ENTRE SCHOPENHAUER E NIETZSCHE
Música e Vontade em O Nascimento da Tragédia

Jorge Chaves de Moraes 1



Existem diferentes maneiras de abordar a relação entre música e vontade em O Nascimento da Tragédia. A mais comum é aquela que interpreta esta primeira obra publicada de Nietzsche inteiramente à luz da filosofia de Arthur Schopenhauer 2 . A interpretação que desenvolveremos aqui não seguirá este caminho, em vez disso avaliaremos alguns pontos de divergência entre este primeiro Nietzsche e o filósofo pelo qual ele manifestou ter sido influenciado na juventude. A partir destas divergências, nosso objetivo é marcar uma distinção fundamental entre suas estéticas, tendo como ponto central o acesso direto à vontade que a arte musical teria em ambas. Nossa hipótese é que justamente neste ponto central não há uma convergência; mas, como veremos, uma relevante separação entre Nietzsche e Schopenhauer.

Em 1865, Nietzsche, então um jovem estudante de filologia clássica, descobre em Leipzig a obra principal de Arthur Schopenhauer: O Mundo como Vontade e Representação. A partir daí ele se vê tomado pelo pensamento que encontrou naquele livro, onde o mundo é visto sob dois aspectos: como representação, i.e. como fenômeno ou aquilo que aparece; mas também como vontade, ou seja, como coisa em si, aquilo que existe para além de qualquer relação com o mundo da aparência, aquilo que existe em si e por si mesmo, fora das relações de espaço e tempo, fora de qualquer representação. Schopenhauer mantém assim a distinção kantiana entre fenômeno e coisa em si 3. Como fenômeno (MVR I) ou mera aparência, o mundo obedece ao princípio de razão suficiente 4, i.e. ele obedece à noção de causa e efeito, que se dá no âmbito do espaço e da temporalidade. Em termos resumidos: o entendimento coloca algo existindo (portanto, no tempo) fora de nós (i.e. no espaço) através da causalidade. O mundo inteligível à nossa volta é, então, um mundo organizado espaço-temporalmente através da causalidade. Mas como a coisa em si (MVR II) deve estar fora de qualquer relação, se faz impossível compreendê-la a partir do entendimento, i.e. através de qualquer organização espaço-temporal. Por isso ela é pura vontade: uma força cega, sem razão (grundlos) e caótica, a qual nosso pensamento, nosso entendimento, não pode acessar. O que isto significa é que o mundo não é visto mais como tendo uma lógica ou racionalidade. A ordem própria do mundo é o caos e o sentido próprio do mundo é a falta de sentido.

Para Schopenhauer, é este mesmo caos que sustenta o mundo -esta luta pela vida, este querer perdurar eternamente numa luta irracional pela vida. Trata-se, portanto, de um querer ou vontade de estar no mundo, ainda que isto acarrete necessariamente luta, sofrimento e dor. Esta vontade interna do mundo se manifesta em tudo aquilo que existe. Neste sentido, cada ente (vivo ou não) é visto como exemplo da luta irracional pela existência. Cada ente, em conflito com os demais, está a serviço deste querer permanecer no mundo. Todavia, esta ordem caótica que é a vontade, se manifesta em cada ente em graus diferentes; mas sempre sob o aspecto de luta, resistência e esforço pela duração. O homem, em sua luta contra outros homens, em sua luta contra a própria natureza, é tomado como parte deste mundo conflituoso, desta desordem; tal como os demais entes, ele é impulso e objetivação da vontade (MVR 25) 5 . Mas ainda assim, no interior desta desordem, ele é visto como a manifestação mais elevada do querer desordenado que é a vontade; ao mesmo tempo, ele é concebido como produto mais elaborado da coisa em si, como o que é querido pela vontade.

Embora Schopenhauer conceba o mundo a partir destes dois aspectos, ele não erigiu fronteiras intransponíveis entre a coisa em si e o fenômeno. Pois ainda que a vontade exista para além de toda explicação racional, isto não significa que o acesso a ela seja completamente vedado. Se ele não é possível através da razão, sua filosofia poderá encontrar finalmente uma via para a coisa em si através da arte.

