O Observador, o observado e a observação

Gustavo Garcia1

 

Penso que o exercício da observação seja um tema propício a certas discussões atualmente, pois, definitivamente se trata de um assunto muito especial e delicado para nós estudantes de Psicologia que lidamos com a realidade subjetiva do ser humano e com a relatividade de suas dimensões intrapsicológicas e interpsicológicas. Não é a toa que o novo currículo, principalmente nas cadeiras de Prática Disciplinar, tem contemplado enfaticamente esta questão e exigido de nós uma postura observativo-reflexiva do contexto geral em que estamos inseridos. Todavia, diversas polêmicas têm girado em torno desse assunto na comunidade científica atual e estas acabam inevitavelmente atingindo a todos nós. Alguns professores, por exemplo, afirmam categoricamente que é possível manter a neutralidade científica em um experimento e outros até orientam os alunos no sentido de evitarem inferências em seus relatos de observação. No entanto, as novas descobertas da física (que nem são tão novas assim, porém ainda são pouco difundidas pela enorme dificuldade que pressupõe qualquer mudança de paradigma), exigem uma reformulação nestes pressuspostos a que estão atrelados nossos professores (e suas teorias), assim como muitos cientistas e profissionais de outras áreas; convém lembrarmos que é sempre mais difícil para estes efetuar tais mudanças, pois isto implicaria não só em uma transformação profissional, como também pessoal, o que é sempre difícil, já que todos eles alcançaram um determinado status em suas vidas e em suas carreiras com um tipo de conhecimento, e aceitar alguns dos novos conceitos da física moderna que abalam os alicerces da estrutura científica vigente, não só é um ato que exige muita coragem e abertura, como também uma certa dose de desapego e humildade, não muito comuns na nossa presunsosa civilização ocidental, assim sendo, é até compreensível que toda e qualquer mudança seja combatida fervorosamente e demore anos até se instalar de forma mais abrangente, o que sempre acaba acontencendo no final, basta que observemos a história da ciência.

Sendo assim, pensei em fazer uma experiência pessoal em torno dessa questão, baseado em minhas leituras sobre física quântica e filosofia oriental, decidi dirigir o foco observacional para mim mesmo, ou seja, para a própria experiência de observação. Meu intuito seria o de perceber o comportamento do próprio observador. Afinal, será que é possível mesmo, manter-se em uma posição de neutralidade quando observamos ? Para responder a esta pergunta, decidi experienciá-la, e é este relato sincero que farei a seguir, com a ressalva de quem sabe o quanto este assunto é polêmico. Antes porém, é necessário que se esclareça algumas questões, a começar pelo próprio significado da palavra observar que pode ser encontrado no dicionário como examinar miudamente, estudar, examinar atentamente, vigiar, espiar. A única forma possível de sermos imparciais e neutros em uma observação é parando de pensar, não julgando, deixando os pensamentos passarem - mas isto está mais para meditação do que para observação - talvez possamos chamar isso forçosamente de observação meditativa. Contudo, obviamente não é este o tipo de observação que estamos interessados aqui, precisamos fazer ciência, transmitir idéias, explicar e entender as coisas, e isso, devemos fazer da maneira mais coerente possível. Meu ponto de vista é de que todo observador é participante, em menor ou maior grau, mas de fato o é, e essa opinião é embasada cientificamente em teorias da fisica quântica que tratam de questões como a inseparabilidade das coisas, não-localidade e paradoxos. Corroboram com tal opinião através de seus experimentos cientistas renomados como Werner Heinsenberg e seu Princípio da Incerteza, Niels Bohr um dos maiores defensores da Interpretação de Copenhague, Alain Aspect, John Bell (Teorema de Bell que eliminou a possibilidade de existirem variáveis ocultas no Paradoxo EPR-Einstein-Podolsky-Rosen ), David Bohm com sua Teoria do Holomovimento, Erwin Schödinger que ainda em vida aceitou elementos do idealismo monista, Gregory Bateson, Karl Pribam com sua impressionante Teoria da Mente Holográfica, entre muitos outros que poderiam ser citados e que de formas diferentes contribuíram ou ainda contribuem para a formação de novos paradigmas científicos. Coube ainda ao físico Fritjof Capra fazer a aproximação das novas descobertas da física moderna que se assemelham espantosamente ao pensamento e filosofia orientais, em um paralelo que faz uma ponte histórica entre a ciência e as tradições religiosas milenares como budismo, hinduísmo, taoísmo, etc. Ligando arte e religião a ciência, conectando o hemisfério direito do cérebro ao esquerdo, a razão com o coração.

Sei que existem opiniões contrárias a esta união, e as respeito, todavia não posso compactuar com elas porque este cientificismo materialista que temos praticado nos colocou em rota de colisão com a Natureza. E o nosso futuro, de nossos filhos e netos também depende da maneira que fazemos ciência, cabe a nós a tarefa de construir uma ciência com alma, como diz Fritjof Capra: “O Buda ou a bomba ?”

