acreditei que a relação percebida durante os atendimentos com a criança, necessitavam de uma intervenção também com a mãe, para além de apenas acompanhamento do tratamento do filho, ainda que este continuava sendo o "paciente!". Bom, não pretendo entrar muito na questão do todo do atendimento, apenas colocar a situação em que nos vi "tomadas" pelo terceiro!!!

Laura mais uma vez me falava que jamais apresentaria seu filho ao pai, que isto lhe daria muito trabalho, traria muitas preocupações, que não queria confusões com a atual esposa do "homem" (sic )e, ainda que este fosse o desejo dele, ( do filho ), a vida deles estava bem. Laura sempre afirmou que jamais procuraria o pai de seu filho novamente, uma vez que ele "os abandonou quando Renan, ainda era bebê" (sic).

Sempre que Laura repetia estas palavras, eu sentia-me muito impossibilitada, tinha vontade de chamá-la de egoísta, do quanto preocupava-se somente consigo, que jamais poderia ocupar o lugar de pai, e que fazia mal ao filho; que ela precisava poder olhar-se separada dele, para que o menino pudesse crescer. Era como se eu quisesse que Laura olhasse através de meus olhos para toda aquela situação, ( depois pensei que talvez este também fosse o desejo dela )

Mas desta vez foi diferente. Enquanto Laura novamente afirmava ( não sei exatamente a quem ) que não procuraria o pai de Renan, mesmo que os pedidos deste continuassem, eu tinha a sensação de que um círculo girava em meu peito, e girava cada vez mais forte, e era como se eu fosse sufocar. Senti-me muito angustiada, não conseguia continuar ouvindo, ainda que algumas vezes tivesse tentado. Era como se eu estivesse suspensa em algum lugar no vazio.

Quando pude novamente continuar a ouvi-la, Laura me dizia que era a primeira vez que estava realmente preocupada com a angústia do filho, que queria chorar e tinha medo de perdê-lo. Laura chorou. Foi neste momento que dei-me conta de que realmente era difícil para Laura decidir procurar o homem que antes de abandonar o filho, a abandonou, e que este sentimento de abandono é ainda anterior, uma vez que Laura foi adotada, também não conhece os pais, e com a morte da mãe adotiva a poucos anos, foi "abandonada" pelos irmãos, que "levaram" também o pai ( adotivo ), com quem ela morava.

Entendi que o fato de procurar este pai, era a procura também do seu pai, que o medo da rejeição deste pai ao filho, pode reafirmar uma outra rejeição: a sua, enquanto filha e depois, enquanto mulher.

Além disto, este encontro entre pai e filho, na sua fantasia, poderia tirar-lhe o que ela tem como realmente e unicamente seu: o filho. Acabaria então sozinha, no vazio.

Depois de Laura chorar, o que jamais havia acontecido, aliás ela nunca parecia questionar-se, questionar sua posição referente as suas decisões, apresentando-se muito distante e pouco afetiva. Falei então destas coisas, de seu medo de "perder o filho", de ser novamente abandona, da angústia de sentir-se impossibilitada frente a solicitação do seu filho de conhecer o pai, já que Laura não sabe como se "conhece o pai", "como se procura o pai", seria como entrar no vazio, no vácuo.

A partir disto Laura começou a procurar alternativas para procurar o "pai" e já consegue falar de suas angustias, do medo de ser abandona e pode falar também da "tristeza sentida por Renan" (sic), que ela "pode ajudar a acabar" (sic). Enfim, me parece que Renan agora é outro, não mais uma parte dela que "deve conformar-se" (sic), e que algumas coisas podem ser diferentes.

Bom, o que quero poder falar deste pequeno fragmento de sessão é, que foi aí que pude tomar contato, quando pude sentir o que tanto gostaria de escrever ( na única tentativa de poder entender ) o que Ogden chama de "terceiro analítico".

Pude entender que aqueles afetos sentidos, enquanto Laura falava não eram meus, apesar de ocorrerem em mim, "num corpo emprestado à depositação transferencial", como diz Naffah Neto, 1999.

