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Sobre a loucura


Acesse o arquivo em pdf do artigo publicado na Revista Filosofia Ciência & Vida, em março de 2010:
Falha na edição: lamentavelmente, o título foi produzido com erro de grafia. Uma locura!!!!!
Sobre a loucura

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Labirintos existenciais



Existem pessoas que se assemelham a prédios, casas existenciais. Com o desenrolar do processo de terapia, fortalecida a interseção, somos convidados a observar com atenção as mais variadas arquiteturas.

Algumas construções positivistas, quando pintadas, “modernizadas”, parecem ser “da hora”, com o que há de melhor no requinte dos materiais existentes no mercado. Cores do momento, adereços e detalhes de decoração dão um “frescor” às paredes, escondendo infiltrações formadas pelo tempo. Espessas camadas de massa corrida são maquiagem, escondem as frestas, os desníveis deixados ao longo de paredes de dois metros e meio de altura.

Quando passamos das fachadas e adentramos pelos corredores, nos confrontamos com antigos mosaicos imperiais. As salas ambientadas com peças clean, com tonalidades pastéis são vistas na maioria das revistas disponíveis no mercado sobre reformas de interiores.

Esse conjunto de objetos destaca ainda mais a antiga arca no canto da sala onde incide um raio de sol. No seu interior é possível observar taças, cristais, xícaras inglesas lascadas e uma foto amarelada da família em um porta-retrato dourado.

Se apreciarmos os demais cômodos, alguns utensílios, quadros, perfumes, tapetes, guarda-chuvas, livros, furador de papel, caneta tinteiro, esculturas em pedra-sabão chamam a atenção pelo contraste de gerações.

Há também um baú colocado ao pé da estante de cedro no corredor lateral á esquerda que instiga meus olhos. Se com o tempo te alcançarem a chave abra com cuidado, lá para tua surpresa ou decepção estará a essência de toda uma existência, ou a ossada de um cadáver guardada com carinho.

A primeira impressão ou as primeiras devem constar como peças de um grande quebra-cabeça necessário para entenderes o jogo, as jogadas, as circunstâncias.

Será preciso para entender esta existência labiríntica ir além das fachadas, dos corredores, abrir portas, observar janelas e anexos.

Podem existir quartos escuros no final da área de serviço que por enquanto não te foi permitido adentrar. Isso não quer em absoluto dizer que você não se deu conta de seu existir.

O tempo dirá então se os fantasmas escondidos te serão apresentados algum dia. É esperar para saber.

Cuidado! Não se engane com fachadas modernas, elas podem esconder mistérios inimagináveis. Tristezas que os dias não consumiram apesar dos risos constantes em uma boca onde o lábio superior treme quando entra em difusos pensares. Isso é apenas um relato de um dos modos de ser:

“Porquanto a predicação afirma às vezes o que uma coisa é, ás vezes a sua qualidade, às vezes a sua quantidade, às vezes a sua relação, às vezes aquilo que faz ou o que sofre e às vezes o lugar onde está ou o tempo, segue-se que tudo isso são modos de ser”. (Aristóteles – Metafísica)

Coloque sobre todo este cenário sua atenção, aja debruce seu espírito sobre estas peças trazidas aos poucos com doses fortes de: afabilidade, amabilidade, anteparo, cautela, circunspecção, cortesia, cuidado, delicadeza, educação, gentileza, graciosidade, obséquio, ponderação, precaução, prudência e tento.

Até que te conte sobre as três tentativas de suicídio. Sua queda, confusão que a fez andar em círculos de terror existencial. Que te confesse sobre as medicações, drogas e mais drogas que nublavam horizontes sem achar saída.

Que te diga que passou por outras terapias com “profissionais” que usaram técnicas contraproducentes de aconselhamento, ditando procedimentos de vida, que não auxiliaram e sim fizeram aumentar o sofrimento.

Dos agendamentos vis e incoerentes sobre como deveria agir com suas emoções, suas relações, tudo metido goela abaixo. Que só fizeram agravar suas somatizações, como falta de ar, uma asma que ressurgiu rebentando pulmões, além de complicações renais, desmaios e dores de cabeça dilacerantes.

Deixa que te diga do fado, da perda da avó que tinha como mãe, pois a mãe mesmo nunca fez nada além de apontar o dedo e sugar todas as suas energias e apoiar as surras homéricas do pai. Escuta quando fala dos irmãos que perdeu pela fome, pela droga, pela AIDS.

Perceba o quanto foi difícil perder a identidade, quando o namorado, um canalha, a deixou grávida e desempregada. Quando foi procurar trabalho e descobriu que existia alguém com o mesmo nome usando sua identidade e era uma procurada pela polícia. E de como teve que correr, chorar, juntar papéis, percorrer delegacias, repartições publicas com os filhos nos braços para dizer e comprovar que ela não era aquela bandida.