Feitas essas ressalvas iniciais, partimos então para experiência propriamente dita.

Resolvi sentar em uma das mesas, na parte descoberta, do bar do centro dois de nossa universidade. Comecei então a observar os movimentos e não-movimentos que me rodeavam, olhava as pessoas passando, os objetos parados, o verde das árvores e plantas, o colorido das flores, o azul do céu, o brilho do sol, o branco das nuvens, enfim a natureza em contraste com as edificações, algo bem pecualiar da nossa Unisinos. Esta “dança” de eventos que aconteciam ao meu redor suscitaram em mim a vontade de compreender melhor aquilo que estava ocorrendo, intrigado por minhas leituras e reflexões a respeito deste tema, eu simplesmente me despreocupei com fato de que deveria isolar algo no meu campo visual, e assim tentei “mergulhar em observações” e apreender o âmago da própria natureza daquilo que estava fazendo naquele exato momento.

Logo me veio a mente questionamentos a respeito do caráter da observação, a situação em que o “eu” aqui observa o mundo “lá fora”, onde o eu “subjetivo” dentro de mim olha para o mundo externo “objetivo” fora de mim, não pude deixar de intrigar-me com isso já que de antemão sabia muito bem que “a realidade primordial não é como aparenta ser”.

As perguntas que me assolavam eram as seguintes: será que eu estava realmente separado das coisas observadas ou percebidas através de meus orgãos de sentido? Será possível ser neutro em uma observação ?

Bem, durante minha observação tive de me defrontar com a idéia de que, na verdade, eu não só via aquelas cenas diante de mim, como também, eu era idêntico a todas elas - as pessoas passando, o sol, as nuvens, o bar, as mesas, as plantas - eu era elas e elas eram eu. Não havia como não admitir isso para mim, pois sempre que eu procurava uma entidade separada, eu simplesmente não a encontrava, embora isso possa parecer confuso ou no mínimo curioso, pelo fato de tendermos a nos “sentir” separados, era inegável para mim que na “realidade” nunca estamos, e isto não era algo que eu devia sentir, mas era a ínica coisa que eu podia sentir, pois toda a vez que eu procurava por aquele que estava sentindo apenas encontrava outro sentimento. Eu não podia sentir o sentidor que estava fazendo sentimento, porque ele não existia. A sensação de ser um sentidor que tem um sentimento “é ela própria” outro sentimento.

“Há apenas a experiência !” como afirma categoricamente Allan Watts: “não existe algo ou alguém experimentando a experiência ! Não sentimos sentimentos, nem pensamos pensamentos, ou sentimos sensações. Assim como não ouvimos a audição, nem vemos a visão, nem cheiramos o olfato”.

Ken Wilber, também conhecido como o “Cérebro”, complementa: “ninguém jamais encontra um ‘eu’ separado de uma experiência presente, ou uma experiência presente separada de um ‘eu’ - o que quer apenas dizer que os dois são a mesma coisa”.

A separação entre a pessoa que vivencia e o mundo das vivências não existe, não é real, é ilusória, e conseqüentemente não pode ser encontrada. Isto pode parecer estranho, mas não é mais estranho ainda que eu me defina como o observador que observa as coisas observadas ? Ou o ouvinte que ouve os sons ouvidos ? Afinal de contas, existem pensamentos que pensam a si próprios?

O problema desta questão - e utilizarei o exemplo do observar - reside no fato de utilizar-mos três palavras - observador, observação e o que é observado para designar uma coisa única - a experiência de ver. Senão vejamos, pode existir observador sem que haja um objeto observado ? Ou então,pode existir objeto observado sem a presença de um observador? A resposta óbvia é não, e toda vez que eu tentar achar um deles separado do outro, com certeza não conseguirei e isto ocorre por que eles fazem parte de um único processo indivisível; separado convencionalmente apenas por limites e palavras - estas últimas, por sinal, estruturam o nosso pensamento obrigando-nos a pensar tudo em termos de causa e efeito, sujeito e predicado. A linguagem limita o nosso pensar, pois ignora os relacionamentos, desse modo erguendo barreiras. Palavras, símbolos, sinais, pensamentos e idéias são apenas mapas da realidade, não a própria realidade, porque “o mapa não é o território” como afirma o semanticista Alfred Korzybski.

A convenção de limites (subdivididos em metalimites, metametalimites e assim por diante...) também tornou nossa vida fragmentada e se fizermos o exercício de imaginar como seriam as coisas se não existissem os nomes, classificações e convenções (criadas por necessidade) com certeza teríamos muita dificuldade. O que seria o Universo percebido, senão um contínuo fluxo e refluxo de energia, acontecimentos interdependentes, silenciosos ou sonoros, um todo se relacionando de forma caótica ou ordenada, alternando dissonância e ressonância.