Como vimos, a vontade se objetiva em diversos graus; mas não apenas na forma dos entes grosseiros que existem no mundo (-tal como o homem). A vontade também se objetiva sob a forma de Idéias, as quais correspondem ao grau mais imediato de sua objetivação. Platonicamente, Schopenhauer nos apresenta tais Idéias como "formas e propriedades invariáveis originárias de todos os corpos naturais, orgânicos e inorgânicos" (MVR 30). Por não experimentarem pluralidade nem mudança, estas formas existem por sua vez fora do âmbito de toda representação (i.e. de todo fenômeno), não se submetendo, portanto, ao princípio de razão suficiente. Deste modo, Schopenhauer se distancia necessariamente do "otimismo socrático", que vê na dialética o instrumento capaz de acessar o plano das Idéias.

Ao contrário de Platão, para Schopenhauer não seria a dialética, mas a arte, o instrumento capaz de nos levar até estas formas invariáveis que são as idéias. Por intermédio da arte chegaríamos às idéias e, por intermédio destas, finalmente chegaríamos à verdade primordial e sem sentido que é a própria vontade cega do mundo. Isto se torna possível porque a arte "é a contemplação das coisas independente do princípio de razão" (MVR 36). Nesse estado de contemplação estética, o homem se torna "sujeito puro do conhecimento". Desta forma, ainda que de modo indireto, nos é oferecido "um claro espelho do ser do mundo" (MVR 36).

No entanto, há uma arte em especial para Schopenhauer: -a música. Nela, mais do que em qualquer outra manifestação artística, se faz possível o acesso ao cerne do mundo (MVR 52); não mais por intermédio das idéias, mas de modo imediato. "Porque a música é uma reprodução e uma objetivação tão imediata de toda a vontade [...] como o são as idéias", "ela tem [...] diretamente como objeto a vontade" (MVR 52). Com efeito, trata-se de uma relação mimética (i.e. de imitação) e, neste sentido, Schopenhauer afirma: "A relação de cópia com o modelo que ela [a música] tem com o mundo deve ser muito íntima, infinitamente exata e muito precisa, visto que todos a compreendem sem custo" (MVR 52). Mas o próprio autor considera sua tese como sendo "impossível de provar" e admite a dificuldade de considerar "a música como cópia de um modelo que nunca pode, ele mesmo, ser representado diretamente." (MVR 52) Em vez de resolver esse paradoxo, Schopenhauer propõe uma analogia entre a estrutura das composições musicais de sua época e os graus de objetivação da vontade.

Como já vimos, em 1865 Nietzsche adere com entusiasmo a este pensamento. Mas embora sua adesão tenha sido imediata, isso não impediu que ele levantasse aos poucos objeções à visão schopenhaueriana, tanto estética quanto metafísica. Em um manuscrito da primavera de 1868, Nietzsche afirma, sobre a obra principal de Schopenhauer, que ela é «Uma tentativa de explicar o mundo a partir de um fator admitido. A coisa em si toma aqui uma de suas possíveis formas. A tentativa falhou [...] Schopenhauer substitui o X kantiano (a coisa em si) pela vontade, que ele só obtém com a ajuda de uma intuição poética.» A esta vontade, radicalmente inconcebível», Schopenhauer impõe «predicados bastante determinados». Mas o mundo não se deixa apreender facilmente nas determinações de um sistema. «Schopenhauer quis achar o X de uma equação: de seus cálculos, surge novamente que este X é igual a X, i.e. que ele não o encontrou.» 6

Não apenas nesta passagem, mas em várias outras anotações de juventude, Nietzsche se opõe à metafísica e à estética schopenhaueriana 7 .

 

Todavia, em O Nascimento da Tragédia, estas oposições não são claras, nem parecem ter relevância. Por esta razão, muitas vezes passam desapercebidas pelos comentadores.

