Ética e Violência Doméstica Contra Crianças1

Louise Helena Borba e Sara santos Myron2

 

Considerando o ato violento moralmente reprovável no nosso contexto social, nos deparamos com questões éticas bastante complicadas. Temos por objetivo saber quais implicações resultam quando os profissionais de saúde interferem nas relações familiares.


Primeiramente, notamos a importância de clarificar alguns conceitos: o que é criança, o que é considerado violência e, mais especificamente, a violência doméstica.

Para o ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (ECA) Lei Federal 8.069/1990 - Capítulo I, Art. 2: considera-se criança, para os efeitos desta lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos...; Art. 3: A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata a lei, assegurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social em condições de liberdade e de dignidade. No capítulo II: do direito à liberdade, ao respeito e à dignidade: Art. 15: A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na constituição e nas leis.


Um ato violento, conforme Ferreira e Schramm (2000), deve preencher algumas condições, tais como: "causar dano a terceiros, usar força física ou psíquica, ser intencional e ir contra a livre e espontânea vontade de quem é o objeto do dano." KOLLER ainda acrescenta a este conceito, dizendo que sempre atos violentos acabam por impedir ou retardar o desenvolvimento pleno dos sujeitos, ocorrendo em relações interpessoais assimétricas e hierárquicas, em que haja qualquer forma de desigualdade e/ou subordinação.


Partindo deste pressuposto, podemos visualizar que a violência é um problema social e histórico presente em todas sociedades. Assim, tornou-se, segundo alguns autores institucionalizada, imbricada em nosso cotidiano, nos noticiários da televisão, nos índices de mortes e acidentes em nosso país. Desta forma, todos somos atingidos, independentemente de classe social.


No entanto, o que vem chamando atenção é a crescente violência contra a criança e o adolescente. Inúmeras são suas variações as quais fazem com que esta fase da vida não tenha nada de risonho, mas procuraremos nos deter na chamada por Maria Amélia Azevedo (1997) como a violência da "infância vitimizada", a criança vítima de violência doméstica, sendo caracterizada por esta mesma autora como " a violência praticada no lar e, por isso mesmo, a mais secreta de todas. Aqui estão as vítimas da " pedagogia negra" (maus tratos físicos), da negligência, do abuso sexual quase sempre de natureza incestuosa e da "perversa doçura", ou seja, da violência psicológica." (pg.242) .


Este tipo de violência é visto por muitos pesquisadores e autoridades como um fenômeno sócio-cultural dinâmico, em virtude das más condições de vida de grande parte da população, e, assim, muitas vezes, segundo REICHEL: "a perda dos laços de solidariedade, a alteração da estrutura familiar e sua desintegração frente as mudanças culturais de nossa época, assim como o processo altamente problematizado da construção de cidadania" (pg 10), são alguns indícios que podem explicar este crescente número de casos.


Conforme PIRES, alguns fatores são considerados como de risco, referindo-se a pais e às crianças, tais como: "No caso dos pais encontramos a repetição da história de abuso na infância (que é o mais comum), seguida de isolamento social, gravidez na adolescência, promiscuidade dos pais com vários parceiros convivendo no mesmo ambiente, falta de apego pai/mãe/filho, falta de pré-natal, capacidade limitada em lidar com situações de estresses, drogas, alcoolismo, baixa escolaridade, desemprego, pais com doenças psiquiátricas, emocionais e de personalidade"(p.63). Conforme algumas pesquisas, grande parte dos abusadores são homens com idade aproximada a 40 anos. Em relação à criança, a autora cita os seguintes fatores: "menores de 3 anos (pela incapacidade de se defenderem), crianças separadas das mães ao nascer, crianças nascidas com mal formações congênitas ou doença crônica, as adotadas pela falta de vínculo nos primeiros anos de vida, crianças não-planejadas, crianças frutos de união conjugal estável passando uma fase difícil no desenvolvimento neuro-psicomotor."(p.64)

Comumente, se pensa que a violência urbana é maior que a violência doméstica, mas comprovou-se que é o contrário e a violência urbana passou a ser vista como sua conseqüência, em virtude de neste importante período do desenvolvimento infantil a criança acabar assimilando como algo natural este tipo de relação, usando a própria violência, conforme Renato Caminha, como mediador social.


Além desta conseqüência nas relações, este tipo de violência gera, muitas vezes, desordem cognitiva, afetiva, comportamental e fisiológica. Além de culpabilidade pelo abuso, depressão, hipersexualidade, agressividade, dificuldade de modulação afetiva, comportamento auto-destrutivo, influindo consideravelmente na auto-imagem da criança, na sua auto-estima e sintomas dissociativos, os quais são um dos primeiros efeitos do estresse pós-traumático.


A partir destes fatos, põe-se a questão das implicações éticas: como agir frente à suspeita, ou mesmo declaração da criança em uma escuta clínica de violência doméstica? Como nos posicionar? E a família como fica?


