O ser humano que se submete à terapia durante uma fase de doença deve ter atenção redobrada pelo terapeuta. Essas pessoas, em vários estágios de acompanhamento, poderão ter momentos de agitação positiva, quando determinado procedimento médico sai bem, mas facilmente podem entrar em depressão, caso o quadro clínico se agrave.
O neurologista Oliver Sacks coloca em um de seus livros que não é a pessoa que tem a doença, mas a doença tem a pessoa. Sim, a doença monopoliza a pessoa tornando sua vida diferente da que costumeiramente vinha levando. Isso faz com que, além da doença, ela tenha que remanejar totalmente seus hábitos.
Deverá tomar mais cuidado com a alimentação, controlar pressão, febre, dores estranhas, adaptar-se às medicações observando regiamente seus horários; fazer visitas freqüentes ao médico para verificação de seu quadro clínico. Poderão ser solicitados mais exames de controle, tais como: ecografia, tomografia, ressonância magnética, radiografia, exames de sangue, colesterol, triglicérides, ácido úrico, eletrocardiograma de esforço ou em repouso, glicemia de jejum, densiometria óssea e tudo mais dentro das circunstâncias – para alguns, uma verdadeira revolução existencial.
Poderá ter que passar por sessões de quimioterapia, hemodiálise, transfusões de sangue, internações, etc. Todo este processo de dominação da doença fragiliza, a pessoa fica exposta e luta na tentativa de qualificar sua vida de maneira a amenizar o sofrimento imposto.
Uma das coisas que me chama atenção é o desconforto que alguns partilhantes expressam ao serem rotulados nos hospitais de “pacientes terminais”. Considero o enquadramento desnecessário dentro desta circunstância já tão dolorosa. Este termo empregado na medicina me parece significar que a pessoa está ali pacientemente esperando um fim, quem sabe o trem da morte, o ônibus, o avião ou o navio para o além.
Pela minha experiência nestes casos, o que presencio das pessoas é justamente o contrário: vejo pessoas muitas vezes consideradas “desenganadas”, lutando, colaborando, com esperança, fé e dignidade, acreditando vencer a doença que limita sua existência.
A doença quando toma a pessoa pode torná-la mais frágil emocionalmente, mas não menos atenta - seus sentidos percebem tudo. Há um exercício de adaptação à nova realidade e devemos respeitar o tempo subjetivo de cada um. Podem ocorrer variações de raciocínio em função da medicação e do próprio estado clínico.
Pensem, não é fácil para a pessoa largar sua casa, seus afazeres, e de pronto passar a conviver em um quarto de hospital. Esse período causa tensão e expectativa, tanto na pessoa, como em seus familiares. Há toda uma mudança sensorial. Num quarto estranho, o espaço que ocupa é a cama, passará a ver quase tudo por este ângulo. Os sons oriundos dos aparelhos de monitoramento serão constantes e diferenciados.
Estará às voltas com bolsas rubras de sangue em contraste com a transparência do soro, sem falar nas seringas coloridas pelas mais variadas medicações. Tomará comprimidos redondos, compridos, chatos, com risquinho no meio, sem falar em pomadas contra os hematomas, cremes para escaras, anti-séptico bucal, fraldas, toalhas, comadres, escarradeiras, tomadas de campainhas que acendem e apagam conforme a urgência, abocates, cateteres.
Esta pessoa poderá precisar ser sondada, caso não consiga urinar, e em outros casos, pode passar por lavagem para facilitar a excreção, oxigênio para facilitar a respiração, entre outros procedimentos. Junte tudo isso e veja que fragilidade, que mudança de cenário.
É preciso muito tato e competência para acompanhar pessoas com enfermidades. Lidamos com a vida que ali pulsa agora de maneira diferenciada e o nosso proceder deverá acompanhar esta nova situação. O saber ouvir sem interromper e o toque físico ficam em evidência, se tornando ferramentas fundamentais. No decorrer do processo haverá momentos de revolta, desespero e momentos de lucidez, gratidão e retribuição.
A convivência e o trabalho com essas pessoas abrange também o contato com familiares, amigos de suas relações, onde podemos colher informações sobre seu histórico de vida, que nos darão subsídios de maior abrangência e servirão como recurso para o trabalho terapêutico.
