Por Que a Psicanálise1
Gustavo Garcia2

Desde o início, a autora deixa bem claro os motivos que a levaram escrever a obra, trata-se de uma defesa apaixonada e e um ataque fulminante tanto as correntes ditas científicas, quanto as práticas, denomindas por ela de charlatanescas e obscurantistas. É interessante notar aí uma certa contradição, a mesma ciência duramente criticada por seus paradigmas biológicos, mecanicistas (cérebro-máquina) é usada também, para definições do que é e o que não é charlatanismo. No centro de tudo isso aparece a centenária psicanálise, cujo decadência, evidenciada pela própria autora, é reflexo de um crescimento tanto desse cientificismo das ciências cognitivas e da psicofarmacologia geral quanto das práticas ocultistas ou pré-freudianas como a iridologia, energética transpessoal, mediunidade, entre outras. Ao mesmo tempo em que denúncia o discurso de poder da ciência, colocando-o em dúvida, Roudinesco desvaloriza toda e qualquer prática que ainda não obteve reconhecimento científico, denominando-as como charlatanescas. Assim sendo, ela passa-nos a impressão de que a Psicanálise é o paradigma determinante do que é válido e o que não é válido em termos de saúde. De fato, parafraseando-a, a psicanálise é a ciência erigida em religião da própria autora, pois ela cega-se de paixão por seu próprio saber psicanalítico e esquece-se de que não está livre de seus próprios preconceitos, crenças, expectativas, experiências, enfim de seus limites.

Neste contexto, é interessante constatarmos nas palavras da própria Roudinesco, a imensa distância entre o saber teórico e a experiência prática de vida, já que em suas próprias e esclarecedoras concepções do meio social atual, ela reconhece as dificuldades do ser humano diante da alteridade: " A sociedade democrática moderna quer banir de seu horiozonte a realidade do infortúnio, da morte e da violência, ao mesmo tempo tentando integrar num sitema único as diferenças e as resitências" (Roudinesco, página 16), mais ainda, segundo ela: "Daí uma concepção da norma e da patologia que repousa num princípio inatingível: todo o indivíduo tem o direito e portanto, o dever de não mais manisfestar seu sofrimento, de não mais se entusiasmar com o menor ideal que não seja o do pacifismo ou o da moral humanitária. Em consequência disso, o ódio ao outro tornou-se um sub-reptício, perverso e ainda mais temível, por assumir a máscara da dedicação à vítima. Se o ódio pelo outro é, inicialmente, o ódio a si mesmo, ele repousa, como todo masoquismo, na negação imaginária da alteridade. O outro passa então a ser sempre uma vítima, e é por isso que se gera a intolerância, pela vontade de instaurar no outro a coerência soberana de um eu narcísico, cujo ideal seria destruí-lo antes mesmo que ele pudesse existir". (Roudinesco, página 16). Dificuldades essas que todos nós deveríamos, ao menos, reconhecer, para mais tarde tentar tomar consciência, integrando-as em nossas personalidades, ao invés de simplesmente reprimí-las, ou aliená-las, ou seccioná-las, ou ainda, projetá-las nos outros. Assim talvez, trazendo o tema para o campo da psicologia, o cientista cognitivo não perdesse mais tempo criticando prepotentemente em nome da ciência o psicanalista, e nem o psicanalista perderia tempo rotulando os junguianos de místicos visto que não entendem nada de misticismo (a não ser talvez sobre o significado da palavra ou pouco mais) e nem querem entender, e estes últimos tavez deixassem de perder tempo criticando a quarta-força chamada transpessoal como se ela se resumisse a hipótese de vidas passadas, e vice-versa em todos os casos. Se existe essa diversidade, na minha opinião devemos contemplá-las com discernimento, e não é excluindo como faz precipitadamente Roudinesco ao denominar algumas técnicas alternativas de charlatanismo, por simplesmente estarem distantes de seu paradigma psicanalítico , que ela atestará ou comprovará suas idéias e críticas apaixonadas, que longe de atingirem seu objetivo desejado, acabam por "jogar lenha na fogueira". Mais ainda, dados aos seus próprios preconceitos e resistências ela demonstra não ter uma opinião confiável no que tange aquilo que ela denomina charlatanismo, simplesmente por não ser aberta e muito menos flexível o suficiente para realmente poder pesquisar ou experenciar mais diretamente o assunto. Talvez as críticas da autora sejam mais bem direcionadas quando contra as concepções cientificistas dominantes que ela demonstra conhecer muito bem e, em cuja sua argumentação contrária, repousa certa consistência.