De como teve que deixar seu apartamento para ir morar em uma vila distante pois era só o que conseguiu com os amigos que ficaram.

Quando isso acontece, além do instrumental da clínica, há de se ter uma humanidade autêntica, essa será a hora de mostrares a tua performance. Este é o instante do “sim”, afirmação de nossa condição de seres inter-agentes.

Se chegarmos a este ponto e seguirmos adiante, nossas potências efetivadas de terapeutas utilizarão os saberes da filosofia na direção de uma vida nova, que passa e se configurar na tua frente sem nada esconder. O partilhante está nu, aberto à renovação, ações criativas vão se delinear, tocante, envolvente, pulsante nesta duração intensa entre febres e alegrias. Nenhuma nudez merece será castigada.

Porto Alegre, fevereiro de 2010

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Simbologia e intuição no processo terapêutico


Sem marcar hora uma brisa leve me tocou a alma. Movimento intenso, beleza, luz durável de um instante, pérolas de imagens, delírios sutis, algo potente. Era a intuição novamente me sacudindo pelos ombros.


Nas práticas de consultório tem me chamado a atenção o aparecimento de certos sinais simbólicos, conjunções de imagens, que podem se dar tanto em sonhos dos partilhantes como em suas vivências cotidianas. Esses acontecimentos são fenômenos que saltam, têm vida e grande significação, são muito importantes quando analisados dentro das circunstâncias de cada caso e com profundidade.

Quando falo em intuição, ela está relacionada à visão de Spinoza e Bergson. Segundo esses filósofos a intuição proporciona o conhecimento do mundo como um todo concreto inter-relacionado.

Trago dois exemplos de como isso pode ocorrer na prática.

Uma partilhante está tendo um envolvimento com um rapaz, se encontram esporadicamente. “Ficante” é o termo que utilizam atualmente. Só que, nesse “ficar”, há uma desconfiança da parte dela em função dos desaparecimentos súbitos de seu par, e a impossibilidade de contato por telefone, ou seja, ele se torna para ela uma incógnita. Entre escapadelas, sumiços que duram semanas ou meses, acontecem novos encontros, mas as dúvidas continuam no ar.

Dentro desse processo clínico este é apenas um dos pontos que chamam a atenção, há uma dissonância, digamos que um comportamento que faz pensar, principalmente no que tange às ações do rapaz. Há mais incertezas do que firmeza neste relacionamento, algo está camuflado. Isso incomoda a partilhante, ela sente que algo não “fecha”, as coisas não batem. Já havia pensado várias vezes, em colocar um ponto final na relação, devido ao mal-estar subjetivo que essa relação vinha causando.

Mas como a simbologia e a intuição entram nesta história? Num desses encontros esporádicos, quando ele resolve aparecer, se deslocaram para a casa de campo dele. Entre conversas e bate-papos que não dizem muito de sua intimidade, sempre meio-escondida, ocorre um fenômeno. O aparecimento de uma enorme aranha e uma revoada de louva-deuses do nada que invade a casa.

Como terapeuta observando todo o contexto, este fato me chama atenção, os canais intuitivos vibram. Para confirmar minhas suspeitas, faço uma pesquisa para verificar a simbologia destes seres da natureza.

Começando pelo louva-deus: símbolo da rebeldia, infidelidade, perito em camuflagem. Fica parado nas plantas, esperando sua presa como que rezando. Ficam imóveis por longos períodos para não serem, comidos por outros animais. O jeitinho de devoto é só fachada, por trás da aparência há um animal feroz. Patas dianteiras perfeitas para golpear, a tentativa de escapar desta armadilha é inútil.

Algumas fêmeas de louva-deus cortam a cabeça do macho no momento do acasalamento. Se estiverem zangadas devoram o parceiro em seguida. Os grandes olhos do louva-deus o permitem enxergar em todas as direções num ângulo de 180 graus. Desde que nascem caçam, se estiverem com muita fome são capazes de comer seus próprios filhotes que se encontrem ao redor.

Agora as aranhas: aranhas precisam trocar de pele periodicamente, durante o período de crescimento produzem seda, só algumas constroem teias para capturar animais de que se alimentam. Outras usam teias como casas para proteger seus ovos. Todas possuem veneno, mas, são pouco perigosas para os humanos. Alguns tipos de peçonha servem apenas para atordoar a vítima facilitando a tarefa de matá-la. O veneno em muitas simbologias ilustra o “mal” que palavras ferinas ou mentirosas podem causar.

Essa pesquisa - coincidência ou não – pode ser o retrato da relação estabelecida entre os dois em que tracei somente alguns detalhes. É como uma metáfora da natureza, rica em vice-conceitos simbólicos, retrata, se não literalmente, mas com um grau de aproximação muito grande a realidade vivida entre os dois.

