Etnopsicopatologia e Xamanismo
Gustavo Garcia1
A Profecia do Arco-Íris
(Lenda dos índios Navajos)
"Quando o Tempo do Búfalo
estiver para chegar, a terceira geração de crianças de
Olhos Brancos deixará crescer os cabelos, e começará a
falar do Amor que trará a Cura para todos os Filhos da Terra. Estas crianças
buscarão novas maneiras de compreender a si próprias e aos outros.
Usarão penas, colares de contas e pintarão os rostos. Buscarão
os anciãos da nossa Raça Vermelha para beber da Fonte de sua Sabedoria.
Estas crianças de olhos brancos servirão como um sinal de que
nossos Ancestrais estão retornando em corpos brancos por fora, mas Vermelhos
por dentro. Elas aprenderão a caminhar novamente em equilíbrio
na superfície da Mãe Terra e saberão levar nossas idéias
aos Chefes Brancos. Estas crianças também terão de passar
por provas, como acontecia quando ainda eram Ancestrais Vermelhos
A Roda do Arco-Íris surgirá sob a forma de um Cachorro do Sol
para todos aqueles que estiverem prontos para vê-la. O Cachorro do Sol
forma um Círculo de Arco-Íris apontando para as Quatro Direções
Esta será a linguagem que o Céu usará para nos dizer que
chegou o momento de compartilhar os Ensinamentos Secretos e Sagrados entre todas
as raças. Muitos Filhos da Terra despertarão para assumir a responsabilidade
dos ensinamentos e o processo de Cura Planetária começará
a tomar novo impulso." (Jamie Sams in Cartas do Caminho Sagrado)
Introdução
Nesta segunda parte do projeto,
pretendemos dar continuação ao trabalho anterior, aprofundando
ainda mais o tema proposto que era o de comparar e elucidar a visão que
as sociedades primitivas possuiam de estados e fenômenos mentais considerados
pela medicina ocidental como extremas patologias, tratando-as com medicamentos
para amenizar os distúrbios através da manipulação
da química cerebral. Além disso, também levantaremos outras
questões muito ligadas a este tema, como por exemplo, o próprio
fato de nós ocidentais termos um comportamento altamente nocivo à
natureza devido as nossas ambições desmedidas e irrefletidas por
progresso e desenvolvimento, um interesse colossal e patológico pelo
tecnicismo-mecanicista e pelo desenvolvimento tecnológico que nos põe
diretamente em rota de colisão com a natureza e o meio ambiente em que
vivemos, numa total falta de percepção ecológica e até
de conhecimento científico, visto que, atualmente muitos cientistas,
embasados nas novas descobertas da física quântica relativista,
estão se voltando para paradigma holístico (ou abordagem sistêmica),
que segundo o físico Frijof Capra consiste em um entendimento de que:
"Hoje está ficando cada vez mais evidente que a excessiva enfâse
no método científico e no pensamento racional, analítico,
levou a atitudes profundamente antiecológicas. Na verdade a compreensão
dos ecossistemas é dificultada pela própria natureza da mente
racional. O pensamento racional é linear, ao passo que a consciência
ecológica decorre de uma intuição de sistemas não-lineares.
Os ecossistemas sustentam-se num equilíbrio dinâmico baseado em
ciclos e flutuações, que são processos não-lineares.
(
) Portanto, a consciência ecológica somente surgirá
quando aliarmos ao nosso conhecimento racional uma intuição de
natureza não-linear de nosso meio-ambiente. Tal sabedoria intuitiva é
característica das culturas tradicionais, não letradas, especialmente
as culturas dos índios americanos, em que a vida foi organizada em torno
de uma consciência altamente refinada do meio ambiente". Para reforçar
esta opinião, logo após a esta introdução, colocamos
a famosa carta do cacique Seatlle dirigida ao presidente dos E.U.A, afim de
exemplificarmos bem isso que Capra nos coloca com tanta propriedade.
