Acolhendo os portadores de sofrimento psíquico na atenção básica
Welcoming the psychic distress carriers at the basic attention
José Ribamar Fernandes Saraiva Júnior, Karin Fiori Hagemann e Natali Pimentel Minoia.1
RESUMO
O acolhimento para portadores de sofrimento psíquico, na Unidade Básica
de Saúde (UBS) 5 do Centro de Saúde-Escola Murialdo (CSEM), surgiu
a partir da discussão sobre a criação de um grupo de saúde
mental. Acreditava-se que seria melhor obter a participação da
comunidade, através de uma escuta ampliada, para, deste modo, saber qual
a demanda dos pacientes em saúde mental e qual seria o fluxo que essa
demanda necessitaria dentro da rede da atenção básica.
Sendo assim, o objetivo principal deste trabalho tornou-se acolher pacientes
que necessitam de apoio emocional e possibilitar, através da responsabilização
compartilhada, maior resolutividade de problemas de saúde mental pela
equipe local. Este trabalho tem como principais resultados a criação
de um espaço na UBS para discussão e troca multiprofissional de
saberes para atender a saúde mental, a maior acessibilidade dos portadores
de sofrimento psíquico aos serviços de saúde, sendo, deste
modo, um espaço de escuta para uma demanda reprimida e a reorganização
do trabalho na UBS para atender a saúde mental. Acredita-se que, com
a criação deste serviço, a UBS está funcionando
como a porta de entrada para os problemas de saúde mental, na medida
em que acolhe os pacientes, escutando-os e criando estratégias para atendê-los
ou encaminhá-los para a rede de atenção disponível.
Enfim, a equipe de saúde está trabalhando para auxiliar a população
de acordo com sua demanda de atendimento, buscando maior acessibilidade e integralidade
da atenção, estando sempre disponível para repensar sua
atuação no âmbito da saúde coletiva.
PALAVRAS-CHAVE
Acolhimento. Atenção básica à saúde. Saúde
mental.
ABSTRACT
The embracement of psychic distress carriers, at the Unidade Básica de
Saúde - UBS 5 (Basic Health Unit - BHU), Centro de Saúde-Escola
Murialdo (CSEM) , began trough a discussion on the creation of a mental health
group. It was believed that it would be better to get the participation of the
community, by having a widened hearing to know about the needs of the mental
health patients and the flow this demand would need within the basic attention
system. Thus, the main goal of this work became to welcome patients who need
emotional support and make possible, through shared responsibilization, more
resolutivity as to the mental health problems of the local team. The main results
of this work are: the creation of an area within the UBS for the discussion
and exchange of multiprofessional knowledge to treat mental health and a greater
accessibility of pshychic distress carriers to the health service, being a place
which allows hearing the restrained demand and the reorganization of work at
the UBS to take care of mental health. It's also believed that with the creation
of this service, UBS is going to work as the doorway for mental health problems
as it welcomes the patients, listening to them, and creating strategies to welcome
them or refer them to the service available. At last, the health team is working
to help population according to its demand, aiming at bettering the accessibility
and attention integrality, being always available to rethink its work within
the collective health.
KEY WORDS
User embracement. Basic health attention. Mental health.
INTRODUÇÃO
Este artigo refere-se à
reflexão sobre uma prática denominada Acolhimento de Apoio Emocional
(AAE) executada no primeiro ano da residência integrada em saúde:
atenção básica em saúde coletiva, pelos residentes
de psicologia e medicina, na Unidade Básica de Saúde (UBS) V do
Centro de Saúde-Escola Murialdo (CSEM).
A idéia inicial de oferecer o acolhimento de apoio emocional à
comunidade, na UBS V do CSEM, surgiu com a discussão sobre a criação
de um grupo de saúde mental. Com a ampliação do debate
concluiu-se que seria melhor obter a participação da comunidade,
através de uma escuta ampliada, para saber qual a demanda dos pacientes
em saúde mental e qual o fluxo que essa demanda necessitaria dentro da
rede da atenção primária. Sendo assim, o objetivo principal
deste trabalho tornou-se acolher pacientes que necessitam de apoio emocional
e possibilitar, através da responsabilização compartilhada,
maior resolutividade de problemas de saúde mental pela equipe local.
As possibilidades de encaminhamento para os pacientes do acolhimento seriam,
além do grupo de saúde mental, atendimento em psicoterapia individual,
acompanhamento com os outros profissionais da equipe (médico, dentista,
nutricionista, enfermeira e assistente social) ou o encaminhamento para a rede
de atenção disponível em saúde mental.
IMPLANTANDO O ACOLHIMENTO NA UBS
Ao longo do processo de implantação
do AAE e reflexão sobre seus resultados foi-se modificando a forma de
desenvolvê-lo. Desse modo o AAE já passou por três fases,
sendo elas:
Fase I: O acolhimento era realizado pela residente de psicologia e pelo residente
de medicina das 9 às 11hs nas terças-feiras, por ordem de chegada,
sendo os pacientes referenciados a este serviço por sua livre demanda
(através dos cartazes ou outras informações) ou encaminhados
pelos demais profissionais da unidade.