Não foi surpresa que depois de termos analisado essa simbologia, novos fatos se configuraram mesclando características entre aranhas e louva-deus. O mistério sobre a vida dele foi desfeito de forma surpreendente. Confirmando que: “O jeitinho de devoto é só fachada, por trás da aparência há um animal feroz”. Essa análise conjunta foi o desfecho de um esquema resolutivo que já apontava para o fim da relação. Intuição, mais simbologia e a confirmação que o mundo é um todo concreto inter-relacionado como afirmavam Bergson e Spinoza.

Outro exemplo para ilustrar agora sobre sonhos, destacando novamente a simbologia, agora relacionada ao conto “A bela e a fera”. Lembrando de que esta partilhante a quem me refiro dá importância e grande significação aos sonhos, dados intuitivos, fabulações, literatura e artes em geral.

Essa partilhante tinha sonhos recorrentes de dois rapazes parecendo príncipes em luta pelo amor e a atenção dela que aparecia em um castelo medieval. Essas imagens vieram com uma riqueza de detalhes vívidos e com grande potencial de significado. Em seu histórico a busca é forte envolvendo axiologia, pré-juízos e emoções na busca de um parceiro “ideal” que mais se aproxime de seus anseios. Mas como chegamos á fábula da “A bela e a fera”?

Depois de vários meses de clínica, desfeito um relacionamento anterior, a partilhante revê ideais e conceitos, cria novos pensamento e ações. Esta partilhante após um tempo em que seguimos trabalhando, encontra a pessoa que considera o “amor da sua vida”. Ganha de presente uma leitura de seu mapa astral, e pelas configurações lá expostas aparece novamente à alusão “A bela e a fera”, entre as conjunções astrais.

Para mim já é um sinal de alerta, que me chega via intuição, duas vezes a “bela e a fera”! Fui pesquisar mais detalhes sobre esta fábula. Encontrei entre as leituras que fiz no livro “Repressão sexual”, de Marilena Chauí, as seguintes passagens sobre esta fábula: “A expressão, muito usada antigamente, “esperar pelo príncipe encantado” ou pela “princesa encantada” não queria dizer apenas a espera por alguém muito bom e belo, mas também a necessidade de aguardar os que estão enfeitiçados porque ainda não chegou a hora do desencantamento”.

Essa passagem reproduz quase que literalmente o momento em que a partilhante se encontrava em seu devir, a transição, o amadurecimento, o novo e “ideal” relacionamento. Possível saída da casa dos pais, afirmação profissional e o reconhecimento de sua própria mutação dentro do novo relacionamento amoroso.

Mais detalhes sobre esse conto segundo Chauí: Bela “retorna ao castelo da Fera, dedica-se a ela e, ao fazê-lo, quebra o encanto, surgindo o belo príncipe com quem viverá. O conto se desenvolve como processo de amadurecimento da heroína e de constituição da imagem masculina através de seus desejos”.

Mostrei o livro e as minhas anotações à partilhante, traçamos considerações, pontuamos fatos, evidenciamos vivências, elaboramos trajetos e a terapia foi belíssima. É bom lembrar que esse procedimento foi parte de uma série de planejamentos clínicos. A partilhante está de alta, concluiu seu curso, abriu novas perspectivas de trabalho e tem um relacionamento muito belo com o seu namorado com quem convive atualmente.

Estas práticas que utilizo, respeitam os dados intuitivos que me chegam, poderia ser uma forma de Informação dirigida simbólica, aproveitando a riqueza das simbologias, explorando significados.

Não custa salientar que não se usa essa prática por achá-la simplesmente interessante. É mais um desdobramento clínico que deve obrigatoriamente estar dentro do contexto do processo, e muito bem elaborado, dentro de um planejamento clínico. Utilizar esses recursos nos processos terapêuticos foi extremamente produtivo, satisfatório e, porque não dizer, educativo e culturalmente prazeroso. Agregamos novos valores, enriquecendo cada um dos encontros, fortalecendo interseções.

Recolher o que o partilhante trás, seus significados íntimos, cuidar destes símbolos, ouvir com atenção, ponderar, estudar, buscar mais informações. Estar atento às nossas intuições e se dedicar ao aperfeiçoamento deste espaço clínico tão rico e vasto de possibilidades também faz parte do nosso trabalho. A intuição, como lembra Bérgson, é uma visão que vive a realidade da duração. “Não se adquire facilmente a intuição; tão habituados estamos ao uso da inteligência que se torna necessária uma viragem íntima violenta, contrária a nossas inclinações naturais, para podermos exercitar a intuição, e só em momentos favoráveis e fugazes somos capazes de o fazer.” (BERGSON, 1968).