Pessoas em estágio mais avançado de doença não sentirão mais um pleno bem-estar físico, terão dificuldades de locomoção, para se alimentar, de articulação de palavras. É preciso aproveitar os momento de melhora e trabalhar, na medida do possível, em questões que sejam de seu interesse, colhido em seu histórico, que a envolvam e possam amenizar o sofrimento, trazer um pouco de conforto e, quem sabe, alegria.
As pessoas que estão na fila de transplantes também têm suas peculiaridades, uma esperança maior. Buscam numa batalha diária manter-se bem física e emocionalmente. O dia seguinte para estas pessoas é uma incógnita, mas lutam bravamente. Passam horas em aparelhos que fazem a função do órgão debilitado para que seu organismo como um todo possa se manter estável.
Se estes seres humanos estão mais próximos da morte por não terem uma saúde perfeita, não vejo necessidade alguma de serem lembrados disso a todo instante, sendo rotulados de “pacientes terminais”. Ninguém mais do que eles mesmos sabem, têm consciência de seu estado e das conseqüências que a falta de saúde impõe a si, a seus familiares e a todo o seu mundo existencial. A doença tem essas pessoas, é preciso tratá-las com todo carinho, delicadeza, atenção e respeito, ingredientes fundamentais para um bom processo terapêutico.
As emoções englobam os estados afetivos, falam dos sentimentos dos homens – e aqui me refiro aos seres humanos, sem distinção de gênero – e de como se estruturam internamente frente às circunstâncias que a vida impõe.
Este tópico se salienta em consultório, quando é parte determinante da pessoa que chega, pois fica bastante evidente, principalmente quando aparece em forma de esteticidade bruta - um choro, lágrimas que brotam em silêncio, ou de maneira compulsiva, aos soluços, misturadas com esboços de risos, há uma variedade de características, de acordo com a singularidade de cada um. Existe o choro que se deixa ver e o choro que não se vê, mas que fica lá dentro, velado.
Mas quero me deter numa visão mais ampla das emoções humanas de um modo geral, trazer para o cotidiano, aproveitando esta bagagem que a função de terapeuta me proporciona.
Logo que nascemos, o choro é sinal de vida. Se o recém-nascido de imediato não chora, há o “tapinha” intencional, para que o choro e as demais funções se efetivem.
Nos primeiros anos de vida, o choro se caracteriza por ser um sinal de que algo precisa ser suprido, seja matar a fome, espantar o frio, anunciar uma cólica, receber uma massagem, ou fazer uma “manha” para ganhar um colinho gostoso.
Na medida em que amadurecemos, nos emocionamos com maior ou menor intensidade diante das mais variadas situações, que podem ir das boas gargalhadas ao choro no cantinho.
Para Nietzsche, o homem foi compelido a inventar o riso para disfarçar a dor que corrói o espírito e o faz sofrer. Em Zaratustra, ele fala da emoção do riso em relação à verdade: “E que seja tida por nós como falsa toda a verdade que não acolheu nenhuma gargalhada”.
No campo das artes, Van Gogh, em suas cartas ao irmão Théo, fala de seus sentimentos: “Ainda que freqüentemente eu esteja na miséria, há contudo em mim uma harmonia e uma música calma e pura. Na mais pobre casinha, no mais sórdido cantinho, vejo quadros e desenhos. E meu espírito vai nesta direção por um impulso irresistível”. A miséria maior sofrida por Van Gogh foi não ser apreciado e valorizado em sua época, levando-o em um momento de depressão e tristeza profunda a decepar a sua própria orelha.
Quantas vezes pela vida, por falta de compreensão de nossas idéias e objetivos, não nos decepamos ou somos decepados aos poucos. O sentir-se ignorado, colocado à margem, traz em sua companhia muito de frustração, tristeza como uma faca afiada que rasga as entranhas dos sentimentos.
Poderia discorrer neste artigo com as mais variadas citações de inúmeros autores dos famosos da literatura mundial, aos mais populares, pois muita gente já se debruçou sobre o tema emoções. São por elas que no decorrer da história da humanidade muito se escreveu, filmou, dançou, encenou, pintou, cantou, falou, se viveu e se morreu por algumas delas.
