Novas Possibilidades Para a Psicologia do Esporte 1
Sonia Pinto de Oliveira2, Christianne Mariani Lucas dos Santos e Vitor Martins Regis3
"Querem nos convencer
de que estamos mergulhados numa espécie de fatalidade. Para sair disso,
parece-me importante mostrar que, simetricamente à onipotência
aparente do CMI4, há toda uma
série de possíveis vias de acesso a transformações
em todos os níveis."
(Guattari e Rolnik, 1986: 49).
O objetivo principal deste ensaio é produzir novos agenciamentos compartilhando
a produção de novas possibilidades. Se incomodar você um
pouco, o ponto é nosso!
Partimos de algumas leituras - dentre elas, a Análise Institucional -
que constituem um conjunto de noções, ou ferramentas metodológicas,
capazes de instrumentalizar, a nossos olhos, a Psicologia Esportiva na realização
de análises-intervenções, principalmente em relação
ao processo que culmina com o "burnout", fenômeno recorrente
entre jovens atletas orientados para a alta performance no esporte.
Trazemos, para esta reflexão, tanto elementos ligados às psicologias
quanto nossa vivência esportiva como atletas em treinos exaustivos e em
competições estaduais e nacionais durante vários anos.
1 - Breve Histórico da
Psicologia do Esporte
A Psicologia do Esporte começou a ser desenvolvida na última década
do século passado. Os primeiros trabalhos na área eram teóricos
e visavam a esclarecer a razão porque os profissionais de Educação
Física deviam estar familiarizados com a Psicologia e com os benefícios
psicológicos que poderiam vir da prática das atividades físicas
e esportivas (BURITI, 1997).
Autores como Williams e Straub (apud
RUBIO, 2000) definem a Psicologia do Esporte como o campo de conhecimento responsável
pela identificação e compreensão de teorias e técnicas
psicológicas que, aplicadas ao esporte, têm o objetivo de maximizar
o rendimento e o desenvolvimento pessoal do atleta. Já Weinberg e Gould
(apud RUBIO, 2000) a compreendem como o estudo científico de pessoas
no contexto do esporte ou exercício. A Psicologia do Esporte e do Exercício
identifica princípios e padrões que profissionais podem utilizar
para auxiliar adultos e crianças a participarem, com maiores benefícios,
de esportes e atividades físicas.
Norman Triplett, psicólogo da Universidade de Indiana e apaixonado por ciclismo, foi quem primeiro produziu uma investigação relacionando Psicologia e Esporte. Ele, em 1895, estudou o motivo que levava os ciclistas que atuavam sozinhos a terem um rendimento inferior aos que pedalavam em duplas ou em grupos. No entanto, apesar de diversas pesquisas envolvendo Psicologia e Esporte virem também à cena pública nos anos seguintes, apenas a partir dos esforços de Griffith constitui-se a Psicologia do Esporte como disciplina acadêmica e carreira profissional (RAPOSO, 1996). Nas décadas de 20 e 30, Griffith lecionava na Universidade de Illinois e escreveu Psychology of Coaching (1926) e Psychology of Athletics (1928), dois marcos fundadores do novo campo.
Do outro lado do mundo, na União Soviética, muitos profissionais
também se ocupavam do tema. Na década de 20, Puni e Rudik foram
os pesquisadores que mais contribuíram com artigos acadêmicos.
Ainda nessa época surgiram os Institutos para Cultura Física de
Moscou e Leningrado, constituindo as bases para o desenvolvimento da Psicologia
do Esporte na União Soviética.
Em 1965 ocorreu o primeiro Congresso Mundial de Psicologia do Esporte em Roma.
Em decorrência desse esforço para a coletivização
das produções, investiu-se na criação da Sociedade
Internacional de Psicologia do Esporte (BRITO, 1990).
Após 1978, com a veiculação de uma série de periódicos
e a realização de outros congressos mundiais, a profissionalização
do psicólogo do esporte multiplicou-se juntamente com as áreas
de pesquisa e intervenção. Vivemos hoje um período de franca
expansão das investigações e práticas em Psicologia
do Esporte (BURITI, 1997). O próprio número de publicações
na área é contundente: entre 1924 e 1949 girava em torno de duzentos
e vinte trabalhos por ano; de 1969 a 1977, quinhentos e cinqüenta por ano;
atualmente, dois mil artigos por ano. Contudo, como nos mostra Rubio (2000),
em que pese quase um século de história, a Psicologia do Esporte
ainda é considerada um tema emergente no Brasil.