É certo que nesta primeira obra a música também é considerada a arte mais privilegiada dentre as demais. Todavia sua relação com a vontade, a coisa em si schopenhaueriana, não foi ainda totalmente explicitada. Neste primeiro livro, encontramos 3 passagens em que o autor se refere à arte musical como sendo capaz de acessar diretamente a vontade, todas as três concentradas na seção 16 e todas sob a sombra de Schopenhauer. Na primeira passagem, Nietzsche cita a idéia que «se tornou manifesta a apenas um dos grandes pensadores» (Schopenhauer), de que a música é «reflexo imediato da vontade mesma». Na segunda, citando entre aspas O Mundo como Vontade e Representação, Nietzsche repete que a música é «reflexo imediato da própria vontade». Por último, concluindo logo após a citação, diz ele: «Entendemos portanto, segundo a doutrina de Schopenhauer, a música como linguagem imediata da vontade». Este acesso direto, porém, não elucida os problemas que encontramos na estética schopenhaueriana; já que a música permanece "cópia de um modelo que nunca pode, ele mesmo, ser representado diretamente." Somos levados assim a buscar em O Nascimento da Tragédia um outro viés dessa relação entre música e vontade e o encontramos no simbolismo musical.

Em várias passagens desta sua primeira obra, Nietzsche se refere à música como sendo uma arte simbólica:

 

Agora a essência da natureza deve expressar-se por via simbólica [symbolisch]; um novo mundo de símbolos [Symbole] se faz necessário, todos os gestos bailantes dos membros em movimentos rítmicos. Então crescem as outras forças simbólicas [symbolischen], as da música, em súbita impetuosidade, na rítmica, na dinâmica e na harmonia. Para captar esse desencadeamento simultâneo de todas as forças simbólicas [symbolischen], o homem já deve ter arribado ao nível de desprendimento de si próprio que deseja exprimir-se simbolicamente naquelas forças [...] (NT 2. V. também NT 5, 6, entre outros)

Eis a expressão do ser interno do mundo em O Nascimento da Tragédia: um símbolo e não -tal como em Schopenhauer- uma objetivação "infinitamente exata e muito precisa". A vontade, portanto, se manifestaria através da música; mas apenas porque a arte musical é dotada de "forças simbólicas". Cabe, entretanto, compreender isto que Nietzsche chama de força simbólica e então verificar em que medida a relação simbólica se distancia da relação "infinitamente exata" schopenhaueriana. -Devemos assim determinar em que sentido e por que razão a relação simbólica não pode ser considerada precisa ou exata.

 

O termo símbolo (Symbol) é exaustivamente utilizado por Nietzsche não só nesta sua primeira obra, mas também em seus apontamentos e conferências da mesma época. Um levantamento dos usos deste termo nos oferece pelo menos um traço comum: que é a do símbolo não ser a verdade, mas tampouco de ser a aparência desta verdade. "Agora a verdade é simbolizada", afirma Nietzsche em A Visão Dionisíaca do Mundo, "se serve da aparência, e por isso pode e tem que utilizar também as artes da aparência." E "Quem vence o poder da aparência, e a despotencializa, reduzindo-a a símbolo? É a música." 8

 

A força simbólica da música em Nietzsche, ou "A força dionisíaca da transformação mágica" -para usar um outro termo nietzscheano-, é a força capaz de transformar a aparência em verdade. Em O Nascimento da Tragédia, esta força simbólica é compreendida no âmbito da transfiguração (Verklärung), que nada mais é do que o caráter intrínseco de toda atividade artística, tanto apolínea (plástica) quanto dionisíaca (musical). 9

 

Nesta sua primeira obra, Nietzsche desenvolve uma estética baseada nestas duas pulsões naturais, o dionisíaco e o apolíneo, e o encontro destas duas pulsões teria como resultado a obra de arte. No caso da predominância dionisíaca, i.e. da embriaguez, da desfiguração e da desmedida, temos como conseqüência a música. No caso da predominância apolínea, i.e. da figuração, do sonho e da medida, temos como resultado as artes plásticas. No estado dionisíaco, que é predominante na música, a transfiguração das artes se manifesta como "prazer primordial percebido inclusive na dor" (NT 4), ou "alegria pelo aniquilamento do indivíduo" (NT 16) -tal como uma completa embriaguez na qual a luta da vontade consigo mesma se torna sedutora.10

 

Em Apolo, porém, este caráter artístico de transfiguração é primordial para que se possa alcançar "a redenção na aparência" -tal como uma espécie de sonho ou véu protetor (NT 16). Deste modo, a embriaguez dionisíaca e o sonho apolíneo interagem aqui de modo a possibilitar a expressão total da vontade, não mais no âmbito exclusivo da música, mas da fusão teatral entre Apolo e Dionísio; a tragédia seria portanto a arte onde a presença de Apolo e de Dionísio se equilibrariam. Neste equilíbrio, entretanto, encontramos o papel preponderante da música que é o de uma "suma intensificação" do estado apolíneo submetido agora à força dionisíaca (NT 22). Com o dionisíaco, o apolíneo é então apto a realizar a transfiguração da vontade interna do mundo.