Acredito que Laura e eu pudemos estar num mesmo campo comum, inconsciente, uma vez que tais sentimentos de angustia, de vazio, de solidão, não podendo ser experimentados/suportados por ela, foram evacuados e projetados em mim, como que num mecanismo de defesa. É aí, então, neste campo comum e inconsciente, de criação do analisando e do analista, de dinâmicas inconscientes das histórias de ambos, sem escolhas ou controle, num campo sem sujeito, que possibilita acolhimento e decodificação, que Ogden denomina "terceiro analítico".

A afirmação de Ogden, de que o "terceiro analítico" , como subjetividade, se dá pela criação do analista e do analisando, é entendido por Naffah Neto, como uma criação de modo passivo, uma vez que se trata de fenômenos inconscientes ( sem sujeito ) e, que esta subjetividade emerge na criação do "terceiro analítico", na história do analista analisando, criadas ou recriadas, retomando então, como subjetividades. É difícil falar no "terceiro analítico" sem rever o conceito de identificação projetiva de Melanie Klein.

"A identificação projetiva compreende narrativas inconscientes ( tanto verbal, quanto não verbalmente simbolizadas ), que incluem a fantasia de evacuar uma parte de si para dentro de outra pessoa. Essa evacuação fantasiada serve tanto à finalidade de se proteger dos perigos que um dos aspectos de si mesmo suscita, quanto de salvaguardar uma parte de si, depositando-a numa outra pessoa que é vivenciada como apenas parcialmente diferenciada de si próprio"9

Na identificação projetiva, a subjetividade, enquanto "agente, que subjaz a ação - sub-jectum, é negada de diversas maneiras, já que o projetor recusa uma parte de si, que imagina estar evacuando para dentro do outro - recipiente. E este, por sua vez, nega um espaço próprio, ao criar espaço para o aspecto recusado da subjetividade de quem projeta. É um deixar de ser..., é se deixar criar, negar e preservar mutuamente, ser subjugado, negado de tal forma a tornar-se um terceiro sujeito, preservando a subjetividade, mantendo a experiência do analista e do analisando como sujeitos separados e, se o processo analítico for bem sucedido, implica a reapropriação das subjetividades individuais do analista e do analisando, que foram transformadas por via da experiência destes do (no) "terceiro analítico" recém criado, como sujeito da identificação projetiva.

"O terceiro analítico" seria então o que se projeta, o sujeito da identificação projetiva, quando podemos sentir, pensar, vivenciar sensações, que até então existiam potencialmente em cada um dos indivíduos, e não proporcionados pela relação.

Entendo então, retomando o exemplo dado acima, que Laura, pelo medo do abandono, rejeição, de estar no vazio, de perder uma parte de si, tida como o filho, são evacuados para dentro de mim, do meu corpo, enquanto fantasia inconsciente, e eu posso então, encarnar estes afetos, vivencia-los e devolvê-los a ela, de forma interpretativa, possibilitando que Laura reaproprie-se deles.

Mas porque "terceiro"? Ou porque um quarto, quinto... Porque não algo que se atravessa nesta relação, mesmo que inominável, um atravessamento... Será "o terceiro", enquanto aquele que corta, castra, rompe com uma relação simbiótica, dual, que traz a lei, impõe limites e possibilita outros fazeres, olhares, abre espaço para que cada um se constitua enquanto sujeito separado?

Segundo LAPLANCHE e PONTALIS, a transferência é "processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam sobre determinados objetos do enquadre de um certo tipo de relação estabelecida com eles (...) eminentemente na relação analítica (...) repetição de protótipos infantis vivida com sentimento de atualidade."

Bom, entendo isto como a reedição de uma relação, vivida agora no setting analítico, onde o terapeuta ocupa o lugar de outro, possibilitando mesmo, o processo terapêutico, ainda que esteja a serviço da resistência, segundo nos diz FREUD. Mas como fazer para possibilitar o novo, o repetir diferente até não mais repetir e uma nova história se constituir?