Na década de 50, João Carvalhaes integrou a comissão técnica
da delegação brasileira que se sagrou campeã na Copa do
Mundo de 1958. No II Congresso Internacional de Psicologia do Esporte, em Washington,
o Professor Carvalhaes apresentou o trabalho Correlação entre
o estado psicológico e o rendimento do atleta de futebol e, em 1974,
publicou o livro Psicologia no Futebol, no qual discutiu as características
específicas dessa modalidade.
Em 1962 fora a vez de Athayde Ribeiro da Silva acompanhar a Seleção
Brasileira de Futebol na Copa do Mundo, no Chile. Em conjunto com Emílio
Mira, Athayde Ribeiro da Silva escreveu o primeiro livro de Psicologia do Esporte
no Brasil, intitulado Futebol e Psicologia.
Na década de 70 aparece uma abertura maior para o trabalho de quem se
dedica à Psicologia Esportiva, antes restrito aos times de futebol. A
partir de 1976, com Mauro Lopes de Almeida a Psicologia do Esporte atinge outras
modalidades esportivas. Ele compôs a equipe que trabalhava no Centro Olímpico
de Treinamento e Pesquisa.
No intuito de favorecer o encontro entre os profissionais que produziam a Psicologia
do Esporte no Brasil, foi fundada, em 1979, a Sociedade Brasileira de Psicologia
do Esporte (SOBRAPE), seguindo os passos de instituições análogas
criadas em outros países.
Consoante Rubio (2000), a década de 90 foi chave para o desenvolvimento
da Psicologia do Esporte no Brasil. Presenciamos um aumento significativo de
profissionais atuantes na área e, conseqüentemente, a ampliação
da demanda por formação, publicação de literatura
específica em português e novos espaços de atuação.
Finalmente a Psicologia do Esporte foi incluída na grade curricular de
alguns cursos de Psicologia, primeiro como disciplina optativa, depois como
obrigatória e, finalmente, como estágio.
A Psicologia do Esporte surge, então, como uma área do conhecimento
voltada para o estudo da atividade física e do lazer. Sua maior proximidade
com a área esportiva é ressaltada pelo fato de compor o currículo
dos cursos de Educação Física, e não o de Psicologia.
Entretanto, nos últimos anos nota-se o crescente interesse de psicólogos
pela área. A Psicologia do Esporte é tida como área de
atuação emergente que traz uma demanda cada vez maior. Vários
trabalhos, com diferentes perspectivas, estão sendo realizados em distintas
partes do país. Práticas estão tomando formas e experiências
de atuação vêm sendo coletivizadas. Para além de
mero treinamento, a Psicologia está se apropriando do campo do Esporte
a fim de fomentar discussões que ponham em análise as relações
entre Psicologia do Esporte e reprodução dos ideais capitalísticos.
O italiano Feruccio Antonelli, primeiro presidente da Sociedade Internacional
de Psicologia do Esporte, via o desenvolvimento da Psicologia do Esporte, já
em 1965, como uma resposta à necessidade do mercado; ou seja, de nossa
civilização (Thomas apud RUBIO, 2000). A civilização
se resume ao mercado?
2 - Esporte e Reprodução
dos Ideais Capitalísticos
De acordo com Albuquerque (1996), atualmente, nas grandes potências esportivas
mundiais, e também no Brasil, o esporte não é mais visto
como uma simples prática de lazer. O esporte abriu seu espaço
no campo das profissões com a constante elevação da performance
no esporte de alto rendimento. Assim, a prática esportiva procurou o
auxílio da Psicologia: "Cada vez mais, não se pode ignorar,
nem desprezar as explicações do resultado dos atletas nas competições"
(ALBUQUERQUE, 1996: 2; grifos nossos).
Conforme Cruz (1989), o esporte é um dos fenômenos socioculturais
mais importantes do século XX. Por esse motivo, tem mobilizado um número
enorme de pessoas, materiais, instalações e recursos financeiros.
"Para que todos esses recursos possam ser multiplicados, é necessário
o sucesso nas competições e este está baseado na produção
do atleta. Há no esporte um momento em que toda a responsabilidade está
nas mãos de um só atleta e este tem a noção da responsabilidade
que incide sobre ele e o ato motor que irá executar dentro de alguns
segundos." (Cruz apud BECKER, 1998: 11; grifos nossos).
A partir das citações acima, podemos fazer considerações sobre alguns arranjos instituídos na interseção entre Psicologia e Esporte orientado para a alta performance na esteira do Capitalismo Mundial Integrado. O CMI, também no ambiente esportivo, produz variadas mercadorias. Além de toda a infraestrutura milionária e dos variados apetrechos necessários para a prática competitiva, estão disponíveis modelos de conduta individualizantes para desportistas, técnicos, pais e espectadores.