A música opera, portanto, uma dupla transformação : (1) torna a vontade aprazível, sedutora, e (2) ativa a capacidade de transfiguração apolínea. Diante dessa dupla transformação, vemos cair por terra a relação imediata entendida como "infinitamente exata e muito precisa", que Schopenhauer atribuiu ao par música-vontade. No lugar dela surge uma "expressão simbólica" na qual Apolo também se vê incluído. Por esta razão Nietzsche pode afirmar: se pensarmos agora que a música, em sua suprema intensificação, tem de procurar atingir uma suprema afiguração, devemos considerar como algo possível que ela saiba encontrar outrossim a expressão simbólica para a sua autêntica sabedoria dionisíaca; e onde mais haveremos de buscar tal expressão senão na tragédia e, em geral, no conceito do trágico? (NT 16)

 

Deste modo, a expressão simbólica da vontade se dá na música através de uma apropriação da afiguração apolínea, i.e. do que há de externo na música: o ritmo e a cadência. Isto porque ritmo e cadência (aspectos apolíneos), tanto quanto melodia e harmonia (aspectos dionisíacos), são necessários à toda e qualquer expressão musical. Assim, Apolo (o deus sol) também marcará sua presença na arte musical, permitindo que Nietzsche se referira à música alemã como um "poderoso curso solar [Sonnenlaufe], de Bach a Beethoven, de Beethoven a Wagner" (NT 19). Neste sentido, o deslocamento do simbolismo exclusivamente musical para o simbolismo teatral se faz necessário apenas porque na música esta conjunção entre Apolo e Dionísio se dá de maneira sutil, enquanto que, na encenação trágica, ela se torna extremamente visível - pela plasticidade inerente a toda representação teatral. Sendo por este motivo que Nietzsche recorrerá à tragédia a fim de encontrar o ápice do simbolismo da vontade, expressão do ser interno do mundo.

 

Malgrado toda distinção que fizemos entre relação exata e relação simbólica, não podemos deixar de ver a ligação entre a vontade de Schopenhauer e o deus Dionísio de Nietzsche. Afinal, para este último, a essência da música é o próprio deus grego. Paralelamente, em Schopenhauer, a música é objetivação da vontade. Dionísio e vontade se encontram, portanto, de maneira bastante relevante aqui. Ambos são instâncias exteriores à cena, 11 se encontram sempre em outro plano e não se manifestam senão através de uma materialização da e na arte musical. Sendo assim, Dionísio e vontade são transcendentes 12 , i.e. são realidades propriamente metafísicas, que existem para além de toda aparência. Deste modo, Nietzsche, tal como Schopenhauer, permanecerá preso ainda a um pensamento metafísico 13; muito embora, ao avaliarmos o papel que a música assume em cada autor, verificamos por fim que tais metafísicas se constituem de modo totalmente diferente 14.

a) Em Schopenhauer, a música é focalizada como um instrumento de contemplação da vontade porque ela é, ao mesmo tempo, a materialização da vontade (tal como um código pelo qual a vontade se manifesta), mas também é um anestésico (que nos permite ler esse código). Em Nietzsche, porém, a música é focalizada em seu aspecto produtivo: como elemento fundamental para a realização da tragédia. Deste modo, é na obra de arte dionisíaca que encontramos o verdadeiro fundamento da tragédia Ática. Por esta razão dirá Nietzsche: «a melodia incessantemente geradora lança à sua volta centelhas de imagens» (NT 6). Ou ainda, "A força hercúlea da música: é ela que, chegando na tragédia à sua mais alta manifestação, sabe interpretar o mito com nova e mais profunda significação; de tal modo que já tivemos antes de caracterizar isso como a mais poderosa faculdade da música." (NT 10) Ou mais adiante: "Esse mito moribundo é agora capturado pelo gênio recém-nascido da música dionisíaca: e em suas mãos floresce ele mais uma vez, em cores como jamais apresentara, com um aroma que excita o pressentimento nostálgico de um mundo metafísico." (Idem) -Percebemos este caráter predominantemente produtivo da música não apenas ao longo da obra, mas também a partir, inclusive, do seu título completo, onde se lê: O nascimento da tragédia no espírito da música.