Assim sendo, será que o comportamento da nossa tão difundida cultura ocidental, considerado normal, não pode, em um certo sentido, ser considerado como uma grave patologia? Em relação ao respeito pela natureza, não teriam os índios e povos primitivos uma filosofia a nos ensinar? E se o nosso comportamento, dito normal, pode ser tão doentio e até insano em várias esferas de nossas vidas, será que podemos ter tanta "certeza" e a "convicção" de que o nosso conhecimento técnico-científico é mesmo tão eficiente quanto pensamos no que diz respeito ao estudo de doenças, principalmente, as mentais, de cunho mais subjetivo, onde os níveis de realidade e de consciente-inconsciente se confundem e nos mostram, na prática, pelos fracassos da psiquiatria tradicional e das psicoterapias convencionais, que nos falta uma compreensão mais adequada da grande maioria das enfermidades mentais mais graves, colocando em dúvida as nossas próprias noções de saúde e doença, e até mesmo de realidade.
"Primitivos como são,
ensinaram-me uma nova filosofia de vida, pois sua ignorância está
mais próxima da verdade que o nosso preconceito."
( Carl Lumholtz, em artigo da National Geographic Brasil, N° 2, junho de
2000)
A Carta do Chefe Indígena Seattle (1854)
Resposta do cacique Seattle ao Presidente Americano F. Pierce, que tentava comprar as suas terras. Um exemplo sublime de consciência Holística e Ecológica. Uma denúncia à ganância do homem branco, orgulhoso de seu intelecto. Um grito contra a injustiça dos que pensam ter o direito sobre a terra, excluindo seus semelhantes e outros seres vivos. Um apelo ao humanismo:
O ar é precioso para o homem
vermelho, pois todas as coisas compartilham o mesmo sopro: o animal, a árvore,
o homem, todos compartilham o mesmo sopro. Parece que o homem branco não
sente o ar que respira. Como um homem agonizante há vários dias,
é insensível ao seu próprio mau cheiro.
Portanto, vamos meditar sobre sua oferta de comprar nossa terra. Se nós
a decidirmos aceitar, imporei uma condição: O homem branco deve
tratar os animais desta terra como seus irmãos.
O que é o homem sem os animais? Se os animais se fossem, o homem morreria
de uma grande solidão de espírito. Pois o que ocorre com os animais,
breve acontece com o homem. Há uma lição em tudo. Tudo
está ligado.
Vocês devem ensinar às sua crianças que o solo a seus pés
é a cinza de nossos avós. Para que respeitem a terra, digam a
seus filhos que ela foi enriquecida com a vida de nosso povo. Ensinem às
suas crianças o que ensinamos às nossas: que a terra é
nossa mãe. Tudo o que acontecer à Terra, acontecerá também
aos filhos da terra. Se os homens cospem no solo, estão cuspindo em si
mesmos.
Disto nós sabemos: a terra não pertence ao homem; o homem é
que pertence à terra. Disto sabemos: todas as coisas estão ligadas
como o sangue que une uma família. Há uma ligação
em tudo.
O que ocorre com a terra recairá sobre os filhos da terra. O homem não
teceu o teia da vida: ele é simplesmente um de seus fios. Tudo o que
fizer ao tecido, fará o homem a si mesmo. Mesmo o homem branco, cujo
Deus caminha e fala como ele de amigo para amigo, não pode estar isento
do destino comum. É possível que sejamos irmãos, apesar
de tudo. Veremos. De uma coisa estamos certos (e o homem branco poderá
vir a descobrir um dia): Deus é um Só, qualquer que seja o nome
que lhe dêem. Vocês podem pensar que O possuem, como desejam possuir
nossa terra; mas não é possível. Ele é o Deus do
homem e sua compaixão é igual para o homem branco e para o homem
vermelho. A terra lhe é preciosa e feri-la é desprezar o seu Criador.
Os homens brancos também passarão; talvez mais cedo do que todas
as outras tribos. Contaminem suas camas, e uma noite serão sufocados
pelos próprios dejetos.
