Uma fábula de Aprendizagem: A Lenda do Pianista do Mar - Um filme de Giuseppe Tornatore

Christian Svoboda1

 

Para aqueles que não tiveram acesso ao filme de Giuseppe Tornatore, "A Lenda do Pianista do Mar" (The Legend of 1900), cujo filme deve brevemente se encontrar disponível nas locadoras, inicio com uma sinopse que abrange importantes passagens do filme, adaptada e traduzida por mim do site oficial do filme: www.legendof1900.com

O filme nos envolve em uma inesquecível fábula sobre um menino que cresceu em um barco a vapor e nem uma única vez colocou os pés na terra. 1900 cresce durante as dezenas de jornadas através do oceano, descobrindo que ele pode fazer absolutamente qualquer coisa que ele queira contanto que seja dentro dos confins do barco que ele chama de casa. Qualquer coisa, isso é, menos ser comum.

No primeiro dia do novo século, um bebê menino é encontrado no Virginian, um barco que transporta imigrantes da Europa aos Estados Unidos. Danny Boodman, um negro trabalhador da sala de carvão, descobre o recém nascido abandonado em um caixote de limões (atenção depois ao "Lemon" no nome da criança!) na cabine da primeira classe. Conclui que é um filho de imigrantes que foi deixado na primeira classe para que alguma das pessoas que freqüentem aquele ambiente acolhessem o pequeno e dessem a este, aquilo que possivelmente os pais não poderiam tê-lo dado. Não querendo desistir da criança, Danny criou secretamente o menino no ventre do barco. Ele batizou o menino de Danny Boodman TD. Lemon 1900, mas o garoto apenas ficou conhecido como 1900. Não conhecendo nada do mundo além da sala de carvão e da sua escotilha que dava vistas ao mar, 1900 fica devastado quando seu pai adotivo é fatalmente ferido em um terrível acidente no barco. Sua identidade é revelada ao capitão, que ameaça de entregá-lo às autoridades. Mas 1900 salva a si mesmo quando ele perambula dentro da primeira classe e encontra um piano de bordo, descobrindo que ele é um menino prodígio que pode naturalmente tocar música sentimental gloriosamente. 1900 fica no barco, entretendo o mundo, 2,000 pessoas de uma vez.

Três décadas depois, um jazzista vagabundo chamado Max, que está prestes a vender sua adorada trombeta, descobre em uma empoeirada loja Inglesa de música o único disco que restou de 1900 tocando piano. Max fica assombrado pelo som, não apenas pela sua beleza, mas porque ele conheceu 1900 a muitos anos atrás. Voltando sua confiança para memórias entorpecidas, Max implora ao dono da loja para dizê-lo como ele conseguiu aquele disco impossível. O velho que cuidava da loja, conta a Max que o disco foi removido de um barco enferrujado, para imediata demolição. Isso faz Max cambalear. Ele está convencido de que 1900, que nunca desejou desembarcar, ainda permanece vivo a bordo. Lutando contra o tempo, Max corre ao porto, esperando convencer a equipe de demolição a parar de colocar dinamites. Em um último esforço para salvar a vida de 1900 e provar que ele existe, Max conta a história de que a lembrança que o trouxe ao porto veio a ser o conto de fadas de 1900, que miraculosamente alcançou fama e desapareceu da existência.

Max explica que ele conheceu 1900 pela primeira vez quando ele veio a bordo do Virginian em 1927 para tocar com a banda que se apresentava no barco. Max logo ouviu os rumores sobre um espantoso pianista com mãos que se moviam como relâmpagos, que nasceu no mar e nunca deixou seu charmes úmidos (nota: no inglês escreveu-se her watery charms, aludindo ao mar um presença feminina). Mas nada poderia prepará-lo para realmente encontrar 1900: ao mesmo tempo um gênio e um inocente, uma alma perdida e um sonhador intensivamente apaixonado.

Max conta o dia que 1900 aceitou um duelo de piano com Jelly Roll Morton, "o homem que inventou o jazz", e entrou em uma guerra de chiar. Ele conta da extraordinária habilidade de 1900 para revelar as histórias de passageiros através de sua música, e ele desdobra o conto de 1900 consumido de amor por uma linda garota da terceira classe, cuja presença inspirou seu solo de piano que foi gravado. Por fim, conta a história de que um dia 1900 tentou deixar o barco, caminhou prancha abaixo, de frente com Manhattan e a garota pela qual suspirava, apenas para ser confrontado pela assoladora expansão da cidade e voltar ao barco.

Mas agora, Max está sem tempo e a equipe da demolição faz suas preparações finais. Em um momento final de amor e amizade, Max entra no casco corroído do Virginian para tocar a gravação que mais tocou no coração de 1900 pela última vez. Seu plano funciona. A gravação atrai 1900 de seu esconderijo e Max descobre a aturdida verdade que vai manter 1900 no reino das histórias e contos de fadas para sempre.