Vale lembrar que fui obrigado a falar em termos de opostos para explicar como imaginei este Universo, e é neste sentido que os limites se fizeram necessários, desde os primórdios dos tempos - a experiência os exige. O físico quântico indiano Amit Goswami lembra uma célebre passagem bíblica: “Adão e Eva viviam uma vida encantada na completeza do Jardim do Éden. Após comerem da fruta do conhecimento, são expulsos daquele local de encantamento. O significado do mito é claro: o preço da experiência do mundo é a perda do encanto e da inteireza.”

Assim, Adão pode ser considerado como nosso primeiro cartógrafo, criador de limites, e temos a necessidade de criá-los, pois “a separação é uma ilusão útil”, contudo é inexorável que se saiba que todo novo limite criado pode gerar um conflito de opostos quando consideramos o limite real; assim a solução para este problema se dá quando atingimos o âmago da questão: nossos limites são ilusórios.

Os limites são criados por nós, até mesmos os físicos foram obrigados a concordar atônitos com isto, ao investigarem a realidade em nível quântico. Alguns embaraçosamente tiveram de admitir que os místicos tinham razão ao afirmar que na verdade: “Todos Somos Um.” Assim ao criarmos tais limites, dividimos o Todo em polaridades, dicotomizamos a nossa realidade e o pior de tudo - costumamos atribuir um valor maior a apenas a uma das polaridades, o que ocasiona uma guerra de opostos e nos faz esquecer que um pólo não existe sem o outro: são duas faces de uma mesma moeda. Senão vejamos, existiria o bem senão existisse o mal, o alto se não existisse o baixo ou o fino senão existisse o grosso? Assim, sem perceber dividimos artificialmente a nossa percepção em compartimentos tais como sujeito versus objeto, vida versus morte, razão versus instinto, com resultados desastrosos que nos fragmentam e nos impedem de crescer, não em termos tecnológicos, mas como seres humanos.

Na palavra de Roberto Crema vice-reitor da Unipaz - Universidade Holística Internacional, enfatizo esta questão: “O Ser Humano será a maior descoberta do século XXI. E, se isso não acontecer, será que haverá século XXI para o ser humano ?

E finalizo meu relato com a contribuição daquele que sempre esteve a frente de seu tempo no campo da Psicologia, e que hoje, felizmente para nós, começa a se melhor compreendido. Com a palavra final, C.G. Jung: “Não é a perfeição o que se exige de você, mas sim a ‘totalidade’.”


Citações sobre a Consciência de Unidade:

“Se o que foi dito é verdadeiro, a realidade é o que Nicolau de Cusa chamou ‘coincidentia oppositorum’. O pensamento discursivo sempre representa apenas um aspecto da realidade extrema, chamada Deus na terminologia de Cusa; ele jamais consegue esgotar sua infinita multiplicidade. Logo a realidade extrema é a união de opostos.” (Ludwing von Bertalanffy)

“Eles Lhe disseram: Podemos nós, por ser crianças, entrar no Reino? Jesus lhes disse: Quando fizerdes de dois, um, e quando fizerdes do interior o exterior, e do exterior o interior, e do acima o abaixo, e quando tornardes o macho e a fêmea um só, então entrareis no Reino.” (Evangelho de São Tomé)

“A falsa imaginação ensina que as coisas como a luz e a sombra, o comprido e o curto, o branco e o preto são diferentes e devem ser discriminadas; mas elas não são independentes entre si; são apenas aspectos diferentes da mesma coisa, são termos de relação, não de realidade. As condições da existência não são de caráter mutuamente exclusivos; em essência, as coisa não são duas mas uma.” (Lankavatara Sutra)

“As duas teorias básicas da física moderna apresentam, portanto, todas as características principais da visão de mundo oriental. A teoria quântica aboliu a noção de objetos fundamentalmente separados, introduziu o conceito de participante em substituição ao de observador, e passou a ver o universo como uma teia interconectada de relações cujas partes só podem ser definidas através de suas conexões com o todo.” (Fritjof Capra)

“Assim, aqueles que dizem que gostariam de ter o certo sem o seu correlato, o errado, ou um bom governo sem o seu correlato, a anarquia, não compreendem os grandes princípios do universo, nem a natureza de toda a criação. Também se poderia falar da existência do Céu sem a existência da Terra, ou do princípio negativo sem o positivo, o que é claramente impossível. No entanto, as pessoas continuam a discutir isso sem parar; tais pessoas devem ser tolas ou tratantes.” (Chuang Tzu)

 

Bibliografia

GOSWAMI, Amit. O Universo Autoconsciente - como a consciência cria o mundo material. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 1998. 357p.
CAPRA, Fritjof . O Ponto de Mutação. São Paulo: Editora Cultrix, 1982. 447p.
WILBER, Ken. A Consciência Sem Fronteiras. São Paulo: Editora Cultrix, 1979. 204p.
FERGUSON, Marilyn. A Conspiração Aquariana. Rio de janeiro: Editora Record, 1980. 411p.

 

Notas

1 - Graduando em psicologia pela UNISINOS. Aprendiz do segundo nível da ATC (Abordagem Transpessoal da Consciência) na Unipaz - Universidade Holística Internacional. E-mail: [email protected]


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