Mas quando de sua desaparição, vocês brilharão intensamente,
iluminados pela força do Deus que os trouxe a esta terra e por alguma
razão especial lhes deu o domínio sobre a terra e sobre o homem
vermelho. Esse destino é um mistério para nós, pois não
compreendemos que todos os búfalos sejam exterminados, os cavalos bravios
sejam todos domados, os recantos secretos das florestas densa impregnados do
cheiro de muitos homens, e a visão dos morros obstruídas por fios
que falam. Onde está o arvoredo? Desapareceu. Onde está a água?
Desapareceu. É o final da vida e o início da sobrevivência.
Como é que se pode comprar ou vender o céu, o calor da terra?
Essa idéia nos parece um pouco estranha. Se não possuímos
o frescor do ar e o brilho da água, como é possível comprá-los.
Cada pedaço de terra é sagrado para meu povo. Cada ramo brilhante
de um pinheiro, cada punhado de areia das praias, a penumbra na floresta densa,
cada clareira e inseto a zumbir são sagrados na memória e experiência
do meu povo. A seiva que percorre o corpo das árvores carrega consigo
as lembranças do homem vermelho...
Essa água brilhante que escorre nos riachos e rios não é
apenas água, mas o sangue de nossos antepassados. Se lhes vendermos a
terra, vocês devem lembrar-se de que ela é sagrada, e devem ensinar
às suas crianças que ela é sagrada e que cada reflexo nas
águas límpidas dos lagos fala de acontecimentos e lembranças
da vida do meu povo. O murmúrio das águas é a voz dos meus
ancestrais.
Os rios são nossos irmãos, saciam nossa sede. Os rios carregam
nossas canoas e alimentam nossas crianças. Se lhes vendermos nossa terra,
vocês devem lembrar e ensinar para seus filhos que os rios são
nossos irmãos e seus também. E, portanto, vocês devem, dar
aos rios a bondade que dedicariam a qualquer irmão.
Sabemos que o homem branco não compreende nossos costumes. Uma porção
de terra, para ele, tem o mesmo significado que qualquer outra, pois é
um forasteiro que vem à noite e extrai da terra tudo que necessita. A
terra, para ele, não é sua irmã, mas sua inimiga e, quando
ele a conquista, extraindo dela o que deseja, prossegue seu caminho. Deixa para
tráz os túmulos de seus antepassados e não se incomoda.
Rapta da terra aquilo que seria de seus filhos e não se importa... Seu
apetite devorará a terra, deixando somente um deserto.
Eu não sei... nossos costumes são diferentes dos seus. A visão
de suas cidades fere os olhos do homem vermelho. Talvez porque o homem vermelho
seja um selvagem e não compreenda.
Não há um lugar quieto nas cidades do homem branco. Nenhum lugar
onde se possa ouvir o desabrochar de folhas na primavera ou o bater de asas
de um inseto. Mas talvez seja porque eu sou um selvagem e não compreendo.
O ruído parece somente insultar os ouvidos. E o que resta de um homem,
se não pode ouvir o choro solitário de uma ave ou o debate dos
sapos ao redor de uma lagoa, à noite? Eu sou um homem vermelho e não
compreendo. O índio prefere o suave murmuro do vento encrespando a face
do lago, e o próprio vento, limpo por uma chuva diurna ou perfumado pelos
pinheiros.
(Fonte: "Educação Ambiental - Princípios e Práticas", Genebaldo Freire Dias Editora GAIA 1993)
Xamanismo, Psiquiatria Tradicional
e Cultura Ocidental
A cultura e a medicina ocidentais declararam guerra total à doença
e à morte, à morte porque significa o fim de nossa existência
terrena e, à doença, porque impede a fruição da
vida. Encaramos a doença como uma coisa ruim, isolamos a loucura e a
colocamos bem longe de nossos olhos, procuramos nos livrar da doença
o mais rápido possível, uma coisa com que devemos acabar. Nós
a vemos como algo que nos invade e incomoda, por isso nós a vivemos,
de modo profundo, como um processo externo que incapacita, paralisa ou destrói
por dentro o nosso corpo, como um estado de coisas não-natural que deve
ser suprimido por todo meio concebível.