Pensando assim, entendo que o fato de Laura "ver" em mim, alguém que mais uma vez a abandonará, que não vai "agüentá-la", ou suportar sua existência, ali, junto comigo, fica como que testando, a nós duas, na tentativa de mais uma vez reafirmar sua suposição: "todos a abandonam". Respondo a isto, constransferencialmente, sentindo-me sufocada, sem ar, com um grande peso no peito.

Durante a tempo que a escuto, atravessa-se o que concebo como o papel de mãe, a função que ela exerce perante a um filho e como vejo sua interdição à entrada do terceiro. Tudo isto está colocado enquanto estamos no setting. E aí a raiva.

O terceiro-analítico coloca-se exatamente aí. Quando posso suportar estar com Laura, suportar a projeção de seus medos, senti-los, mas entendendo como sendo não meus, possibilitando que Laura veja sua "loucura" com um distanciamento que a mantém então, protegida, já que a loucura está no outro, podendo se reapropriar de suas questões. Aí pode-se dar o tratamento, quanto não atuo o abandono provocado por ela, sentido por mim, através da identificação projetiva. É a possibilidade da entrada do terceiro!

Naffah Neto ( 1999 ), fala dia que "a identificação projetiva participa da criação do terceiro-analítico como um campo singular, no qual analista e analisando são envolvidos. (...) o analista transforma uma identificação projetiva em interpretação, ele pode surgir como "sujeito da identificação projetiva", mas mesmo esse "sujeito", formado pela consciência de um processo inconsciente interpretado, não pode ser identificado como terceiro-analítico."

O que NAFFAH nos coloca aí, é que quando o analista "empresta seu corpo/espírito" para a depositação transferencial, tornando-se campo para as identificações projetivas do analisando, ele não está negando a si próprio, mas sim, oferecendo-se a à incorporação e manifestação de uma alteridade, sabendo de antemão que conseqüências isto poderá ter, até mesmo, uma quase despersonalização.

Fazendo-o experimentar coisas que não são suas. E o mais importante do que entendo da colocação de NAFFAH, é que a afirmação de que "os sujeitos se negam,criam e preservam mutuamente, no espaço analítico", está colocando o quanto, a medida que concordamos com isto, nos identificamos a identidades fixas, que se sentem negadas cada vez que nos deparamos com o diferente, com o que é do outro, tornando-nos prisioneiros "do universo de representações".

Volto novamente ao exemplo de Laura, quando sinto medo e vazio, a grande angústia de estar sozinha, mas a medida que sei que são sentimentos dela projetados em mim, não os atuo e tenho consciência que não nego a mim, continuo existindo, deixo apenas que Laura possa ver- se em mim, aproximar-se e reapropriar-se do que é dela.

Para que possamos entender melhor todo este processo, é preciso enterdermo-nos enquanto num lugar não aprisionado das representações, entendendo que "todo ser próprio é necessariamente devir", que no contexto transferencial, nos definimos como metamorfose constante, de afetos, sensações, representações, sem perdermos a capacidade de nos reconhecermos através dos inúmeros "outros" nos quais nos tornamos ao longo da vida.

Então, diferente do que nos coloca OGDEN (1996), NAFFAH (1999), diz que terceiro-analítico é como um campo insconciente, (...) aberto, metamorfoseante, formado a partir das conjunções de forças que compõem o espaço analítico em cada momento. Criado a partir das formas de sensibilidade, afecções e dinâmicas cunhadas pelas histórias de cada uma das subjetividades envolvidas, mas não designa uma forma de subjetividade (...) designa um campo comum, no qual as subjetividades podem dionisiacamente se misturar, dissolver e reformatar, recuperando facetas, dimensões de si próprias, até então ocultadas ou apenas suscetível de realizar-se".

 

Terceiro-analítico

A memória dos signos de percepção é formada pela primeira transcrição da percepção e articulada segundo relações de contiguidade e simultaneidade.