Assim, podemos pensar que a expectativa criada quando os psicólogos começaram
a trabalhar com atletas e técnicos era a de que aqueles dissessem alguma
verdade sobre o comportamento dos atletas, que trouxessem "explicações
dos resultados". E muito do que vemos hoje como Psicologia do Esporte confirma
a existência desse modelo produtor de verdade. "Especialistas técnico-científicos"
chegam aos clubes para "impor" algum tipo de técnica, seja
de ativação, motivação ou relaxamento. E optam constantemente
por não criar junto com atletas, espaços de circulação
da fala, de troca de experiências, evitando assim analisar os processos
instituintes de funcionamento, que não cessam de emergir e que marcam
uma tentativa de ruptura com os mecanismos utilizados pelo CMI, tais como: tutela,
individualização, culpabilização e exclusão.
Essa recorrente forma de atuação, tanto do psicólogo como dos treinadores, utilizando modelos de treinamento construídos de forma unilateral, é reflexo da divisão capitalista do trabalho, que separa, também no esporte, trabalho manual (jogar) e trabalho intelectual (planejar treinamento e estratégias de jogo), forjando técnicas de dominação.
As universidades têm sido, muitas vezes, co-responsáveis pela produção
de profissionais identificados com a lógica do capital, tornados instrumentos
dóceis para a manutenção da divisão do trabalho
que interessa ao capitalismo manter e perpetuar. Também um profundo tecnicismo
marca as práticas psicológicas, fazendo com que nos sintamos detentores
de um conhecimento apriorístico e neutro sobre o comportamento humano.
Acreditamos, em oposição ao endurecido "conhecimento verdade",
na vivência que se processa através de incontáveis formas
de experiência, em constante movimento e transformação.
Carravetta (1997) afirma que os propósitos esportivos, quando traduzidos
pela obsessiva busca de êxitos, expressa por vitórias e rendimentos,
levam, mediante um processo que se estende por diferentes fases do treinamento,
a uma escassa profundização da conscientização,
alienação, elitismo e seletividade. Todos esses fatores dão
origem a processos de segregação, discriminando todos os que não
apresentem os requisitos, físicos e técnicos, para fazer parte
das equipes competitivas e todos aqueles que não aceitam os valores proclamados
nas unidades esportivas. O treinamento esportivo, nas categorias competitivas,
apoia-se nos fatores de rendimento e se utiliza da disciplina para fomentar
conformidade.
A lógica capitalística
só demonstra interesse pela competição na medida em que,
através dela, vende condutas, corpos docilizados, imagens e produtos.
O jogo em si, o lúdico, o lazer compromissado com nada além do
prazer passa a ser considerado uma atividade para "os que não fazem
nada da vida", para "homens sem perspectiva". É a abolição
do direito à preguiça.
Vivemos numa sociedade que enfatiza os valores e as virtudes da instantaneidade, da descartabilidade, da diversificação, do planejamento e dos ganhos de curto prazo. A mídia é o principal instrumento auxiliar do capitalismo contemporâneo na produção de subjetividades que reafirmem esses valores. Assim, os atletas e suas imagens tornam-se mercadorias fugazes. Criam-se para eles sistemas de produção e comercialização que atropelam estilos de vida, relacionamentos estáveis e apego às coisas (HARVEY, 1994).
3 - Crianças e Adolescentes
no Esporte Competitivo e o "Fenômeno do burnout"
Quando o esporte é apresentado através de estímulos sutis
à criança e ela passa a tomar gosto, sentir prazer na prática
daquela (naquele momento) brincadeira, demonstrando uma apreensão sucessiva
e saudável do jogo, do ambiente de competição e das normas
intrínsecas, o jovem praticante pode desenvolver a experiência
de grupo, o autocontrole, conseguir realizar movimentos específicos,
aprender mais sobre respeito e solidariedade.
Porém, concordamos com Cotta
(apud HAHN, 1988), o esporte de alto rendimento é perigoso quando realizado
na idade infantil. Apesar de ser quase unânime a recomendação
da prática esportiva na infância, muitos entendem que pode provocar
problemas de saúde quando precocemente iniciada, em especial se voltada
para a competição.
O "burnout", ou "queima",
se caracteriza por um estado de "acinzelamento" e ocorre principalmente
entre atletas jovens que buscam (ou são levados a buscar) a alta performance
em treinamentos e competições nas variadas modalidades esportivas.
Após algum tempo de efetiva e animada participação em programas
de iniciação esportiva, muitos jovens desenvolvem um quadro de
perda da motivação, acompanhada por intensos sentimentos negativos,
cujo desenlace provoca o abandono definitivo do esporte competitivo.