O Código de Ética Profissional dos Psicólogos, no artigo 25 consta "O sigilo profissional protegerá o menor impúbere ou interdito, devendo ser comunicado aos responsáveis o estritamente essencial para promover medidas em seu benefício". Assim, novas questões nos caem: o que fazer quando os responsáveis são coniventes com o ato? Será um benefício real para as crianças que seus responsáveis soubessem que temos conhecimento do caso? Em algumas situações o menor poderia ser responsabilizado pelas medidas que seriam tomadas contra o abusador, também existem famílias em que o abusador é o único que gera rendimentos na família que prefere que a criança saia de casa ao invés dele.


No artigo 26: "a quebra de sigilo só será admissível, quando se trata de um fato delituoso e a gravidade de suas conseqüências para o próprio atendido ou para terceiros puder criar para o psicólogo o imperativo de consciência e denunciar o fato". Sendo assim, em casos em que a criança não sente o abuso como problema devemos denunciar e arriscar que essa família desapareça? Que tipo de intervenção devemos tomar? Até onde pode ir nossa interferência para não agravarmos a situação? Até que ponto as mães dessas crianças defendem a agressão justificando-o como forma de ensinar e disciplinar os filhos?
Sabemos que algo deve ser feito. Segundo, PIRES: "Intervir é, portanto, imperativo, visto que as conseqüências dos abusos incidem sobre a criança , sobre o abusador sobre a família e, no final, sobre a sociedade".


Nessas situações, qualquer atitude que for tomada gerará repercussões que não serão muito favoráveis seja para a criança, seja para a família ou para ambos. Temos que optar pela opção menos ruim, talvez procurar um consenso entre a família e o órgão protetor. Sempre buscando cessar imediatamente a violência, atender a família em que se encontra a criança, estabelecer novos vínculos, caso tenham-se rompido os anteriores. Além disso, a pessoa em foco deve ser compreendida a partir do seu ambiente natural e na sua própria interpretação da realidade.


Aos poucos começa a entrar na cultura popular que criança não é propriedade com a qual pode ser feito o que quiser. A violência teve atenção maior há apenas trinta anos, o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) surgiu em 1990. De qualquer forma, percebemos sua maior divulgação para crianças e famílias nos últimos anos.Também existem outros órgãos responsáveis como a CEDICA (Conselho regional dos Direitos da criança e do Adolescente).


Assim, "Atuar e intervir em violência exige que os profissionais envolvidos tenham por um lado a isenção do cientista,do pesquisador e do terapeuta; e do outro a capacidade de se indignar e militar numa área tão negligenciada, apesar dos últimos anos, em nosso país". (PIRES, p.60)


Sabemos que crianças e adolescentes têm direitos dentre eles, consta ECA no Art. 17: "O direito ao respeito que consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais" e no art. 18: "é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório, constrangedor."


Assim, cabe a nós futuros profissionais avaliar cada caso de forma a pensar uma melhor intervenção familiar e individual, sempre tendo como ponto de partida a promoção da dignidade humana.


Para finalizar, segundo o Código de Ética Profissional do Psicólogo "... a ética não pode proporcionar soluções pré-fabricadas, sem que haja um trabalho interno de cada indivíduo que se propõe agir eticamente".(REICHEL)

 


Referências Bibliográficas:

AZEVEDO, Maria Amélia. As políticas sociais e a violência doméstica contra crianças e adolescentes: um desafio recusado em São Paulo? (pgs.228-276) In: AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane (orgs). Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento.São Paulo: Cortez, 1997, 334pgs.

CAMINHA, Renato. Violência doméstica. (Palestra ocorrida na Universidade em abril próximo)

GABEL, Marceline- Crianças Vítimas de abuso Sexual. São Paulo: Sumus,1997

Jornal Zero Hora -18/05/01- Violência Contra a Infância

Lei Federal 8.069/1990 Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)

Código de Ética Profissional dos Psicólogos - 2000 (Conselho Federal de Psicologia)

Artigos do site da internet: http//:www.scielo.br: "Implicações éticas da violência doméstica contra a criança para profissionais de saúde" FERREIRA, Ana; SHARAMAMM, Fermin

Violência Doméstica. Org. e realização: Assembléia legislativa - Comissão de Cidadania e Direitos Humanos

 

 

Notas

1 - Texto desenvolvido para Disciplina de Ética e Bioética da graduação de Psicologia (UNISINOS). Professor Hans Benno Asseburg. São Leopoldo, junho de 2001.

2 - Graduandas do curso de psicologia pela UNISINOS. Louise Helena Borba (e-mail: [email protected]) e Sara santos Myron (e-mail: [email protected]).


Voltar ao início da página

Voltar

Hosted by www.Geocities.ws

1