b) Notamos ainda que estes diferentes papéis assumidos pela música (como instrumento de contemplação da vontade e como instrumento de produção simbólica) se correspondem com os também diferentes sentidos que a tragédia encontra nos dois filósofos. Deste modo, delineamos duas perspectivas bastante diversas: por um lado a de Nietzsche, que vê na tragédia a expressão de uma alegria 15 -perfeitamente compatível com o caráter produtivo da música nietzscheana; e por outro a perspectiva de Schopenhauer, que vê na tragédia apenas a "renúncia à vontade de viver" 16, o "caminho da resignação" 17 -também compatível com o caráter contemplativo que encontramos em sua música. Por isso, somos levados a considerar as palavras de Charles Andler: "Nietzsche tentou ser um interprete rigoroso e um adversário leal. Mas ele nunca foi servo do pensamento schopenhaueriano." 18

 

Assim a metafísica no jovem Nietzsche adquire um sentido diferente da de Schopenhauer. Não há qualquer caráter contemplativo na música nietzscheana. Não se trata, portanto, de conhecer nem a vontade interna do mundo, nem Dionísio. Isto porque Nietzsche não está interessado em constituir «um puro sujeito do conhecimento» como Schopenhauer (MVR 34). Para Nietzsche, «o único sujeito verdadeiramente existente» é a própria vontade, e o homem assume esta condição apenas quando «se funde com o artista primordial do mundo» (NT 5). Por isso, o que encontramos em Nietzsche é uma dimensão psicológica da música, a qual tem o poder de afetar o ouvinte, destruindo sua consciência individual, tal como no êxtase produzido pela embriaguez. Não nos referimos aqui à psicologia que Nietzsche desenvolverá em sua obra de maturidade; já que ele ainda não está interessado em avaliar os tipos psicológicos (forte ou fraco, ativo ou reativo) que comporiam uma determinada obra. Em vez disso, a dimensão psicológica que aqui se estabelece se explica através do "conforto metafísico" produzido pela música.

Nas palavras de Richard Schacht: "Nós podemos ser confortados (mais ainda) pela transformação de nossa identidade psicológica que nos habilita a alcançar um senso de unidade com esta indestrutível e inexaurível realidade subjacente, da qual nós somos manifestações verdadeiramente." 19

Neste sentido, a "força simbólica" da música é uma força de amálgama, uma força que une o homem a esta realidade subjacente 20, produzindo com isso o conforto metafísico. Esta união, entretanto, não é nada mais que uma experiência psicológica, na qual o homem é destituído de uma consciência individual e passa a assumir uma postura de aquiescência feliz com relação à falta de sentido original do mundo, i.e. com relação à força cega, sem razão (grundlos) e caótica, a qual nosso pensamento não pode acessar. Através da experiência oferecida pela música, a falta de sentido original do mundo, transfigurada simbolicamente no jogo dissonante entre Apolo e Dionísio, passa agora a ser inscrita no próprio homem, o que de modo algum é uma representação ou contemplação da vontade ou de Dionísio. É neste sentido que compreendemos o caráter simbólico da música: esta reprodução da dissonância no ouvinte, tal como se escreve simbolicamente toda dissonância sobre um pentagrama. Por isso, repetimos com Nietzsche, "o homem deixa de ser artista e passa a ser obra de arte", lugar onde se resolve a dissonância original. Assim o homem se torna uma parábola (Gleichnis) do simbolismo musical, a materialização da união simbólica entre Apolo e Dionísio.

 

Distinguimos assim a relação simbólica da relação exata entre música e vontade em Nietzsche, tendo para isso destacado o caráter puramente contemplativo do caráter produtivo da arte musical. Este último, intimamente relacionado ao próprio simbolismo nietzsheano, o que significa dizer que toda produção passa a ser entendida como produção de símbolos, i.e. transfigurações de uma força cega sob o nome de obra-de-arte, da qual o próprio homem faz parte. Neste sentido, a criação artística, entendida como ação transformadora, acaba por fechar as portas da estética contemplativa, ensaiando os primeiros passos para uma psicologia da arte; o que nos permite identificar, no pensamento metafísico do jovem Nietzsche, o viés de uma possível transição, localizando este primeiro Nietzsche em algum ponto entre Nietzsche e Schopenhauer.