O "burnout" mostra-se
mais freqüente entre os atletas de esporte individual, em que a carga de
treinamentos é muito intensa e a responsabilidade para com o resultado
apresenta um caráter eminentemente individualizante. Dentre estes, podemos
citar: tenistas, nadadores, remadores e ginastas.
Os profissionais das ciências
do movimento humano, em sua grande maioria, hoje concordam que, durante a idade
infantil, deve-se possibilitar as bases para um futuro rendimento, e jamais
buscar o rendimento imediato.
Buscando analisar as justificativas
dadas à Especialização Esportiva Precoce (EEP), Vargas
Neto (1999) chegou às seguintes conclusões: a idéia de
máximo rendimento, principalmente em determinados esportes, motiva federações,
clubes e treinadores a dirigirem o processo de treinamento precocemente ao alto
rendimento; o atual sistema esportivo encontra-se em desacordo com as particularidades
da infância, porque sendo basicamente competitivo obriga a criança
a assimilar, de forma muito acelerada, um modelo adulto. Acrescentaríamos
que a busca por vitórias (medalhas) a qualquer preço, além
de motivar ministérios de esportes, federações nacionais
e clubes a estimularem a iniciação prematura, promove certa atitude,
por parte dos pais, de exigirem dos filhos, à guisa de compensação
psicológica, êxitos e títulos esportivos outrora por eles
mesmos não conquistados. Esta atitude se alia à crença
de que o sucesso, o primeiro lugar, deve ser buscado desde cedo. "É
de pequeno que se torce o pepino" e o joelho.
Curioso é que, muitas vezes, não se leva em conta os anseios e saberes do principal ator do jogo, a criança, em todo esse processo. O artigo primeiro da Carta dos direitos da criança no esporte afirma "toda criança tem direito a praticar esporte", e o último sublinha "toda criança tem o direito a não ser um campeão". A Especialização Esportiva Precoce, prática irresponsável, pode produzir uma série de prejuízos.
Qual é o momento certo de começar a "treinar forte"?
Quem decide isso? Será que o adolescente-atleta não sabe de si?
O que a criatura psicólogo do esporte pode fazer?
Consideramos que as ferramentas da Análise Institucional podem apontar
algumas saídas interessantes para os impasses citados acima.
4 - A Análise Institucional
e Possíveis Contribuições para o Esporte
A Análise Institucional, através de situações de
intervenção e de suas ligações com os mais diferentes
movimentos sociais, produz, passo a passo, o seu corpo nocional.
Ao tentar definir instituição,
Rodrigues (1987) a afirma produção, atividade. Produção
que trans-forma relações e práticas datadas em formas gerais,
naturais e, portanto, a-históricas.
Consideramos importante, antes de
tudo, destacar algumas ferramentas-chave do pensamento institucionalista: Implicação,
Transversalidade e Analisador.
Os analistas institucionais entendem
por implicação o grau de envolvimento, presente em todos momentos,
mesmo quando estudamos determinado objeto. A análise da implicação,
de ordem política, ideológica e afetiva, vai de encontro à
neutralidade, herdada do cientificismo, que põe o pesquisador fora do
contexto da investigação, distante do objeto, esquecido da ação
do observador no (e sobre o) campo da observação. Assim, optamos
por pensar sujeito e objeto construindo-se concomitantemente.
O mais importante é analisar
as instituições com que se trabalha, em todos os níveis
possíveis, desvelar o que se passa no grupo a fim de ampliar o coeficiente
de transversalidade e escapar ao aprisionamento da análise a abordagens
meramente individualizantes. À medida em que a análise prossegue,
a multiplicidade de aspectos presentes na organização deve ser
problematizada coletivamente.
Por analisador, os analistas institucionais compreendem o elemento que, ao surgir
em cena, permite a análise das implicações num determinado
campo. É o próprio analisador que realiza a análise. As
situações falam por si, analiticamente, mais que qualquer analista,
já que este também está sendo atravessado por elas.
A Análise Institucional trabalha para desnudar a relação
do instituído (concepções tidas como verdades) com o instituinte
(novas formas de estar no mundo).
Quando imaginamos um grupo de trabalho
pelo viés institucionalista, onde a gestão é coletiva e
democrática, surgem perguntas interessantes. No caso das equipes esportivas,
o que pode mudar se a coordenação, incluindo nesta a programação
de treinamentos e as táticas de jogo, couber à toda equipe? Esta
é uma questão que nos impõe pensar na desterritorialização
das instituições "atleta" e "técnico".