Nossa cultura vê o sofrimento e a enfermidade como algo advindo de uma
fonte hostil ao corpo, e é por isso que a nossa luta contra a doença,
o sofrimento, a morte e a dor física se torna algo tão habitual.
No fundo, porque desagrada à nossa visão estática de mundo
que visa obliterar toda e qualquer espécie de mudança, com exceção,
talvez, a mudança econômica e tecnológica. Ressentimos-nos
particularmente de toda a alteração da consciência e de
toda transformação ontológica.
Talvez esse seja um dos principais motivos para que as pesquisas, ditas científicas,
fracassem enormemente em descobrir métodos de cura mais satisfatórios
e menos paliativos (vide psicofármacos) para a maioria absoluta das doenças
mentais mais sérias como a esquizofrenia ou a psicose. Isso quando fracasso
não é, ainda mais grave, como no caso de quando falham os métodos
convencionais para as mais simples enfermidades e doenças psicossomáticas.
Segundo o Kaplan (F.1999, pág.185) "a Organização
Mundial da Saúde vem conduzindo diagnósticos de transtornos mentais
entre várias culturas. O Estudo-Piloto sobre Esquizofrenia, de abrangência
internacional, confirmou que a condição existe em todos os grupos
estudados (por ex., nigerianos, dinamarqueses, laoneses, celtas, croatas e outros),
sendo constante através das culturas. Os estudos de resultados em pacientes
com esquizofrenia, entretanto, não são confiáveis, uma
vez que algumas sociedades não estigmatizam os doentes mentais, que são
rapidamente reintegrados à sociedade.
Além do mais, a etnografia (do grego ethnos, significando raça
ou povo) que é um método indutivo de descrição das
formas culturais através do exame de uma série de casos, peca
pelo fato de que é extremamente perigoso tentar descrever as características
étnicas de uma cultura. O risco de estereotipagem é grande e o
conceito de caráter nacional é controverso, entre os antropólogos.
O status de classe e a identidade étnica influenciam a experiência
da doença pelo paciente. É importante, entretanto, evitar generalizações.
O paciente deve ser entendido em termos de cultura específica ou grupo
étnico ao qual pertence.
Ainda que não seja declarado abertamente, a psiquiatria tradicional associa
saúde com ateísmo, materialismo e visão de mundo mecanicista.
Qualquer indicativo de espiritualidade, estados místicos ou unificadores
são imediatamente psicopatologizados, estigmatizados, vistos como regressão
ao narcisismo primário, ou infantilizados. Aquilo que o psiquiatra estabelece
como diagnóstico é um estágio de um processo transformativo
ao qual o cliente se ligou.
Se pudéssemos entender a doença e o sofrimento como processos
de transformação física e psíquica, como o fazem
as culturas asiáticas e tribais, poderíamos obter uma visão
mais profunda e menos tendenciosa dos processos psicossomáticos e começaríamos
a perceber as muitas oportunidades que o sofrimento e a morte do ego apresentam.
Para as culturas tradicionais, a enfermidade, o sofrimento e a morte são
manifestações da sabedoria inerente ao corpo, ao qual precisamos
nos render para atingir áreas de percepção capazes de revelar
a regra básica de nossa existência na Terra. Elas consideram o
Além e a morte como um meio de de regeneração e de recuperação
de nossa existência terrena. Também consideram a doença
um processo que retira de nós os maus hábitos que acumulamos diante
de nossa falsa atitude diante da vida.
Em sociedades tradicionais, a presença de um indivíduo com sintomas
patológicos é encarada como o reflexo da luta do indivíduo
contra as dificuldades da vida e representam aspectos sociais, legais, éticos,
mais do que uma "doença no sentido médico ou biomédico".
"As culturas tradicionais
são culturas de "orientação terapêutica",
porque favorecem a inserção do indivíduo no seu grupo,
porque libertam através de uma comunicação ininterrupta,
cantos, danças e jogos, emoções, tensões que são
recalcadas nas sociedades ocidentais, porque finalmente instituem manifestações
religiosas geralmente fundadas sobre um otimismo e uma confiança total
na vida".