 

Notas

1 - Mestrando em Filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

2 - Como faz Julian Young em seu Nietzsche's Philosophy of Art, Cambridge, 1996, p. 26: "The Birth incorporates without modification Schopenhauer's metaphysics, that is incorporates substantial elements of his theory of art, especially his theory of music […]".

3 - Cf Clément Rosset, Schopenhauer. Paris: PUF, 1968, p. 19)

4 - Devemos observar que Schopenhauer reduz as 12 categorias kantianas, segundo às quais percebemos o mundo (v. Crítica da Razão Pura, B. 106), à noção de causalidade (cf. Sobre a Quádrupla Raiz do Princípio da Razão Suficiente, tr. fr., p. 44).

5 - V. tr. fr., p. 176: "[...] é nos graus extremos da objetivação da vontade que vemos a individualidade se produzir de uma maneira significativa, especialmente no homem [...]" Para Schopenhauer, a vontade é sempre una e a mesma. Ao contrário, suas formas visíveis são múltiplas e distintas.

6 - Nietzsche, HKG, Werk, Bd. III, Munique: Beck, 1937, p. 352-61.

7 - Nietzsche, Fragmentos Póstumos, 1869-1874, 7 [161-72], 5 [77-81], 12 [1].

8 - Cf., entre outros, "A visão dionisíaca do mundo", parte 3.

9 - Cf. NT 24: "O mito trágico, na medida em que pertence de algum modo à arte, também participa do intento metafísico de transfiguração inerente à arte como tal;"

10 - Lembremos do episódio em que Dionísio conduz Penteu para a morte após embriagá-lo (cf. Eurípdes, Bacas). V. Também a função do encantamento na arte dramática (NT 8).

11 - Cf. destaca Jean-Michel Rey, L'enjeu des signes. Paris: Seuil, 1971, p. 226: "O nome de Dionísio não aparece jamais dentro do texto mesmo, mas como que dentro de sua margem e em sobrecarga; elemento anônimo que circula sem fim dentro do texto da tragédia, sem que lá possa ser lido como tal; elemento sempre retraído do texto; que lá se dissimula ao se deslocar (Verborgenheit); ponto obscuro que não se pode nomear senão dentro dos termos de uma diferença sem solução (...)"

12 - Cf. assinala Mathieu Kessler, L'esthétique de Nietzsche, Paris: PUF, 1998, p. 32.

13 - Nas palavras de Nietzsche: «me agarrei à mais séria convicção do valor metafísico da arte [den metaphysischen Wert der Kunst], a qual não pode existir por causa dos pobre seres humanos, mas deve cumprir missões mais altas.» Friedrich Nietzsche An Carl von Gersdorff, Basel, 21 Juni 1871, Nietzsche-W Bd. 3, S. 1042, C. Hanser Verlag, tr. nossa.

14 - Em outra carta, afirma o filósofo: «Logo, vejo uma parte de novas metafísicas, logo novas estéticas crescerem». Friedrich Nietzsche an Erwin Rohde, Lugano, Hôtel du Parc (wird aber Ende der Woche verlassen) [29. März 1871], Nietzsche-W Bd. 3, S. 1040, C. Hanser Verlag, tr. nossa.

15 - Cf. NT 7, 17, 22, 24.

16 - SCHOPENHAUER, Paderga e Paraliponema, v. ii , cap. XIX, § 227 e MVR, IV, § 68.

17 - MVR, cap. XXXVII dos suplementos ao livro III intitulado "Da estética da poesia".

18 - Nietzsche, sa vie et sa pensée. Paris: Gallimard, 1958, vol. 1 , cap. VI, p. 78. V. também Janz, Nietzsche, vol. 1, Hanser Verlag, capítulos VII e VIII.

19 - Nietzsche, Nova York: Routledge, 1995, p. 494.

20 - Talvez por esta razão o Nietzsche filólogo e helenista tenha se utilizado do termo alemão Symbol, que vem do grego simbolon. Em Herôdotos (6.86b), simbolon é uma espécie de senha, metade de moedas cortadas em duas partes capazes de rejuntar-se perfeitamente.


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