A Cultura Contemporânea e a Produção do Sintoma Depressão1

Luísa Fernanda Habigzang e Ana Letícia Cadaviz 2

 

 

 

Introdução

1. Depressão: um transtorno de múltiplas facetas

2. O que dizem os números

3. Mapeando a Sociedade Contemporânea

3.a A cultura do narcismo

Discussão teórico-prática

Conclusão

 

 

 

Introdução

        Este trabalho, solicitado pela disciplina de Prática Disciplinar I, tem como objetivo problematizar e investigar as possíveis hipóteses encontradas acerca de algum aspecto verificado em nosso cotidiano. Realizando uma análise do cotidiano e correlacionando-o com as experiências do estágio que estou realizando no PIPAS (Programa Interdisciplinar de Promoção e Atenção a Saúde), chamou-me atenção um fenômeno que vêm se constituindo como uma das principais características da nossa sociedade: a depressão. Assim, tenho como finalidade problematizar este fenômeno e investigar de que forma a sociedade contemporânea contribui para produção deste sintoma, através de uma revisão bibliográfica do tema, articulada com minha experiência prática.

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1. Depressão: um transtorno de múltiplas facetas

        Consideramos de fundamental importância enfatizar que a "depressão é o resultado de uma interação entre vários fatores diferentes (variáveis biológicas, históricas, ambientais e psicológicas)" (Kaplan, 1997). Salkovskis (1997) corrobora com idéia e aponta a impossibilidade de explicar a depressão como um fator isolado, mas sim que esta seja resultado de uma interação entre vários fatores. Dentre estes cita: distúrbios no funcionamento dos neurotransmissores, um histórico familiar de depressão ou alcoolismo, perda ou negligência precoce dos pais, eventos negativos e recentes da vida, ausência de um relacionamento de confiança, falta de apoio social adequado e falta de auto-estima a longo prazo. Entretanto o enfoque central de nossa investigação é variável cultural envolvida.

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2. O que dizem os números

        Segundo Kaplan (1997), o transtorno depressivo é um transtorno comum, com uma prevalência durante a vida de cerca de 15%, talvez, até 25% em mulheres. A incidência da depressão também é mais alta que habitual em pacientes de clínica geral, nos quais chega a 10%, e em pacientes internados por motivos médicos, nos quais aproxima-se a 15%. Salkovskis (1997) afirma que em qualquer ponto determinado do tempo, 15-20% dos adultos sofrem níveis significativos de sintomatologia depressiva. Pelo menos 12% experimentam a depressão num grau suficiente para pedirem tratamento em algum período em suas vidas, e estima-se que a depressão responda por 75% das internações psiquiátricas. O índice de depressão em mulheres nas nações industrializadas ocidentais é aproximadamente duas vezes maior do que aquele entre homens. Seligman (1975) afirmou que a depressão clínica é tão comum que foi chamada de "resfriado da psiquiatria" (in: Salkovskis, 1997).

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3. Mapeando a Sociedade Contemporânea