Se os signos de percepção correspondem às impressões traumáticas, às primeiras marcas do acontecimento, que se registram de alguma forma no sistema mnêmico, mas sem constituir ainda signos inconscientes..

Isto quer dizer, que a impressão não é só registro do acontecimento, mas do processo enrgético ocorrido no próprio corpo.

No discurso freudiano, "a marca de uma vivência precoce, a um registro de acontecimento , que produz efeitos psíquicos, mas que não se inscreve como lembrança."

Então, se é no corpo que ficam as marcas do trauma que não puderam se inscrever como mnêmicas, que não podem ser palavras/traços verbais, como analistas, devemos dar conta destas marcas, do jeito que elas podem ser "ditas": através do corpo...

Segundo a teoria freudiana, os conteúdos psíquicos inconscientes formadores do "terceiro-analítico" são originados na memória inconsciente propriamente dita.

NAFFAF, acredita, no entanto, que as memória corporal que vêm de apelos pulsionais, reverberações, repetidamente busca reconhecimento e elaboração psíquica, talvez como um sem-fundo corporal, de pura ferida, traduzida num campo de forças, invisível, indizível, mas capaz de produzir efeitos.

Ferenczi também fala de "lembrança" ( traumática ), que permanece imobilizada no corpo Único lugar onde pode ser despertada. Para isto, podemos valer-mos da relação de corpos analista-analisando, formando um campo de ressonâncias mútuas, um escutando o outro, "com o corpo inteiro."

É isto que ODGEN coloca: o "tericeiro-analítico" se constitui primeiramente pela ativação das memórias corporais, através da transferência e contratransferância, que está para além do que pode ser dito, ouvido. É o que pulsa, o que ultrapassa o indizível, para ser pensado, interpretado e finalmente dito e não mais repetido.

Mas, penso muito na questão do "terceiro". Porque "terceiro" analítico? Penso também por a escolha deste tema., agora que estou prestes a finalizar este "escrito", e penso no quanto este estágio, estas relações que se deram entre nós, enquanto colegas, estagiárias, enquanto instituições/estágio, enquanto terapeutas e pacientes, e que lugar cada uma destas coisas ocupou.

Acho que esta etapa nos proporcionou sairmos da "relação simbiótica" que até então tínhamos com a teoria, conseguindo nela encaixar tudo que líamos, tudo que víamos ou nos contavam.

Foi neste processo que a prática clínica pode ser experimentada, e aí podemos ver que o mundo é maior, que nem tudo está nos livros, que o que sentimos, muitas vezes é indizível, é apenas sentimento, sentimento que se sente, que se pensa, que se transfere e que se aprende, formando nosso jeito de fazer...

O estágio, enquanto lugar de aprendizado, que dar conta de algumas tarefas, foi o "terceiro". As colegas, enquanto quem ouvia, continha e ajudava a que pudéssemos continuar o "desligamento da mãe devoradora teoria", foram o "terceiro".

Os professores, enquanto orientavam, nos mostrava o quanto é difícil por vezes, ouvir o outro, "deixar de ser e voltar a ser", também foram o "terceiro".

Acho então, que falo de relações, das relações que se dão a cada momento em nossa vida, a cada descoberta, toque, a cada passo arriscado. Vivemos relações e com elas nos tornamos outros, mas permanecendo em nossa história. Vamos nos desvinculando que, às vezes, é mais "cômodo", ainda que caose sofrimento, nos mantém sufocados, como se estivéssemos no vazio.

É assim que posso entender o "terceiro-analítico" hoje, como o que provoca mudanças, o que nos faz fazer diferente, tomando contato com nossas questões, através do outro, no setting ou na vida...