As emoções são estas sensações íntimas, que brotam do corpo e da alma, onde depositamos nossos desejos, alegrias, aflições, temores e prazeres – são parte integrante de nossa caminhada de vida. E sendo um tópico determinante na forma de estruturação de uma pessoa, esta travará lutas com a própria razão, na tentativa de tradução que estas sensações emotivas trazem. Neste caso, lembre: “O coração tem razões que a própria razão desconhece”.
Algumas pessoas administram bem seus estados afetivos, usam de recursos próprios de ação (submodos), significando-os de forma mais amena. Outras podem sentir perturbações quando algum fenômeno emotivo se impõe, não sabendo como lidar com ele, o que pode levar às mais variadas formas de somatizações.
Sim, o corpo fala de suas emoções, e por vezes mais do que as palavras por ele emitida. A soma das sensações corporais forma um complexo dinâmico de expressões emocionais. Como bem salienta Merleau-Ponty, o corpo é um eu natural, sujeito da percepção, pois com ele transitamos no mundo. Partilhantes que sofrem com desestruturações ligadas a emoções poderão ter dificuldades para conseguir se alimentar, podem ter náuseas e baixa de peso, e, por vezes, ocorre o inverso: passam a se alimentar com excesso e ganham peso. Poderá haver hiperatividade mesclada com estados de apatia; longos períodos de sono ou insônia e, sem dúvida, muitas lágrimas. Todos estes fatores devem ser levados em conta, pois tratamos o partilhante como um todo integrado, plástico.
Os homens choram também por suas decepções, por seu tempo perdido, por seus passos em falso, por suas conquistas, pela falta de perspectiva e riem igualmente em seus cultos e ritos. Choram a perda de um ente querido, choram por ganhar um campeonato, choram de raiva, de dor, choram de alegria diante de uma paisagem, de um poema, choram suas relações desfeitas, choram pela volta de um filho, choram pela cura de uma doença, choram por estarem vivos, pois, neste caso, as emoções como um todo sustentam sua existência.
Momentos tristes e momentos alegres são períodos, estados emocionais, que a vida impõe. Uma citação de Borges já lembra: “Não existe felicidade; há isto sim, inúmeros momentos felizes”. Quem sabe por isso choram os homens?
Mas o importante é administrarmos estas súbitas surpresas, esses momentos que fazem parte da vida, estes sentimentos de alegria, tristeza, prazer e dor que são efêmeros, passageiros e que nos fazem refletir sobre a própria existência e medir o grau de importância que cada um destes sentimentos suscita.
Respeitar “o como” estas emoções são trazidas ao consultório é a tônica de todo o processo clínico. Há os que dirão que “homem não chora” (agora sim, uma referência ao gênero masculino) e de repente temos um homem/menino diante de nós a chorar copiosamente. Acolha, deixe que flua este engasgo que pode ter tornado a vida dessa pessoa um inferno, por nunca ter se permitido chorar. Acompanhe a transformação e a sensação de alívio em seu rosto, depois de ter alcançado mais um lenço de papel a este ser que agora parece estar em êxtase e livre para seguir em frente sua vida, despido daquele fardo que comprimia o peito.
Observe os seus gestos, como já se reclina melhor na poltrona do consultório e como seus movimentos corporais se tornam mais lânguidos, deixando de lado aquela rigidez dos primeiros encontros. Sinta que ao final da consulta já passa um calor diferente na despedida, olhe no fundo de seus olhos e veja um novo brilho a refletir a vida.
Em consultório, tenho observado que as emoções possuem um destaque dentro da estrutura humana. Quando este tópico se encontra problematizado, em choque com outros, causa ao partilhante um desconforto muito grande, quase insuportável. Quando atentamos para esta pessoa, temos a impressão de “terra arrasada”, tudo parece estar fora do lugar, e na realidade está. Tudo está mexido por dentro e por fora, o que se deixa ver não nos dá outra impressão. Esta pessoa está procurando desesperadamente colocar ou dar uma nova ordenação aos seus sentimentos e pensamentos.