         Foucault (1988) situou as sociedades disciplinares nos séculos XVIII e XIX e seu apogeu no início do século XIX, "Elas procedem à organização dos grandes meios de confinamento. O indivíduo não essa de passar de um espaço fechado a outro, cada um com suas leis: primeiro a família, depois a escola, depois a caserna, depois a fábrica, de vez em quando o hospital, eventualmente a prisão. O projeto ideal dos meios de confinamento é concentrar, distribuir o espaço, ordenar o tempo, compor no tempo-espaço uma força produtiva. Mas as disciplinas conheceram a crise, em favor de novas forças que instalavam lentamente e que se precipitaram depois da Segunda Guerra mundial. Verificou-se a crise generalizada de todos os meios de confinamento. As sociedades de controle instalaram-se substituindo as sociedades disciplinares".(in: Deleuze, 1992). Rolnik (1996) afirma que os avanços da tecnologia implicam uma pluralidade de ambientes, aproximando uma imensa diversidade de corpos, não só humanos. "O encontro com esta variedade tem por efeito povoá-las de uma miscelânea de forças vindas de toda parte do planeta. Multiplicam-se as cartografias das relações de força e, portanto, os estados que se engendram nas subjetividades. Com isso, suas figuras pulverizam-se facilmente, abalando a crença nas estabilidades". Segundo Rolnik (1996), essa profusão de forças nos leva o supor a fim da figura moderna da subjetividade, que se constrói em torno de uma referência identitária (meios de confinamento). "A desestabilização exacerbada, combinada com a persistência identitária, acenando com o perigo de virar um nada, caso não se consiga produzir o perfil requerido para gravitar em alguma órbita do mercado, dificulta a experiência dos vazios de sentido e valor. Tais experiências tendem então a ser aterrorizantes: as subjetividades são tomadas pela sensação de ameaça de fracasso, despersonalização, enlouquecimento ou até de morte. As forças, em vez de serem produtivas, ganham um caráter diabólico; o desassossego trazido pela desestabilização tornando-se traumático".(p.4). O ser humano contemporâneo é fundamentalmente desterritorializado. Assim, temos a subjetividade como um produto cultural complexo, sustentados por determinações históricas, manifestando-se nos modos de pensar, agir e sentir. Aparece nas relações que se estabelecem, nas práticas e nas experiências do cotidiano. "A contemporaneidade nos suscita a pensar a força do tempo. O ritmo vertiginoso dos grandes centros urbanos, o processo de virtualização com os computadores e as redes digitais, a incessante oferta de imagens na mídia (atuando na produção dos desejos), são apenas algumas das mutações em curso que caracterizam a implosão do espaço-tempo ". Até que ponto estamos acompanhando essa aceleração, nos adaptando, agilizando nosso pensamento? Quais são os sintomas que essa cultura produz em nossa subjetividade ?( SESSÃO Nômade. Espaço Vida, Porto Alegre, abril 1997, n2). Verifica-se as marcas da carência, da angústia provocada pela desterritorialização, da melancolia. Já, no século passado, ao tentar compreender a depressão, Freud (1895) postulou uma relação entre perda objetal e a melancolia. Ele sugeriu que a raiva do paciente deprimido é dirigida para seu íntimo, em razão de identificação com o objeto perdido.(in: Birman, 1999).