 

1. A (DES)PEDIDA

" Despedir: fazer sair, dispensar serviços de, despedir um criado, separar-se de, lançar, arremessar, despedir setas, expedir, lançar de si, soltar, aviar, despachar, soltar, exalar, cessar, terminar, deixar..." Bom, não sei ainda muito bem porque "despedida" e nem se o que vou escrever tem haver com o "terceiro analítico", mas é que estas coisas estão transbordando em mim, e tenho que poder expressá-las de alguma forma, e acho que sei fazer isto bem escrevendo (minha mãe sempre conta que o meu primeiro brinquedo foi uma caneta!! ).

Tudo está passado tão rápido que temo ficar paralisada e não conseguir continuar escrevendo.

Quero poder falar aqui de muitas trans(formações)10 que aconteceram em mim durante este ano, o quanto aprendi, nas escolhas que fiz, nos lugares que me coloquei, das coisas que me permiti fazer, de todas amarras que desfiz, das lágrimas que deixo correr agora no meu rosto, que correm e escorrem...

É muito bom poder entregar-se. Entregar-se ao que se está fazendo, as pessoas que se gosta, entregar-se... e foi isto que aprendi a fazer neste ano.

Gostaria de poder falar de cada uma de vocês, mas cada uma tem um jeito especial de estar guardada dentro do meu coração, e disto ainda é difícil de falar ( nem tudo se consegue colocar no papel, algumas coisas sente-se apenas ).

Aprendi a mostrar-me, ainda que através dos "escritos" que eu adorava ver vocês lendo. Este era o meu jeito mais sincero e inteiro de estar. Até que pude corporalmente, espiritualmente e sei lá, estar de um jeito diferente que nunca pude estar.

"A sabedoria não se transmite, é preciso que a gente mesma a descubra depois de uma caminhada que ninguém pode fazer em nosso lugar, e que ninguém nos pode evitar, porque a sabedoria é uma maneira de ver as coisas!"11

Aprendi com os "pacientes" ( que nunca pude vê-los com pacientes ), que este lugar de escuta, lugar que muitas vezes nos faz deixar de ser, ser outros e voltar a ser gente, a gente; é magnífico. É não ter lugar num lugar que é nosso!

Acho que aprendi a ( ou pelo menos ensaiei ) a "mergulhar mais de mil pés "12, fechar os olhos e sentir, permitir-me sentir, dor, raiva, precisar de continência, de não ter que dar conta de tudo e pedir ajuda ( como isto é bom. Construir com um outro, com O outro ).

Sinto-me mais "pronta" ( acho que fica melhor se disser que sinto-me mais à vontade para arriscar ) e bancar minhas escolhas e pagar o preço disto, mesmo podendo deparar-me com algumas conseqüências, inclusive a que eu desejava!

Acho que "terceiro" está aí, se deixar tocar e tocar, e a partir daí construir um outro, se deixar transformar e transformar, deixar um pouquinho de mim, levar um pouquinho de cada um. É impossível (d)escrever o que estou sentindo.

As lágrimas que correm e escorrem chegam na minha boca trazendo com elas um grande sorriso e uma outra forma de dizer que estou feliz. Hoje o pássaro já não bica mais na minha janela. Talvez porque pude escutá-lo e até voar com ele!

" Quanto tempo duram as obras? Tanto quanto Ainda não estão completadas. Pois enquanto existem trabalho Não entram em decadência" 13.

Acredito que este processo que pôde iniciar-se aqui, continuará, e outros virão, e outras trans(formações) sertão permitidas, e o ciclo vital, a vida minha, vida nossa seguirá seu curso, jamais determinado pela margem do rio, mas sempre abrindo novos córregos, que se transformarão em outro rio até desembocar no mar...

Por isso despedida, despedir, (des)pedir, de não mais pedir, de poder dar, trocar, afastar, voltar, deixar de ser e voltar e "sempre voar bem mais alto com os pés no chão"14 . A despedida sempre é dolorosa, compensada pela volta....

Bom, mas o que tem a ver isto com o terceiro-analítico?