Assim, são nos três capítulos seguintes que a autora, na minha modesta opinião, mais nos esclarece e mais demonstra ter um "real" conhecimento dos fatos, e não simples e escancarados preconceitos. Suas críticas, neste sentido, são praticamente uma defesa ao ataques dos cientificistas de plantão à teoria e prática psicanalíticas. Estando ciente do fato de que a medicina convencional e seu respectivo modelo biomédico estão muito longe de curar quaisquer doenças mentais ou nervosas, ela nos atenta para o fato de que "receitados tanto por clínicos gerais quanto por especialistas em psicopatologia, os psicotrópicos têm o efeito de normalizar comportamentos e eliminar os sintomas mais dolorosos do sofrimento psíquico, sem lhes buscar a significação". (Roudinesco, página 21). Esta oposição psicanalítica ao que é tido e aceito pela ciência na área da sáude vem apenas a confirmar a minha tese de que a "experiência" supera e está sempre a frente da ciência, e por isso, quando a ciência nos restringe ou nos impõe limites, ela deve ser abandonada. Ou então, ampliemos o nosso conceito de ciência.

È a "prática psicanalítica" e o "estudo de caso clínicos" que vão levar Freud aos caminhos de uma metapsicologia que se opõe inevitavelmente ao "crivo científico positivista", ou ainda, é por intermédio de sua "experiência" que ele constrói sua brilhante teoria e não pelos usuais artifícios científicos (limites-padrão) que são uma exigência de seus opositores. É interessante notar que Freud até tentou adeqüar a sua Psicanálise a um modelo científico de época, para o bem de que fosse reconhecida e aceita, ainda assim alguns elementos da teoria psicanalítica estavam "além" dos paradigmas da ciência vigente - mecanicista e cartesiana, daí os inevitáveis e constantes ataques dos tecnicistas, desde a origem da Psicanálise até os dias de hoje. O mesmo Freud afirmava que a Psicanálise teria de ser modificada na medida em que a prórpia ciência modifica os seus paradigmas de tempos em tempos. Com o advento da Física Quântica que solapou de uma só vez com o modelo newtoniano de universo essa previsão do grande mestre não poderia ser mais verdadeira.

Fico preocupado ao notar que a grande maioria dos psicanalistas, e Roudinesco não é uma exceção, ainda não se deu conta (ou prefere não se dar) das implicações filosóficas e existencias que esta mudança de paradigmas na física ainda vai nos causar. Assim, eu seria mais cauteloso em relação ao que autora denomina de "tratamentos mágicos", e ao sentido negativo e banalizante que lhes atribui, ainda mais quando ela declara que " (…) quanto mais se promete o 'fim' do sofrimento através da ingestão de pílulas, que nunca fazem mais do que suspender sintomas ou transformar uma personalidade, mais o sujeito, decepcionado, volta-se para tratamentos corporais ou mágicos" (Roudinesco, página 22). Desta forma, ela afirma que, dados os fracassos e desilusões causados pelas falsas promessas de "cura" da farmacologia (já disse que concordo com ela nesse ponto), o sujeito parte então para tratamentos alternativos (aí começo a discordar). Como se a procura por tratamentos não-convencionais, em detrimento aos psicanalíticos, se desse quase que exclusivamente (ou principalmente) pela ineficácia dos psicofármacos, o que na bem da verdade, em termos de especulação (e nada mais) poderia ser apenas "um" dos vários fatores a enumerar, e mesmo assim, em muitos casos, talvez nem o mais importante. Isto porque, para mim, as pessoas procuram por estes tipos de tratamento, por que algo que faz parte delas as instiga para tal. As pesquisas em neurociências comprovaram as especializações dos hemisférios cerebrais, e demonstraram o quanto a nossa ciência atual privilegia apenas um deles - o esquerdo - em detrimento ao outro - o direito. Assim as habilidades referentes ao hemisfério esquerdo como a razão, o pensamenso analítico e linear, a linguagem e a lógica são predominantemente desenvolvidas, enquanto que, as habilidades não menos importantes do hemisfério direito como a intuição, o pensamento analógico e emocional, holístico, simbólico e sintético são deixadas de lado descaradamente. Eu me pergunto que noção de realidade pode ter uma ciência estritamente racional, de lado esquerdo cerebral como a nossa? Alguém que enxerga bem com apenas um olho, pode ter uma visão mais ampla do que alguém que enxerga com os dois olhos?