Como nos afirma Guattari (1987: 17): "Num grupo de base, pode-se esperar
recuperar um mínimo de identidade coletiva, mas sem megalomania, com
um sistema de controle ao alcance da mão; assim, o desejo em questão
poderá talvez fazer valer sua palavra...". O interessante da proposta
de grupo analítico é que podemos considerá-lo uma unidade
desejante onde não há mais uma separação rígida
entre espaço público e vida privada. Ele se encontra, ao mesmo
tempo, voltado para dentro e para fora, unido pela contingência, por sua
própria finitude e seus objetivos de luta. A partir da proposição
de que todos tenham fala, pode-se problematizar, até o rechaço,
os centralismos irresponsáveis que fazem com que a única, e última,
decisão do atleta seja abandonar o esporte que ama ou obedecer às
regras que, não raro, destroem sua potência de vida e seu corpo.
Para intervir sobre o "fenômeno
do burnout", sugeriríamos propor a todos participantes da equipe
de competição (atleta, técnico, preparador físico,
psicólogo, nutricionista, médico, fisioterapeuta) que aceitem
ser "postos em causa"; ou seja, façam a análise de suas
implicações, deixem-se afetar e descobrir pela fala do outro.
Discutir as questões coletivamente tende a fundar uma nova lei no grupo.
Quiçá produza um estilo de contestação recíproca
que, ao eliminar as prerrogativas da hierarquia, permita o aparecimento de analisadores
até então silenciados. Acreditamos em formas de trabalhar que
se orientem por concepções democráticas e possibilitem
a produção de núcleos analíticos-decisórios
autônomos nos quais as singularidades tenham chance de serem afirmadas.
Neste sentido, transversalidade
é um conceito fundamental para nortear nosso trabalho de intervenção
em equipes esportivas. É a partir da análise da composição
de forças presente que podemos vislumbrar as possibilidades de reversão
das tendências totalizadoras, ou produtoras de hierarquização,
que tornam a equipe um grupo-sujeitado, aprisionado à díade fracasso-sucesso
dos esquemas empresariais.
Talvez surjam crises que ponham a existência da equipe em perigo, porém
o analisador-equipe deve desnudar as situações-problema (preferimos
situações-solução) e levar o grupo a não
mais fugir, tão facilmente, das produções que estão
sendo afirmadas, principalmente dando direitos e poderes àqueles que,
até então, eram percebidos como meros executantes de ordens de
terceiros.
Para finalizar, trazemos um exemplo. Recebemos, em abril de 2000, o telefonema
de um treinador de uma equipe infantil de voleibol dizendo que suas atletas
precisavam de acompanhamento psicológico. Segundo ele, algumas jogadoras
não estavam rendendo bem: vindas de outros estados, não estavam
"se adaptando" ao novo ritmo de vida e sentiam muitas saudades de
casa, dos familiares e amigos.
Foi inevitável naquele momento
começar a pensar em um projeto que adormecesse o sofrimento daquelas
meninas, que as docilizasse, ao invés de problematizar as possíveis
questões que se apresentassem quando conversássemos. Imaginamos
formas de "humanizar" aquele meio, colocando aparelhos de televisão,
videocassetes, videogames, organizando mais viagens... Mas nos sopraram no ouvido
um "péra aí, vamos pensar".
Como construir uma proposta de intervenção
sem conhecer, sem viver efetivamente o cotidiano daquelas atletas e da comissão
técnica, os relacionamentos no clube, no alojamento, nos treinos?
Queríamos ouvir suas histórias,
sonhos e quereres. Saber por que e como as atletas estavam ali. Depois disso,
proporíamos reuniões, com a participação de todos
os envolvidos, onde coletivamente poderíamos discutir a demanda do técnico,
trazer novos elementos, confrontar pontos de vista distintos e tentar construir
soluções conjuntas para os impasses que fossem surgindo.
A tarefa é experimentar a possibilidade de existência de um grupelho5 de competição esportiva. Será? Só indo lá para ver!6
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Notas
1 - Trabalho publicado no site Instituinte em 24 de julho de 2003.
2 - Mestre em Educação, professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo.
3
- Alunos da graduação do curso de Psicologia da Universidade Federal
do Espírito Santo. E-mail: [email protected]
4
- Capitalismo Mundial Integrado.
5
- Noção forjada por F. Guattari (1987), que define uma dimensão
de toda a experimentação social, sua singularidade, seu devir.
Devir confrontando-se com a tendência a generalizar a luta em torno de
uma representação totalizadora.
6 - A proposta de intervenção aqui relatada teve seu início em maio de 2000 e tornou-se, em outubro do mesmo ano, Projeto de Extensão Universitária/UFES intitulado "Jogando com as redes".