Após, os casos eram supervisionados pelos preceptores da psicologia e
psiquiatria onde eram definidos os encaminhamentos para os pacientes.
Fase II: O acolhimento passou a ser realizado nas quintas-feiras devido a disponibilidade
de salas (duas) durante todo o turno da tarde, pelo fato da residente de psicologia
ter maior disponibilidade de tempo e também pela presença de uma
residente de psiquiatria.
Fase III: O atendimento é realizado em dois consultórios da UBS-V
nas quintas-feiras a partir das 13:30hs pela residente de psicologia e a partir
das 15hs pelo residente de medicina. Devido a grande procura de pacientes pelo
acolhimento de apoio emocional, limitou-se o número de atendimentos.
Desse modo, estes passaram a ser realizados com hora marcada.
O objetivo principal da equipe era atender uma demanda de pacientes de saúde
mental que acreditava-se que estava reprimida. Mesmo assim não conseguia-se,
pois também pretendia-se, além de acolher novos pacientes, rever
alguns para decidir o encaminhamento dado.
Decidiu-se fazer um levantamento para ver quais os motivos de encaminhamentos
feitos para o AAE, quais os profissionais responsáveis por fazê-los
e quais os encaminhamentos dados a partir das entrevistas. Chegou-se a conclusão
que o acolhimento estava se tornando um depositário de encaminhamentos
para todos os pacientes de saúde mental da UBS e estas questões
deveriam ser discutidas com as pessoas responsáveis por encaminhá-los.
Dessa forma foi se constituindo uma troca entre os profissionais que, a partir
de então, foram aprendendo a trabalhar com pacientes de saúde
mental. O acolhimento passou então a ser um espaço de escuta especializada
em saúde mental, ou seja, todos os profissionais devem acolher os pacientes
e somente quando julguem necessária a avaliação da psiquiatra
ou psicologia encaminham para o AAE.
AVALIANDO O TRABALHO
Com a discussão sobre a proposta
do AAE foi possível chegar a algumas conclusões a respeito deste
processo de trabalho. A primeira é a de que o acolhimento deve ser integral
e a criação de um acolhimento de apoio emocional, específico
para saúde mental, gera uma fragmentação dos sujeitos,
que tem "um acolhimento mente e um acolhimento corpo". No momento
pretende-se trabalhar estas questões com a equipe da UBS pensando que
a tarefa de acolher, seja que tipo de paciente for, é de toda equipe
e o espaço do AAE é um espaço de escuta especializada dos
pacientes de saúde mental. Chegou-se a conclusão de que o AAE
é o espaço para uma avaliação mais completa do paciente
para pensar junto com este em um encaminhamento dentro ou fora da equipe que
atenda suas reais necessidades. Então não pode-se mais chamar
de acolhimento pois este sim, diferentemente do espaço de escuta especializada,
deve ser realizado por toda equipe. Como escreve Silveira (2003, p. 50) "[...]a
noção de acolhimento é tomada como uma praxes "intercessora"
nos processos relacionais travados entre profissional de saúde e usuário
e como atributo das práticas clínicas em saúde, realizadas
por qualquer membro da equipe."
E acredita-se que o AAE, da forma como foi criado, tornou-se um dispositivo
para que os profissionais da equipe começassem a trabalhar com seus pacientes
de saúde mental. A partir deste serviço criou-se um espaço
de discussão para a saúde mental dentro da equipe na medida em
que os profissionais eram chamados para discutir o encaminhamento dos pacientes,
que muitas vezes voltavam para quem os encaminhou.
Como foi salientado acima, na terceira e atual fase do acolhimento atende-se
os pacientes somente após serem acolhidos por algum profissional da equipe,
o que antes não acontecia. E começou-se a atender com hora marcada
limitando os atendimentos. Desse modo chegou-se a conclusão de que o
nome acolhimento, novamente, não é apropriado pois este não
deve ter dia, hora nem profissional escolhido para ser realizado, é tarefa
de toda equipe, o tempo todo.
Como atualmente pensa-se no AAE como um espaço de escuta especializada
da saúde mental na UBS e sabe-se o quanto este serviço possibilitou
a discussão sobre este tema na equipe pretende-se fazer uma reunião
semanal dos casos encaminhados para o AAE (não encontrou-se um nome que
substitua ainda) para possibilitar a avaliação de toda equipe
a respeito dos casos bem como criar um espaço de troca multiprofissional
de saberes para atender a saúde mental.
Salientou-se acima o quanto o AAE possibilitou a discussão sobre o tema
da atenção à saúde mental na UBS. Além disto
possibilitou-se o acesso de pacientes com demanda de saúde mental aos
serviços de saúde, pacientes estes que estavam sem atendimento
adequado até o momento. Foi, deste modo, um espaço de escuta para
uma demanda reprimida. E a partir de então o trabalho na UBS precisou
ser reorganizado para atender esta demanda. Criou-se estratégias para
atender a população. Dentre estas estratégias encontra-se
o grupo de saúde mental e pensa-se na criação de um grupo
de convivência com o objetivo de inserção social. Acredita-se
que com a criação deste serviço a UBS começou a
funcionar como a porta de entrada para os problemas de saúde mental.