Assim, também podemos ampliar isto para o aprendizado da vida, onde o ser humano não consegue viver somente com a visão de mundo de nossa ciência atual, pois ela representa apenas metade da verdade, é dependente somente de parte da nossa consciência, ou ainda, apenas da metade do cérebro. Desse ponto de vista, tudo tem de ser racional, razoável e analíticamente palpável, só fenômenos circunscritos no tempo e espaço são passíveis de existir. Por outro lado, todos os conteúdos que as pessoas gostam de desprezar como irracionais, insensatos, místicos, ocultistas e fantásticos nada mais são do que maneiras opostas e complementares que os seres humanos têm de ver o mundo, bem característicos do hemisfério direito cerebral; e não é de se espantar que o sujeito parta em busca de tratamentos neste sentido - muitas dessas práticas terapêuticas procuram inclusive fazer a junção dos hemisférios - e por isso são chamadas holísticas, pois escapam a enfoques exclusivamente (ou excessivamente) racionais, explicativos e lógicos (sem com isso deixar de incluí-los), vistos que, estes últimos - calcados na tirania da "razão", não dão conta da totalidade do "ser".

Do mesmo modo, em O homem comportamental, capítulo quatro, Roudinesco, naquilo em que mais concordo com ela, critica e hironiza o discurso dos geneticistas e neurocientistas em geral, que tentam explicar e justificar as origens da maioria dos comportamentos humanos por intermédio de mecanismos genéticos.
Diz a autora: "Recentemente a título de pilhéria, escrevi na revista Nature que, com esse tipo de pesquisa, logo se iria afirmar que a guerra da Bósnia foi conseqüência de um problema de serotonina no cérebro do Dr. Karadzic, e que poderia ser detida mediante uma prescrição maciça de Prozac" (Roudinesco, página 44).

Brilhante.

Ao final deste mesmo capítulo, ela afirma sobre a Psicanálise: "Com efeito, ela tomou emprestado da psiquiatria o modelo nosográfico, da psicoterapia o modelo do tratamento psíquico, da filosofia uma teoria do sujeito, e da antropologia uma concepção fundamentada na idéia da universalidade do gênero humano que respeita as diferenças" (Roudinesco, página 52).

Quanto ao respeito as diferenças, eu tenho minhas dúvidas… ela é contraditória.

Eu prefiro uma Roudinesco mais polida…

"Se o termo sujeito tem algum significado, a subjetividade não é mensurável nem quantificável: ela é a prova, ao mesmo tempo visível e invisível, consciente e inconsciente, pela qual se afirma a essência da experiência humana"(Roudinesco, página 52).

Não esqueçamos disso.

Na segunda parte do livro, cunhada A Grande Querela do Inconsciente, cujo capítulo um é o Cérebro de Frankenstein, a autora continua suas críticas consistentes a modelos cientificistas de mente-corpo, cujas pretensões são as de explicar o psiquismo humano através de limitadíssimas analogias do cérebro humano com o computador. Baseando-se em uma conferência de Canguilhem, ela o cita pertinentemente: " É voluntariamente que não tratarei de uma questão que, pela lógica, deveria levar a nos interrogarmos sobre a possibilidade de um dia vermos, na vitrine de uma livraria, A 'Autobiografia de um computador', na falta de sua 'Autocrítica'" (Roudinesco, página 57).

Comparada ao discurso de poder, ditado pelos cientificistas através de suas verdades - provisóriamente - absolutas e comprovadas (pasmem), por isso, mais verdadeiras - leis da ciência (ou provas) , a psicanálise é com certeza uma teoria associada a uma filosofia de liberdade e a uma concepção de psiquismo que, como nos fala a autora, "a despeito dos ataques dos quais tem sido objeto e malgrado a esclerose de suas instituições, ela deveria ainda hoje, nessas condições, ser capaz de dar uma resposta humanista à selvageria surda e mortífera de uma sociedade depressiva que tende a reduzir o homem a uma máquina desprovida de pensamento e afeto" (Roudinesco, página 70).