Acho que o fato de cada uma de nós, em alguns momentos assumir este papel, não enquanto uma relação terapêutica, mas enquanto "relação gente". Se nem tudo é transferência, mas em tudo há transferência, com certeza o terceiro-analítico pode produzir-se em outras relações, provocando mudanças, experimentação de nós mesmos, da alteridade do outro, da nossa alteridade, enfim, é um terceiro que se coloca, também por vezes, enquanto instituição, lei/ norma, que nos provoca a pensar, agir, ser e muitas vezes, dar conta.

É no momento que nos apresentamos enquanto representantes de um lugar, Unisinos/Psicólogos/alunos/estagiários, enfim, mas não deixamos de sermos nós, algo aí se produz também, e produz diferente na gente, enquanto ocupando estes lugares.

E assim nos (Des)pedimos, diferente do que chegamos, mas ainda nós!!! "Nenhuma dor é tão mortal quanto a da luta para sermos nós mesmos." 15

 

Bibliografia

BAREMBLITT, Gregório. Cinco Lições Sobre a Transferência. Hucitec, São Paulo, 1996 -

ETCHEGOYEN, R. Horácio. Fundamentos da Técnica Psicanalítica. Artes Médicas, Porto Alegre, 1989. -

FERRO, Antonino. A Técnica na Psicanálise Infantil - A Criança e o Analista: da relação ao campo emocional. Imago, Rio de Janeiro, 1995. -

LAPLANCHE E PONTALIS. Vocabulário de Psicanálise. Martins Fontes, São Paulo, 1998. -

OGDEN, Thomas. Sujeitos da Psicanálise. Casa do Psicólogo/Clínica Roberto Azevedo, São Paulo, 1996 -

NAFFAH NETO, Alfredo. O Terceiro-Analítico e o sem fundo Corporal - Um ensaio sobre Thomas Ogden. 1999. -

____________ . A Psicoterapia em busca de Dionísio. -

TELLES DA SILVA, Luiz Olyntho. Da Miséria Neurótica à Infelicidade Comum. Movimento, Porto Alegre, 1989. -

WINNICOTT, W.D. Explorações Psicanalíticas. Artes Médicas, Porto Alegre, 1994. -

Mini-Dicionário AURÉLIO da Língua Portuguesa. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1993.

Dicionário Brasileiro Zero Hora. Editora Globo, Porto Alegre, 1993. Ievguêni Vinokurov -

 

Notas

1 - Estágio de Psicologia Clínica - Módulo III.. Janeiro de 2000.

2 - Graduanda em psicologia pela UNISINOS. E-mail: [email protected]

3 - Liane Pessin ( Jamais vou esquecer a tranqüilidade com que davas estas aulas e as inquietações que ela provocavam ).

4 - Thomas Ogden, 1994

5 - Hoje aqui, quer dizer exatamente o tempo que estou escrevendo, e não um "hoje" anterior a um maior aprofundamento teórico. Quer dizer, hoje, AGORA, enquanto ponho-me a escrever.

6 - SINAL DOS TEMPOS ( Totonho VilLeroy e Bebeto Alves )

7 - Dicionário Brasileiro Zero Hora. Ed. Globo, Porto Alegre, 1993. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1993.

8 - "(...) permeabilidade e disponibilidade mental e emocional à comunicação do outro, incluindo identificações projetivas, a entrada em ação da função alfa, dos pensamentos oníricos da vigília e a capacidade de contato com estes últimos no momento da restituição transformada do estado emocional assumido." ( FERRO, A., 1995 p. 125 )

9 - Melanie Klein, 1946

10 - "E a imagem na mente que nos une aos tesouros perdidos, mas é a perda que dá forma à imagem."( Colette )

11 - PROUST, À Sombra das raparigas em flor

12 - SINAL DOS TEMPOS ( Totonho Villeroy e Bebeto Alves )

13 - BRECHT, "Sobre a maneira de construir obras duradouras". Poemas.

14 - "SALVE-SE QUEM SOUBER" ( Gelson de Oliveira, Sérgio Rezende, Paulo de Castro )

15 - Ievguêni Vinokurov.


Voltar ao início da página

Voltar

Hosted by www.Geocities.ws

1