Assim que sai do cinema, perguntei-me: Porque que 1900 não conseguiu descer da prancha e pisar em solo firme? O que o terá levado a desistir? A resposta vinha em seguida: ele não conseguiu suportar a grandeza que a visão da cidade, daquele mundo estranho e desconhecido que precisava ser descoberto, lhe proporcionava. No filme ele fala para Max que não conseguia ver o fim da cidade e pus-me a perguntar se ele tinha alguma idéia de que o mar tivesse fim. Talvez estivesse condicionado a reconhecer como mundo apenas o trajeto Europa-Eua e o barco no qual nasceu. Agora, se pergurtarmo-nos sobre como esse conto pode ser conceituado como uma "fábula da aprendizagem", devemos primeiro nos perguntar: onde está a aprendizagem? Estará no corpo? Se for no corpo, no corpo de quem? No corpo de 1900? No corpo de Virginian?

Por um lado, 1900 aprende, e se torna um exímio pianista, mas em contrapartida, não consegue aprender a se desvincular do barco e andar pelas ruas de Manhattan, ou melhor, a se desvincular de sua casa e se aventurar pelas ruas do novo conhecimento. Ele responde que não pôde ver o fim da cidade que justifica o seu comportamento de assombrar-se com a vastidão da cidade. Isso me lembra aquela outra história do menino que nunca tinha visto o mar e por isso o pai resolveu em um certo dia, levá-lo. Avistando as ondas, o menino se emociona e pede ajuda ao pai para poder enxergar toda a praia.

1900 poderia pedir ajuda para ver a extensão urbana, alguém que lhe pudesse dar uma outra "vista" para aquilo que ele enxergava. Possivelmente, a "outra vista" deveria propor o que realmente sugere: uma "outra vista" que não seja aquela já saturada e encarnada pelo sujeito como limite de aprendizagem. Pois bem é percebido que a medida que aprendemos, acomodamos e só iremos sair dessa posição quando esse esquema não mais der conta, não mais der "vista" para aquilo que nos cerca.

Dentro do barco, 1900 aprende a tocar o piano que se encontrava na primeira classe. O filme não mostra ninguém instruindo, ensinando 1900. Quando o seu pai adotivo morre, 1900 sai a perambular pelo barco, na busca, quem sabe, de alguém que pudesse propor outra vista além daquela paisagem que via pela sua escotilha. Acaba voltando ao salão onde foi encontrado, e lá se depara com o piano, um corpo a disposição para novas sensações, um corpo pelo qual ele pode mediar novos conhecimentos. Essa é a surpresa de Max, quando 1900 lhe mostra como as pessoas lhe parecem ser através da música pela qual vai compondo. Para algumas, uma música mais lenta, para outras mais rápida, sempre variando a modulação da melodia como que se estivesse tocando a alma da própria pessoa. O filme não mostra 1900 tendo aulas de piano, e sua qualidade de prodígio é suposta pela cena em que chega então à primeira classe, após a morte de Danny, e está simplesmente tocando piano enquanto todos ficam a lhe mirar.

No microcosmo de sua vida subjetiva a bordo do Virginian, talvez possamos dizer que mantinha uma postura mais solitária do que tendente aos relacionamentos interpessoais. Aprender sozinho, eis um desafio? Podemos pensar em Melanie Klein, sobre a questão de que um instinto epistemofílico se baseia no desejo de conhecer (primordialmente) o corpo do outro. A qual outro deveria se reportar 1900? Ao público que lhe assistia, presenças sempre passageiras de um lado ao outro do mundo? Aos próprios trabalhadores do navio, trabalhadores do carvão e das entranhas do barco? Há uma cena bem interessante, quando os italianos pedem que 1900 toque uma "tarantella". Um dos imigrantes dá o ritmo e de pronto 1900 já sai tocando e fazendo todos cantar e dançar. A imagem é muito bonita, é uma grande festa. Mas quando um clama que chegaram na América, o cenário se transforma. Um tumulto de vozes substitui aquele de cordas, e em poucos minutos, todos aqueles que se encontravam naquele recinto haviam saído, deixando ao pianista, talvez, a saudade ou, quem sabe lá, o que se esqueceram.

Eis o que ele encontra, corpos "passageiros". Mesmo quando encontra uma bela garota pela qual se enamora, não é pela força da vontade de ir até o endereço que ela havia lhe dado que ele deixa o barco para enfim por os pés em terra firme. Talvez tenha ele previsto que "Não há pior inimigo do conhecimento do que terra firme".

Covarde por não experimentar o mundo que se abria a seus olhos ou astuto por evitar que a terra firme desabasse com os seus conhecimentos adquiridos ao longo de anos de viagens? Ou será que há uma outra alternativa? Sei que pode parecer muito deselegante e não científico, mas fatalmente conclui o texto com perguntas.

 

Notas

1 - Graduando em psicologia pela UNISINOS. E-mail: [email protected]


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