No entanto, a autora não deve esquecer que toda a teoria é na realidade uma convenção - um limite - uma ilusão, ou ainda, uma verdade parcial, a não ser que Freud e seus seguidores sejam os únicos seres "neutros" em suas formulações e concepções, desta forma não sendo influenciados (e limitados) por suas póprias experiências, crenças, expectativas, idéias, aspirações, etc. Então como toda a boa convenção da realidade, a psicanálise, ao mesmo modo que a religião e o cientificismo, também é uma criação da própria consciência - uma ilusão, e até mesmo por isso não é capaz de apreendê-la totalmente, pois a certas dimensões do se humano que só podem ser sentidas, contempladas, enfim experenciadas. Isto porque, como já demonstraram os semanticistas, nossos pensamentos, idéias, palavras, etc, não correspondem a realidade, do mesmo modo que "o mapa não é o território". Conquanto vivemos sob a égide da criação de nossos próprios limites, pois a vida cotidiana os exige, confundí-los com o real é um erro inexorável e grossseiro que transforma nossas vidas em um verdadeiro campo de batalha. O que estou querendo dizer com isso é que embora a criação de limites (e metalimites, e metametalimites…) seja uma necessidade nossa (para existir a experiência o universo precisa se dividir em uma parte que experencia e em outra que é experenciada), acreditar que estes são reais têm sido a causa da grande maioria dos problemas de divergência e sectarismos da civilização humana. As discussões apaixonadas deste livro são um exemplo concreto do que estou falando.

Ao defender o "racionalismo" psicanalítico e desvalorizar as escolas de psicoterapia que renunciam à própria idéia de uma explicação estritamente racional do psiquismo humano, a autora assume a postura de que a razão dá conta de explicar o fenômeno humano e a vida em sua plenitude. Deste modo, passamos da "utopia cientificista" denunciada pela autora, em sua obra, para a "utopia racionalista" enunciada pela mesma…

No quarto e último capítulo, denominado Crítica das Instituições Psicanalíticas, e que poderia muito bem ser chamado também de Mal-Estar na Psicanálise (a própria autora utiliza essas palavras no final do livro), Roudinesco fazendo uma espécie de mea culpa, dá o seu parecer sobre a situação da centenária Psicanálise nos dias de hoje - e ao meu ver - de forma honesta e até corajosa, ela anuncia preocupada, as suas dúvidas e incertezas no que diz respeito ao futuro das instituições psicanalíticas. Com a palavra a própria autora:

"Mas, à força de cultivar mais a norma do que a originalidade, e de cultivar a globalização em detrimento ao internacionalismo, a psicanálise dos notáveis desertou do terreno do debate político e intelectual. Não soube aceitar o desafio da ciência nem as mudanças da sociedade. Julgando-se intocável, não mais se preocupou - a despeito da coragem individualidade de inúmeros de seus praticantes anônimos - com a realidade social, com a miséria, o desemprego, os abusos sexuais e as novas reivindicações provenientes das transformações da família patriarcal: sobretudo as dos homossexuais, a quem, como sublinhei, ela continua a recusar o direito de se tornarem psicanalistas. Em suma, ela se desinteressou do mundo real para se voltar para suas fantasias de onipotência. Por isso, abandonou os jovens clínicos que havia formado e que acabaram não mais acreditando no valor das instituições freudianas.É por isso que eles as criticam vivamente e tentam conceber novas instituições, mais adaptadas ao mundo moderno".

Neste contexto, ela cita o Brasil e Argentina como celeiros do "renascimento" do freudismo, no entanto, esta afirmação é por demais controversa e até me causa um certo estranhamento, pois, embora eu concorde que isto ocorre principalmente pela força dos departamentos de psicologia que privilegiam o ensino psicanalítico em detrimento de outras disciplinas (como ela mesmo diz), por outro lado, não vejo como isso possa ser concebido como um "renascer" psicanalítico, mas sim, como uma "resistência" dominante elitizada, visto que, todo o privilégio exarcebado concedido a uma prática ou escola qualquer, seja ela psicanalítica, behaviorista, humanista ou transpessoal (só para citar as quatro forças), acaba gerando um "desquilíbrio" e uma "homogenização" preponderante que longe de serem benéficos, se tornam um empecilho à alteridade e a transformação no campo psi. Enquanto o respeito a diversidade, tão propagado pela autora em sua obra for deixado de lado - seja em prol de um saber psicanalítico ou de outro qualquer - estaremos nos entregando e nos encerrando em nossos próprios limites - ilusórios, e afastando toda e qualquer possibilidade de transformação e crescimento, seja como profissionais da área da saúde, ou seja como seres humanos.

 

Notas

1 - Texto produzido em abril de 2001 na cadeira de Fundamentos da Clínica Psicológica (UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNISINOS)
2 - Graduando em psicologia pela UNISINOS. Aprendiz do segundo nível da ATC (Abordagem Transpessoal da Consciência) na Unipaz - Universidade Holística Internacional. E-mail:
[email protected]


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