A cada consulta, começa a se descortinar todo um conjunto de circunstâncias sofríveis geradoras dos conflitos existenciais. Levando-se em conta o tempo subjetivo, as características próprias, com o fortalecimento do diálogo, via interseção se observa aos poucos um processo de estabilização onde os “nós” começam a ser desfeitos.
O bem-estar que se verifica neste sujeito a cada encontro te dá a certeza de que o processo de terapia está atingindo os objetivos a que se propõe. Aguarde e verás as novas transformações que ocorrerão a este sujeito que se deixou ver e que a teu lado se permitiu desabafar, compartilhando contigo este instante único de sua existência.
Porto Alegre, setembro de 2003
Sindrome da Solidão Aguda Severa e as visões existenciais de Kierkegaard
Nestes tempos de guerra e epidemia que enchem os noticiários e os jornais, a maioria das pessoas não se importa com o que está acontecendo no seu próprio quintal. Falo sobre o que tomei a liberdade de nomear como “Sindrome da Solidão Aguda Severa” (ou SSAS) e, creiam, é uma epidemia devastadora.
Não só eu, como outros colegas filósofos clínicos, temos trocado idéias sobre este tema que é freqüente nos grupos de estudos de casos clínicos e em workshops – a solidão.
A “SSAS”, chega de mansinho, se instala e começa a causar danos. Como naquela música do Alceu Valença: “A solidão é fera, solidão devora, é amiga das horas, prima-irmã do tempo e faz nosso relógios caminharem lentos, causando um descompasso no meu coração, solidão”.
Há quem opte pela solidão, como refúgio para reflexão e descanso, mas não é desta situação que estou falando.
O que tenho visto e escutado em consultório, no atendimento à domicílio ou em hospitais, diz dessa solidão de pessoas que se sentem completamente sós, e são levadas a um estado de angústia que causa mal-estar.
Kierkegaard já dizia que “a angústia e o nada marcham continuamente juntos”. Concordo com ele, pois esta sensação de vazio, esse nada, objeto da angústia, por vezes invade a narrativa de muitos partilhantes, trazendo em seu bojo o tema da solidão. São olhares vagos, uma sombra de desespero no ar, como uma vertigem em uma busca de libertação.
O que vejo diante de mim são mulheres que abafaram suas buscas para criar filhos, auxiliar maridos e, quando se dão conta, nem de respeito são dignas. Estão com quase cinqüenta anos, isoladas, atrás do tempo perdido. E como “nenhuma perda pode passar desapercebida”, segundo Kierkegaard, devemos estar atentos.
São adolescentes completamente deslocados existencialmente, mal compreendidos e amados, por terem feito opções profissionais, sexuais, existenciais que não agradam às famílias e são postos à margem dela, muitas vezes se dirigindo ao mundo das drogas como única alternativa. “A juventude vive na ilusão, esperando dela e da vida o extraordinário”, ainda Kierkegaard.
São homens confusos em seus papéis existenciais, que reproduzem os mesmos modelos a que foram submetidos em sua criação. Sentem desconforto, não se dão conta, vão se afastando das criaturas que lhe são queridas, por conta de pré-juízos torpes. Muitas vezes, trazem seus filhos pela mão, como se neles estivesse o centro do problema. “O homem desesperado não faz portanto mais do que construir castelos no ar e bater-se sempre contra moinhos de vento”, apontou Kierkegaard.
São velhos, asilados, confinados, ou depositados no quartinho dos fundos ou em instituições onde ficam a relembrar com saudade, os momentos onde havia companhia, em bailes, natais, aniversários, etc. “(...) nos velhos a ilusão está na sua maneira de recordar a mocidade. Uma velha mergulha, tanto como uma rapariga, nas ilusões mais fantasiosas ao evocar a sua juventude, como era feliz, linda, etc ...”, dizia novamente o filósofo.
São os deficientes visuais e físicos que sofrem na pele o desleixo e o descaso. Ou são tratados com comiseração ou como motivo de riso por sua maneira diferenciada de estar no mundo. “O eu é necessidade, porque é ele próprio, é possível, porque deve realizar-se”, anunciava Kierkegaard, e, muitas vezes, estes diferentes “eus” são impedidos de realizar-se.