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3.a A cultura do narcismo

         De acordo com Birman, em Mal-estar na atualidade (1999), constituiu-se nas últimas décadas uma nova cartografia social, em que a fragmentação da subjetividade ocupa posição fundamental, no qual o eu se encontra situado na posição privilegiada. "Com isso a subjetividade assume uma configuração decididamente estetizante, em que o olhar do outro no campo social e mediático passa a ocupar uma posição estratégica em sua economia psíquica". Assim, o autor fala sobre a existência de uma cultura do narcisismo e da sociedade do espetáculo, a fim de compreender as novas formas da subjetivação na atualidade. Os destinos do desejo assumem, pois, uma direção marcadamente exibicionista e autocentrada, na qual o horizonte intersubjetivo se encontra esvaziado e desinvestido das trocas inter-humanas. O sujeito da cultura do espetáculo encara o outro apenas como um objeto para seu usufruto. O que interessa é o engrandecimento da própria imagem. "O cuidado excessivo com o próprio eu se transforma em objeto permanente para a admiração do sujeito e dos outros, de tal forma que aquele realiza polimentos intermináveis para alcançar o brilho social".(Birman, p.167). Segundo Birman (1999), a cultura da imagem é o correlato essencial da estetização do eu. Institui-se assim a hegemonia da aparência, na qual a mídia se destaca como instrumento. Dessa forma o autor nos remete a psicopatologia da pós-modernidade. "esta se caracteriza por certas modalidades privilegiadas de funcionamento psicopatológico, nas quais é sempre o fracasso do indivíduo em realizar a glorificação do eu e a estetização da aparência que está em pauta".(p.168). O que define a psicopatologia é o destaque conferido a quadros clínicos fundados no fracasso da participação do sujeito na cultura do narcisismo. "Com efeito, a bibliografia psicopatológica dos últimos vinte anos se concentrou no estudo e nas propostas terapêuticas sobre as depressões, a síndrome do pânico e as toxicomanias (...) Essas investigações são de ordem biológica, em que o psiquismo é considerado em epifenômeno do corpo biológico. Deixa-se de considerar, assim, a especificidade dos registros simbólicos e pulsionais do sujeito. Em seguida o que se destaca nesse registro biológico é a investigação psicofarmacológica. Esta se volta principalmente, para as terapêuticas daquelas perturbações mentais. Finalmente, todas essas pesquisas são financiadas pelos grandes laboratórios farmacêuticos internacionais, que procuram realizar a produção e a comercialização de suas drogas".(Birman, 1999 p.168). Segundo Roudinesco (2000) o sofrimento psíquico manifesta-se atualmente sob a forma da depressão. Esta síndrome que mistura a tristeza, a apatia, a busca de identidade e o culto de si mesmo, atinge o corpo e a alma. O ser humano busca vencer o vazio de seu desejo sem dar-se tempo para refletir sobre a origem de sua infelicidade. "O indivíduo depressivo sofre ainda mais com as liberdades conquistadas por já não saber como utilizá-las" (Roudinesco, 2000 p.13). A era da individualidade substituiu a da subjetividade. "Cada paciente é tratado como um ser anônimo, pertencente a uma totalidade orgânica, vendo-se receber os mesmos medicamentos, independentemente de seu sintoma". (p.14) A autora afirma que a depressão domina a subjetividade contemporânea, tal como a histeria do fim do século XIX. "As vésperas do terceiro milênio, a depressão tornou-se a epidemia psíquica das sociedades democráticas, ao mesmo tempo em que se multiplicam os tratamentos para oferecer a cada consumidor uma solução honrosa. A substituição do conflito neurótico pela depressão é uma tentativa de fugir do inconsciente e retirar de si a essência de todo o conflito".(p.17) O deprimido está condenado ao esgotamento pela falta de uma perspectiva revolucionária, ele busca na droga, na religiosidade, no higienismo ou no culto do corpo perfeito o ideal de uma felicidade impossível. Roudinesco (2000) traz importantes reflexões quanto ao uso indiscriminado de medicamentos. Segundo ela, a partir dos anos 50 as substâncias químicas modificaram a paisagem da loucura. Estas fabricaram um novo homem, polido e sem humor, esgotado pela evitação de suas paixões, envergonhado por não ser conforme o ideal que lhe é proposto. Assim, os psicotrópicos tem o efeito de normalizar comportamentos e eliminar os sintomas mais dolorosos do sofrimento psíquico, sem lhes buscar a significação. A psicofarmacologia encerrou o sujeito numa nova alienação ao pretender curá-lo da própria condição humana. A psicofarmacologia tornou-se uma espécie de imperialismo. Os médicos abordam da mesma maneira todo tipo de afecções. Assim, psicoses, neuroses, fobias, melancolia e depressões são tratadas pela psicofarmacologia como um punhado de estados ansiosos, devido a um ambiente difícil. A emergência da depressão significa que a reivindicação de uma norma prevaleceu sobre a valorização do conflito. Todos os estudos sociológicos mostram que a sociedade depressiva tende a romper a essência da vida humana. "Entre o medo da desordem e a valorização de uma competitividade baseada unicamente no sucesso material, muitos são os sujeitos que preferem entregar-se voluntariamente a substâncias químicas a falar de seus sofrimentos íntimos (...) o silêncio passa então a ser preferível à linguagem, fonte de angústia e vergonha".(Roudinesco, 2000 p.30). O moderno profissional de saúde já não tem tempo para se ocupar da longa duração do psiquismo, porque na sociedade liberal depressiva, seu tempo é contado. Desta forma o paciente é orientado para uma posição cada vez menos conflituosa e, portanto, cada vez mais depressiva. "Em lugar das paixões, a calmaria, em lugar do desejo, a ausência de desejo, em lugar do sujeito, o nada, e em lugar da história, o fim da história".(p.41) A autora fala da evolução da psiquiatria entendendo-a como um retrocesso, uma vez que, de um entendimento dinâmico do modelo nosográfico, esta restringiu o sofrimento psíquico a um sistema comportamental. Ela exemplifica este movimento pelo reducionismo genético a que foram submetidos diversos aspectos da subjetividade humana e também pelo movimento de revisão do DSM que acabou eliminando de suas classificações a subjetividade, restringindo-se ao esquema sinal-diagnóstico-tratamento. Os conceitos de psicose, neurose e perversão foram substituídos pela noção de distúrbio. A sociedade depressiva inscreve-se num movimento de globalização que transforma o homem em objeto. Não se interessa pelo desejo e pelo inconsciente, encerrando-se em uma lógica narcisista na tentativa de refugiar-se da idéia de subjetividade.O que realmente interessa é contabilizar sucessos.