Isto vem de acordo com o pensamento de Silveira (2003, p. 53) que diz:
"A atual proposta de reorganização da atenção básica, principalmente a partir da NOAS-SUS 01/02, a qual indica uma aplicação e complexificação das ações desenvolvidas na rede básica de saúde - expressa na designação Atenção Básica Ampliada - , parece favorecer uma nova composição das estratégias nela desenvolvidas e reafirma seu posicionamento estratégico enquanto porta-de-entrada do sistema público de saúde. Isto exige uma reestruturação dos processos de trabalho em saúde para que, de fato, as ações da atenção básica possam primar por um redirecionamento do modelo assistencial."
E escreve em relação a seu trabalho sobre saúde mental
e atenção básica:
"As ações de saúde mental operacionalizadas na rede básica podem assumir características mais complexas, no sentido de englobar novos modos de agir e intervir junto a esta clientela que busca cuidados psiquiátricos nas unidades de saúde ou expressa sua demanda à equipe do PSF. É premente uma reestruturação das unidades, das dinâmicas de recepção e de atendimento às pessoas em grave sofrimento psíquico na atenção básica em saúde. O acolhimento é apontado neste estudo como um possível operador desta transformação". (Silveira, 2003, p. 53)
Atualmente a equipe está discutindo a melhor forma de acolher os pacientes
de saúde mental e pensando estratégias para auxiliá-los
em suas necessidades, buscando sempre caminhos que levem a maior acessibilidade
e integralidade da atenção.
CONCLUSÃO
O Movimento da Reforma Psiquiátrica
evidencia a necessidade de transformação da assistência
em saúde mental, buscando a substituição do modelo asilar
representado pelo hospital psiquiátrico pelo modelo da atenção
psicossocial, que preconiza a atenção à saúde mental
em serviços extra-hospitalares como as UBSs, Centros de Atenção
Psicossocial (CAPS), Ambulatórios de Saúde Mental e etc. Percebeu-se
que o AAE possibilitou a reflexão sobre a Reforma Psiquiátrica
dentro da equipe pois uma vez que os profissionais estão aprendendo a
lidar com o sofrimento psíquico começam a perceber que este pode
sim ser atendido na atenção básica e por qualquer profissional
de saúde sem necessariamente fazer uso de medicação, internação
e exclusão social.
O AAE possibilitou a criação de novos modos de agir e intervir
dentro da equipe que passou a pensar em dispositivos para atender a demanda
de saúde mental. Deste modo, esta prática impulsionou o começo
de um processo de co-responsabilização na equipe por outras dimensões
do adoecer e do sofrimento humano, fazendo com que reflita sobre a produção
de saúde e subjetividade.
A Conferência Nacional de Saúde Mental (2003), que teve como eixo
temático a reorientação do modelo assistencial, procurou
trazer à tona o debate sobre a construção de um modelo
assistencial capaz de proporcionar maior acessibilidade aos usuários
com demanda de saúde mental. A Conferência enfatizou que a inclusão
do cuidado em saúde mental na atenção básica pode
ser um caminho para superar o grave problema da acessibilidade em saúde
mental. Neste sentido acredita-se que o AAE possibilitou maior acessibilidade
aos usuários de saúde mental através da "abertura"
da equipe para acolher esta demanda e da criação do grupo de saúde
mental.
Esta prática propiciou um ambiente favorável ao surgimento das
dificuldades da equipe em trabalhar as questões ligadas a atenção
aos usuários de saúde mental. Sabe-se que o que se propõe
é um processo lento e nem sempre linear de desconstrução
de crenças em relação à saúde mental e a
forma de pensar o cuidado a esta demanda. Sendo assim, esta proposta procura
estar atenta aos movimentos que desperta e manter-se em contínua avaliação.
REFERENCIA
SILVEIRA, Denise Pinto. Saúde pública e saúde mental: atravessamentos
em análise. In: ______. Sofrimento psíquico e serviços
de saúde: uma cartografia da produção do cuidado em saúde
mental na atenção básica de saúde. 2003. 184 f.
Dissertação (Mestrado em Saúde Pública)- Fundação
Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2003. cap. 2
CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE MENTAL, 3., 2003. Brasília. Relatório final. Brasília, DF: Centro de Documentação do Ministério da Saúde, 2003.
Notas
1 - Autores:
José Ribamar Fernandes Saraiva Júnior - Médico - residente de Medicina de Família e Comunidade do Centro de Saúde-Escola Murialdo (CSEM)
Karin Fiori Hagemann - Psicóloga - preceptora do Centro de Saúde-Escola Murialdo (CSEM)
Natali Pimentel Minoia - Psicóloga - residente de saúde coletiva/atenção básica do Centro de Saúde-Escola Murialdo (CSEM)