São pessoas, homens, mulheres, crianças e jovens de idade variada em um leito hospitalar sem receber uma só visita para acalentar o frio da falta de saúde. Paira aí o silêncio e o cheiro adocicado da morte que espreita, dança, embalada pelos sons dos mais variados aparelhos.
A solidão assola toda esta gente de um modo brutal, são olhos tristes, respiração entrecortada, um andar pesado, um senho fechado, um pulso a bater fraco, um cansaço, uma falta de perspectiva.
As relações humanas e suas interseções em geral, carecem de qualidade e isso é justificado, ao meu ver, pela falta de respeito à singularidade de cada um. São os “malditos” padrões pré-estabelecidos, insensatos, vulgares, incoerentes que menosprezam Estruturas de Pensamento (EPs) de raro valor.
É preciso que haja uma visão, um olhar amplo, um saber conduzir, estar aberto ao novo, rever conceitos e práticas. Admitir erros e acertos é ser humano, é ser terapeuta. Somos uma opção viva diante do outro, com toda riqueza e complexidade que a vida abarca.
É sentar e conversar, parar e ouvir, ficar ao lado, é tocar, perceber e entender o que vem e o que vai lá no íntimo de cada um, é se ver e se mostrar, é um exercício existencial.
Vejam que enorme responsabilidade nós - Filósofos Clínicos - temos, o de ser talvez o último farol, um porto, um gesto, uma palavra, um par. Já sabemos como abordar (Exames Categoriais, EP, Submodos), acompanhando este sujeito único que se dá a conhecer. E além disso, temos o dever de acolher estas pessoas que nos chegam, na tentativa de que a “SSAS” não se espalhe como fera, destruindo quintais, não possa ceifar mais vidas e aniquile por conta disso todo o círculo de relações das quais faz parte. Afinal, “comunicar com o outro é fazê-lo existir é também fazer-se existir a si próprio”, na visão de Kierkegaarg.
* Sören Aabye Kierkegaard (1813-1855) – Filósofo dinamarquês, entre suas obras, salientam-se: Sobre o conceito de ironia, Discursos Edificantes, Um fragmento de vida, Temor e Tremor, A repetição, O conceito de angústia, Etapas no caminho da vida e O desespero humano (Doença até a morte). Dessa última foram retiradas as citações deste artigo.
Porto Alegre, junho de 2003
Pintura de Darios Regoyos
A tela do partilhante
Já ouvi muitas vezes a seguinte colocação: “em clínica, a pessoa chega e despeja todo o seu lixo sobre o terapeuta”.
Ficava quieta, sem concordar e fui elaborando o seguinte: considero esta declaração um tanto arriscada e suspeita para
quem deseja ser realmente um terapeuta.
Se tu considera alguém que está na tua frente, de antemão, disposto a despejar seus dejetos consultório adentro,
há aqui, na minha visão, um prejuízo enorme que pode inviabilizar a clínica. O lixo quase sempre é malcheiroso,
está colocado naquele canto onde não fica muito à vista, é armazenado em tonéis, dividido em “seco” e “orgânico”,
em sacos de plástico das mais variadas cores e tamanhos. Uma pessoa em consultório não é isso.
Se na nossa prática o diálogo é uma das premissas, sinceramente não vejo duas pessoas trocando idéias e experiências
de vida como “coisas” inertes, cheias de restos. Talvez esta analogia se refira ao fato de que nas fases de coleta da historicidade e exames categoriais, mais ouvimos do que falamos. E há quem possa falar, mas lixo pode servir de adubo ou ser reciclado, e pode também deixar resíduos. Mas a pessoa é vida, não resíduo. Então, em hipótese alguma considero o partilhante que me chega como alguém que vem despejar lixo, ali na minha frente. Não.
É preciso, para ser terapeuta, um senso de humanidade acima dos padrões convencionais.
Muitas vezes, isso não se aprende, ou se tem, ou não. Esse livre trânsito entre mim e meu partilhante é andar muitas vezes
sobre um papel de arroz; outras vezes, subir montanhas; estar disposto a um mergulho profundo; compartilhar de extensa
e breves caminhadas.