(Laplantine, F. 1978, p.10)
Para os xamãs, a doença faz parte de um conjunto mais vasto do
que ela própria, é o sinal de uma divindade ancestral, tribal
ou estrangeira, procurando comunicar alguma coisa ao grupo no seu conjunto.
As desordens mentais são consideradas menos como doença do que
um sintoma de um mal estar e infelicidade gerado pela degradação
das relações sociais dentro desse grupo.
A doença é um chamado à auto-realização,
ao autodesenvolvimento e, em casos extremos (e de especial interesse neste trabalho
como veremos a seguir) - constitui uma variedade da iniciação
xamânica, o que não quer dizer que todo o xamã inicie sua
carreira por intermédio de crises e doenças sérias, há
várias outras possibilidades, no entanto é bastante comum que
assim se suceda e que tais episódios sejam usados como meio de transformação.
Quando a Insanidade é uma Benção: A Mensagem do Xamanismo
Em suas viagens pela Sibéria,
o explorador húngaro Vilmos Diószegi reuniu muitos relatos sobre
vocações xamânicas vividas em consequência de enfermidades.
Certo dia, ele perguntou a Kyzlasov, ex-xamã da tribo Sagay de Kyzlan,
no rio Yes, como este adquirira seus poderes. Kyzlasov reagiu com um pesado
silêncio. Mas sua mulher se aproximou e contou a história do marido:
"Como ele se tornou xamã? A doença o tomou quando ele tinha
vinte e três anos de idade e ele se tornou xamã aos trinta. Foi
assim que ele chegou a ser xamã, depois da doença, depois da tortura.
Ele ficou doente durante sete anos. Enquanto estava enfermo, tinha sonhos: Ele
era atacado repetidas vezes, em algumas ocasiões era transportado para
lugares distantes. Ele viajou muito em sonhos e viu muitas coisas
Quem
pega a doença do xamã e não começa a exercer o xamanismo
sofre muito. Pode perder a razão, pode até perder a vida. Por
isso, o doente é aconselhado: "Você deve assumir o xamanismo
para não sofrer!" Alguns até dizem: "Só me tornei
xamã para me livrar da doença".
Sunchugasev, outro xamã presente, acrescentou:
" O homem escolhido para o xamanado é reconhecido em primeiro lugar
pelos espíritos negros. Os espíritos dos xamãs mortos são
chamados espíritos negros. Eles fazem o escolhido adoecer e o forçam
a se tornar xamã".
É conveniente relembrarmos do relato, colocado em nosso primeiro trabalho,
de Isaac Tens, índio gitskan; retirado da obra The Shaman's Doorway,
de Stephen Larsen:
"Meu corpo tremia. Enquanto permanecia nesse estado, eu me sacudia. Um
canto saía de mim sem que eu nada pudesse fazer para interrompê-lo.
Nesse momento, muitas coisas me apareciam: grandes pássaros e animais
Eles só eram visíveis para mim, e não para as outras pessoas
que estavam na minha casa. Essas visões acontecem quando a pessoa está
para se tornar xamã; ocorrem por si mesmas. Os cantos abrem o seu próprio
caminho e saem inteiros, sem que façamos esforços para compô-los
"
Através destes dois exemplos acima reinteramos que o objetivo principal
deste trabalho seria o de estabelecer uma comparação entre o que
é definido como psicopatologia para a nossa civilização
ocidental e suas semelhanças com episódios de iniciação
xamã, o que assim, demonstraria convenientemente uma relação
bastante curiosa: o que para nós (ocidentais) é considerado como
grave patologia mental, faz parte, embora não seja uma regra geral, de
vários casos de crise iniciatória ao xamanismo e ao curandeirismo.
O xamanismo é a mais antiga religião do mundo e a mais remota
arte de curar da humanidade; é provável que sua origem remonte
à era paleolítica, há dezenas de milhares de anos. Ele
é quase universal; sua prática cobre o período do tempo
entre a Idade da Pedra e o presente, podendo suas várias formas ser encontradas
na África, na Europa, na América do Norte e do Sul, na Ásia,
na Austrália e na Polinésia.