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Discussão teórico-prática

        Analisando os dados bibliográficos verifica-se a implicação da sociedade como um agente produtor da depressão. Verifica-se que somado ao convincente discurso médico temos o apelo da mídia. Pecebe-se o uso indevido de dados científicos (medicina, neurociências, genética) e estatísticos para atribuir um valor de verdade ao discurso que induz as pessoas a atribuir-se os sintomas da depressão. É importante salientar os interesses da indústria farmacológica em pesquisas sobre o assunto. A mídia utiliza todos os meios de comunicação disponíveis para multiplicar esse sintoma. Vemos na tevê, programas estruturados para vender a depressão como um produto de consumo. O modelo básico é o profissional de medicina apresentando o quadro patológico e reforçando apenas fatores genéticos, um artista famoso que represente o ideal de ser humano, relatando sua experiência dentro desse quadro e finalmente os métodos mais eficazes de tratamento que incluem, é claro, psicofármacos. As revistas utilizam-se do mesmo modelo, além de vender a imagem perfeita, enaltecendo a estetização das pessoas. Na internet encontra-se um grandioso número de sites que trazem informações sobre a depressão. É possível, até se autodiagnosticar depressivo, através de testes disponíveis e os critérios do DSM-IV. Há inclusive, indicações de psicofármacos usualmente utilizados para tratamento. Dentro das experiências vividas no estágio no PIPAS verifica-se que muitos dos pacientes que buscam tratamento psicológico chegam com o diagnóstico de depressão, geralmente prescrito por algum clínico geral, e sob o efeito de medicamentos que somente esbatem os sintomas. Depois de uma avaliação, observa-se que em muitos casos o diagnóstico é outro e que os sintomas de depressão são conseqüências de um outro quadro. Constata-se assim indução e massificação dos sintomas. Juntamente com esse apelo cultural é preciso contextualizar a sociedade dentro da cartografia anteriormente mapeada. Vivemos numa época em que o eu prevalece sobre todas as coisas. Somos "modelados" para buscar a perfeição. Somos classificados dentro da sociedade como um número que vale o quanto tem. A aceleração do tempo nos faz correr atrás de algo que nem sabemos claramente o que é, pois não há tempo para refletir sobre nossos desejos vendidos pela mídia. As pessoas são marginalizadas quando não atingem o sucesso exigido por nossa cultura. Assim é muito fácil atribuir-se os sintomas da depressão como se estivéssemos vestindo uma roupa. Consideramos este quadro como algo normal em nossas vidas sem refletir sobre o que nos faz sofrer. E de fato incorporamos a doença, pois a nossa subjetividade encontra-se fragilizada e desterritorializada. Por outro lado temos acesso aos sintomas de uma doença e sua cura fantástica e que por pior que pareça, nos inclui dentro de um grupo. E sabemos que se sentir pertencente a um grupo é fundamental para que a vida tenha sentido, mesmo que este grupo esteja relacionado a uma doença que traga o sofrimento mental e físico. A depressão permite a troca de algo em comum entre as pessoas: o sofrimento, a angústia, a desesperança, traçando um processo de identificação. Nossa cultura narcisista nos induz à identificação e internalização de modelos. Aos fracassados, resta identificar-se com quadros psicopatológicos.

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Conclusão

        Através desta análise do nosso cotidiano, já se verifica o quanto nossa subjetividade encontra-se como um produto cultural. Percebemos que os aspectos que nos propusemos a problematizar (a depressão como sintoma social) está intimamente relacionado com as cartografias que se configuram dentro de nossa sociedade. É possível afirmar que cada período histórico-cultural produz um sintoma e como nos aponta Birman (1999), vivemos a cultura do espetáculo, do narcisismo. Esta subjetividade individualizada e fragmentada sofre e ao mesmo tempo contribui para a manutenção de uma sociedade de controle. Não sabemos até que ponto nosso desejo é realmente nosso e assim buscamos compreender-nos agarrando-nos aos discursos vinculados pela mídia. Nessa ditadura, incorporamos modelos. Quando não conseguimos atingir o status idealizado "compramos" a idéia de sermos depressivos para poder justificar nosso fracasso. Realizando esta leitura, fica suspenso no ar, o papel do psicólogo, como profissional de saúde, dentro deste contexto. A idéia deste trabalho não é fechar a questão, mas ao contrário, propiciar um momento de reflexão e problematização do nosso cotidiano e do nosso fazer. Acreditamos que dessa forma o psicólogo tem o dever de compreender o social e atribuir o peso deste nas relações as quais as pessoas se inserem. Pensamos que este conhecimento e o poder de refletir criticamente o cotidiano seja o primeiro exercício para que se possa efetivar ações que alterem este contexto. Compreender os quadros psicopatológicos que se apresentam dentro de nossa prática como fenômeno também cultural (e não apenas biológicos) é fundamental para analisar o sofrimento mental e propor políticas de saúde.

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Notas

1 - Trabalho desenvolvido na disciplina de Prática Disciplinar I (UNISINOS) em junho de 2000.

2 - Graduandas em psicologia pela UNISINOS. e-mail: [email protected]


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