O que as pessoas trazem é um quadro da pintura de suas vidas. Alguns impressionistas, outros expressionistas, barrocos,
desenhos de cera “infantil”, um risco fraco de grafite. Mas é preciso ter olhos para ver e, com certeza, essas nuances de
cores, lágrimas, risos, sussurros é antes, mais uma pincelada nesta grande tela da vida de cada um, do que lixo.
Se ela chegou ao terapeuta, está à procura de, em busca de, ou, simplesmente, quer estar para mostrar e falar de sua
“obra de arte” que foi o seu existir. A princípio, ela vai te mostrar só a moldura de seu quadro, ainda meio sem jeito.
Se eu a fitar torcendo o nariz, imaginando “que belo lixo vou começar a remexer”, não verei a tela, e que bela oportunidade
posso estar perdendo. Devemos lembrar que essa pessoa com sua tela sente, intui, percebe, principalmente estando fragilmente exposta, pois o verdadeiros artistas da vida assim andam e criam.
Esqueça o “lixo”, pense em ver a “tela”, as tintas, o que a pessoa traz e como traz.
Com uma boa interseção, com a amizade fortalecida, poderás ter a surpresa de que te estendam o pincel
para que tu possas deixar tua pequena marca, nesta criação que é a vida. Sentirás então o cheiro das tintas,
a amplitude dos sentimentos. Te tornarás “imortal” no existir deste outro, que agora é um pouco de ti também.
Ser filósofo clínico é criar e recriar, é ser e ter, é dar e receber, é viver o espaço terapêutico em toda a sua abrangência.
Por isso, não reduza o que seu partilhante te traz a lixo.
Porto Alegre, abril de 2003
A Arte de Compartilhar
A Arte de Compartilhar
Na Grécia Antiga, em suas reuniões ao ar livre, os “Filósofos de Jardim”, dialogavam de modo coloquial e familiar, estabelecendo uma relação de amizade. Epícuro buscava e valorizava a capacidade de integrar e promover o bem estar entre as pessoas. Através do ato de filosofar estava a maneira de se libertar das ansiedades e frustrações do mundo e buscar a felicidade.
Eis aqui a filosofia sendo utilizada na prática, via diálogo, via interseção, num compartilhar. O Filósofo Clínico é o profissional disposto à arte do diálogo. Ao ouvirmos, franqueamos nossa mente por inteiro. O estar “plugado” é um envolver-se integralmente, frente à outra figura humana, o partilhante. Esse nos chega com suas experiências pessoais, visão de mundo,
afetos, buscas, traumas e circunstâncias pessoais, porque alguma coisa em seu caminho ou existência não flui de maneira tranqüila. Essa relação precisa se dar de uma maneira qualitativa, atenta, por aí começamos a decifrar a Estrutura de Pensamento (EP) que se dá a conhecer.
O olhar dentro dos olhos, o escutar, a lágrima, o riso, a respiração, o tom da voz, os gestos, esse universo individual se expõe. Há aqui toda uma estrutura interna em movimento: são 10 bilhões de neurônios que recebem, integram e transmitem informações; a malha intelectiva traz vivências passadas tornadas contemporâneas à medida que são narradas.
Ao nos comunicarmos, uma corrente elétrica aciona 100 trilhões de conexões sinápticas entre esses neurônios. Uma sucessão de representações vêm à tona pelo pensamento. Com olhar atento, já podemos observar possíveis choques estruturais.
O objetivo da Filosofia Clínica é levar o partilhante a ter consciência de seu próprio funcionamento interno para que ele, dentro de seu universo pessoal, busque sua melhora existencial.
Isso se dará via submodos (formas de ação), os que o partilhante já usa informalmente e os que se adequam à sua EP. Essa caminhada junto ao outro, na riqueza do compartilhar, gradual, da existência, somente se dá através da interseção.
Como em toda arte, há muito de sentimento e intuição. O conhecimento é só o primeiro passo desta vivência que floresce na sabedoria e no respeito mútuo.
Porto Alegre, março de 2001