A carreira de muitos xamãs começa com um episódio dramático
de estado incomum da consciência que a psiquiatria ocidental tradicional
vê como manifestação de uma grave doença mental.
Esse episódio inclui experiências visionárias de descida
no mundo inferior, de ataques de demônios e de torturas e provações
desumanas, seguidos por uma sequência de morte e renascimento, com a subseqüente
subida para reinos celestiais. No decorrer desse período, o futuro xamã
pode passar por um amplo espectro de emoções extremas, podendo
exibir os comportamentos mais incomuns.
Julgados pelos padrões médicos do Ocidente, esse sintomas sugerem
uma grave desordem psiquiátrica. Contudo, se essa crise for superada
e completada com sucesso, ocorre uma cura pessoal, uma melhoria do funcionamento
social e o desenvolvimento de habilidades xamânicas. O indivíduo
é então aceito pela tribo como membro extremamente importante
e útil do grupo. Todavia, vale a pena acentuar que as experiências
estranhas não bastam para qualificar a pessoa como xamã. Ser xamã
requer a complementação bem-sucedida do episódio e um retorno
ao pleno funcionamento na vida cotidiana. As culturas xamânicas fazem
uma clara distinção entre pessoas que são xamãs
e pessoas doentes ou loucas.
As idéias xamanísticas acerca das causas das enfermidades estão
intimamente ligadas ao meio ambiente social e cultural do paciente. Enquanto
o foco da medicina científica ocidental incide sobre mecanismos biológicos
e os processos fisiológicos que produzem a evidência da enfermidade,
a principal preocupação do xamanismo está relacionada com
o contexto sócio-cultural em que a enfermidade ocorre.
As terapias xamãs obedecem geralmente a um enfoque psicossomático,
pela aplicação de técnicas psicológicas a doenças
físicas. A principal finalidade dessas técnicas consiste em reintegrar
a condição do paciente na ordem cósmica. Claude Lévi-Strauss,
num artigo clássico sobre o xamanismo, deu uma descrição
detalhada de um complexo ritual de cura centro-americano, em que um xamã
cura uma mulher doente evocando os mitos da cultura dela e usando o simbolismo
apropriado para ajudar a integrar a dor que ela sentia num todo significativo.
Logo que a paciente entende sua condição em relação
a este contexto mais amplo, a cura ocorre e ela fica bem.
Os rituais xamanísticos de cura têm a função de elevar
os conflitos e as resistências inconscientes a um nível consciente,
onde podem desenvolver-se livremente e encontrar uma solução.
Essa, evidentemente, é também a dinâmica básica das
psicoterapias modernas. Na verdade, aqui se concentra um fato que merece todo
o nosso respeito e que deve nos fazer refletir a respeito do equívoco
que seria considerar os métodos curativos do xamanismo como demasiado
primitivos: durante séculos, os xamãs usaram técnicas terapêuticas,
como participação em grupo, psicodrama, análise dos sonhos,
sugestão, hipnose, utilização de imagens dirigidas e terapia
psicodélica, durante séculos, antes que elas fossem redescobertas
pelos psicólogos modernos.
"
longe de serem trapaceiros, charlatães ou ignorantes, os
curandeiros aborígenes são homens de alta categoria, ou seja,
homens que alcançaram, na vida secreta, um grau muito mais elevado do
que a maior parte dos adultos - um passo que implica disciplina, treinamento
mental, coragem e perseverança
São homens respeitáveis,
quase sempre dotados de notável personalidade
eles têm uma
imensa importância social, pois a saúde psicológica do grupo
depende muito da fé que seus poderes nele despertam
os vários
poderes psíquicos que lhes são atribuídos não devem
ser de imediato repelidos como simples magia primitiva e 'faz de conta', porque
muitos deles se especializaram no trabalho da mente humana, e na influência
da mente sobre o corpo e da mente sobre a mente
"
(De Aboriginal Men of High Degree, do antropólogo australiano A.P. Elkin,
1945: 78-79)
A Jornada do Tambor
O Tambor constitui-se em um instrumento
básico para o xamã entrar em estados alterados de consciência.
Com boa razão, os xamãs siberianos, e outros, às vezes
referen-se aos seus tambores como o "cavalo" ou a "canoa"
que os transporta ao Mundo Profundo e ao Mundo Superior. A batida constante
e monótona do tambor atua como uma onda mensageira, primeiro para ajudar
o xamã a entrar em estado alterado de consciência, depois para
sustentá-lo em sua viagem.
A pesquisa de laboratório desenvolvida por Neher demonstrou que o tambor
produz modificações no sistema nervoso central. O estímulo
rítmico afeta por ressonância a atividade elétrica "em
muitas áreas sensórias e motoras do cérebro que não
costumam ser afetadas, através de suas conexões com a área
sensória que está sendo estimulada". Isto parece ser causado
em parte pelo fato de que uma só batida de tambor contém muitas
frequências de sons e, em consequência, transmite simultaneamente
impulsos ao longo de diversas vias nervosas do cérebro. Além disso,
as batidas de tambor são, principalmente, de baixa frequência,
o que significa que mais energia pode ser transmitida ao cérebro por
uma batida de tambor que por um estímulo sonoro de alta frequência.
Isto é possível, declara Neher, porque "os receptores de
baixa frequência do ouvido são mais resistentes às lesões
do que os delicados receptores de alta frequência, e podem suportar amplitudes
mais intensas de som antes que a dor seja sentida".
Jilek e Ormsted descobriram que as frequências da batida de tambor na
onda teta do nível de frequência do EEG - Eletroencefalograma,
de quatro a sete ciclos por segundo, são as mais eficazes na produção
de estados de "transe". A palavra "transe" aqui, devido
as concepções culturais do ocidente que lhe outorgam uma implicação
de "não-consciente", ao contrário, deve ser apenas entendida
como um estado psíquico incomum experimentado pelo xamã, o que
em alguns casos não significa a perda da consciência, mas sim,
um estado da alterado da mesma.
É nesses estados alterados da consciência que o xamã pode
"ver" outras realidades. Isto pode ser chamado de "visualização",
"imaginação" ou, como dizem os aborígenes australianos,
usando o "olho forte". Embora tal "vidência" ocorra
num estado alterado da consciência, seria um pré-julgamento não-empírico,
prejudicial à compreensão (e percepção) direta,
desdenhar essas visões classificando-as como alucinações.
Tal como o ilustre antropólogo A.P. Elkin observa, a visão de
um xamã aborígene "não é mera alucinação.
É uma construção mental visualizada e exteriorizada, que
pode mesmo existir por um tempo, independentemente do seu criador
Enquanto
a pessoa está tendo a visão, não pode se mover, mas está
consciente do que se passa em torno dela".
Assim sendo, "em transe" significa dizer que o xamã tem ainda
em parte sua consciência levemente ligada à realidade comum do
ambiente físico onde ele se encontra, deste modo, este estado não
produz obrigatóriamente a amnésia (como acontece com médiuns
espíritas e com as danças de possessões de espíritos
em povos do Caribe ou em Java), sua viagem é mental e subjetiva, adentrando
outros níveis da consciência, outras "realidades". Estas
realidades "alternativas" são para o xamã, tão
ou mais "reais" que a nossa "realidade ordinária".
Conclusão
Procuramos acrescentar nesta sequência
de trabalho um material que fosse, ao mesmo tempo, claro, conciso e que evitasse
complicar demais o tema, que sabemos, apesar de fazer parte da história
e antropologia da humanidade, consistituindo-se em um assunto "antigüissimo",
paradoxalmente é também, uma grande novidade para a maioria das
pessoas.
Este trabalho visa também ser um resgate de uma filosofia de vida e de
tradições de cura primitivas belíssimas que foram postas
de lado pela nossa civilização ocidental, que em seu ímpeto
pelo progresso "desmedido" e por seus condicionamentos "equivocados"
acabou perdendo o rumo do seu próprio coração e separou-se
de tal forma do seu próprio meio ambiente, que tem o destruído
inconseqüentemente.
Escolhemos também, o tema xamanismo para falar de etnopsicopatologia
por todos os motivos já enunciados e até mesmo para trazer de
volta à psicologia acadêmica um pouco desse conhecimento transcultural
e milenar. Como futuros ou atuais profissionais na área da saúde
mental convém atentarmos para o fato de que os antigos métodos
xamãs já foram testados pelo tempo, de fato eles vem sendo testados
há um tempo imensuravelmente maior, por exemplo, que a psicanálise
e inúmeras outras técnicas psicoterapêuticas.
Devido a dificuldade que seria realizarmos exercícios de observação
de campo, relativas ao tema proposto, nossa pesquisa será de cunho mais
bibliográfico (livros, revistas, documentos, sites na internet, etc)
procurando trazer um ponto de vista diferente do senso comum e apresentando
concepções que tragam novas idéias a respeito desse assunto,
bastante difundido no meio antropológico, e inexplicavelmente, desconsiderado
no âmbito da psicologia acadêmica atual, isto porque, os xamãs
foram os primeiros grandes terapeutas e curadores a existir na face da terra,
e por incrível que possa parecer, muitos de seus métodos e de
sua filosofia (desvaloriazadas por nós como "primitivismo")
vem sendo atualmente investigados por um número enorme de cientistas,
físicos, antropólogos, psicólogos, médicos , muitos
destes, Phd's, nomes renomados em seus campos de atuação respectivos.
A nossa pesquisa sugere que a compreensão teórica e a abordagem
prática de alguns estados psicopatológicos no campo da atual psiquiatria
ocidental devem ser seriamente reexaminadas e reavaliadas. A evidência
vinda das culturas xamânicas por certo sustenta e exemplifica muito bem
o tema central deste trabalho: o de que é possível abordar alguns
estados incomuns de consciência (sem considerá-los como mera patologia,
tentando suprimí-los através de um reducionismo biológico)
de modo a produzir resultados benéficos para a pessoa envolvida e sua
comunidade.
A adaptação livre que David Cloutier fez de um poema xamã
da tribo Chukchee da Sibéria finaliza e ilustra com um pouco de arte
aquilo que tão resumidamente tratamos neste trabalho:
Coisas que um xamã vê
Tudo o que existe
tem vida
na íngreme ribanceira de
um rio
há uma voz que fala
eu vi o dono dessa voz
ele me cumprimentou
eu falei com ele
ele respoondeu às minhas perguntas
tudo o que existe
tem vida
Pequeno pássaro cinzento
pequeno pássaro de peito azul
canta num galho oco
ela chama sua dança dos espíritos
canta sua canção de xamã
pica-pau numa árvore
esse é seu tambor
ele tem um nariz tamborileiro
e a árvore estremece
grita como um tambor
quando o machado atinge seu flanco
tudi isso responde
ao meu chamado
tudo o que existe
tem vida
A lanterna caminha por aí
as paredes desta casa tem línguas
mesmo esta tigela tem seu verdadeiro lar
o couro adormecido em suas bolsas
acorda e conversa a noite toda
ossos nos túmulos
erguem-se e rodeiam os montículos
enquanto os próprios mortos se levantam
e vão visitar os vivos
(Cloutier 1973:32-33, livre adaptação de Bogoras 1909: 281)
Bibliografia:
Grof, Stanislav. Além do Ego: Renascimento, Morte e Transcendência em Psicoterapia. São Paulo, McGraw-Hill. 1987.
Laplantine, François. Etnopsicopatologia. Lisboa, editorial Vega. 1978.
Elíade, Mircea. Mefistófeles e o Andrógino. São Paulo, Martins Fontes. 1991.
Grof, Stanislav e Christina. Emergência Espiritual. São Paulo, Cultrix. 1997.
Capra, Fritjof. Ponto de Mutação. São Paulo, Cultrix. 1999.
Harner, Michael. O Caminho do Xamã. São Paulo, Cultrix. 1995.
Notas
1 - Graduando em psicologia pela UNISINOS. Aprendiz do segundo nível da ATC (Abordagem Transpessoal da Consciência) na Unipaz - Universidade Holística Internacional. E-mail: [email protected]