Viver o espaço clínico, com amor, paixão vivenciando esta duração fugaz proporciona uma qualificação inigualável. O exercício terapêutico potencializa quem já possui de forma latente o dado intuitivo. Com o tempo, ele se torna um instrumento fascinante dentro do processo que vibra de forma alegre na busca da compreensão da alma humana. Mas Spinoza sabiamente alerta em uma de suas citações famosas: “Tenho evitado cuidadosamente rir-me dos atos humanos, ou desprezá-los; o que tenho feito é tratar de compreendê-los”. Acredito também no dito popular: tudo vale à pena se a alma não é pequena. Intuição e simbologia são acessos mais diretos à vida íntima de cada partilhante, corpo e alma numa mesma vibração.


Referências
BERGSON, Henri. A filosofia contemporânea ocidental. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Herder, 1968.
____________. Matéria e memória. Trad. Paulo Neves. São Paulo. Martins Fontes, 1999.
CHAUÍ, Marilena. Repressão sexual. São Paulo. Editora Brasiliense, 1984.
RIZK, Hadi. Compreender Spinoza. Trad. Jaime A. Clasen. Petrópolis. Editora Vozes, 2006.
SPINOZA, Benedictus. Ética. Trad. Tomaz Tadeu. Autêntica Editora. Belo Horizonte, 2007.
*imagem: http://byfiles.storage.live.com/y1ppbXoirGc8WjglbA8pbUSl0V7qV7sYjhEXmdgIw9jSqD_DeJ9Ivirxk4fU-0ajvJ_(acesso 03/07/09).

Porto Alegre, agosto de 2009
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Efeitos recíprocos em clínica



Na Pérsia, o mei (vinho) foi o tema central da poesia e literatura durante milhares de anos.

O encontro em terapia é feito de instantes únicos. É “dar de cara” com quem te procura, uma descoberta, uma experiência; somos unidades móveis velejando entre vidas. A relação terapeuta e partilhante é uma prática educativa, de dentro para fora - um fazer emergir interiores humanos.

Não é professar, é pesquisar com sapientia, como diz Bhartes.

“Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar. Vem talvez agora a idade de uma outra experiência, a de desaprender... Essa experiência tem, creio eu, um nome ilustre e fora de moda, que ousaria tomar aqui sem complexo, na própria encruzilhada de sua etimologia: Sapientia: nenhum poder, um pouco de sabedoria e um máximo de sabor possível”. (Barthes, 1989)

Saberes diferentes, com sabores distintos, variações infinitas, oriundos do histórico pessoal relatado pelo partilhante enquanto fatos vividos. Passagens transitórias no tempo, onde não há nada absoluto e sim transformações e mudanças.

Não utilizamos aparelhos para lobotomia, muito menos tentamos enfiar coisas na cabeça das pessoas ditando leis. Não há um paciente, um receptor passivo, mas um partilhar dos meandros de vitalidades em todas as suas abrangências, mobilidade orgânica.

Essa interseção não contempla acídia ou tédio: é festiva, alegre, uma satisfação necessária de duas existencialidades. Ascensão e queda para lugares “desconhecidos”, endereços mutantes no frenesi de saberes. Há lágrimas, suores, suspense, aclaração de idéias e sentimentos num fazer-se transformador de inúmeras possibilidades. As experiências vividas são a própria sustentação do encontro sem aprisionamento. O que ocorre é uma leitura de uma escrita de vida, uma literatura própria exposta em palavras:

...as palavras não são mais concebidas ilusoriamente como simples instrumentos, são lançadas como projeções, explosões, vibrações, maquinarias, sabores: a escritura faz do saber uma festa. (...) a escritura se encontra em toda parte onde as palavras têm sabor (saber e sabor têm, em latim, a mesma etimologia). (...) É esse gosto das palavras que faz o saber profundo, fecundo. (Barthes, 1989)

Esses canais de acessos passam a ser construídos ou desconstruídos no apetite da pesquisa, o ser humano é um corpo de vida pulsante, muitas vezes um poema, outras um romance, pequenas metáforas, um haikai, rascunhos. Corpo e alma num transbordar de energia, forças vibracionais em ação. Pontos de ligação, “entres”, instantes de criação, imagens em movimento, produção existencial, intimidade profunda.

Como salienta muito bem Lou Andreas-Salomé na obra “Carta aberta a Freud” sobre o espetáculo único do encontro terapêutico que reside no fato que é somente no interior desta situação que se oferece a nossa pesquisa materiais que, tocando tão de perto a intimidade e a vida, escapariam inclusive ao amigo mais íntimo; e é, entretanto, a nós, que lhe conferimos uma atenção puramente científica, que se descobre a profundidade da nossa natureza humana, como se ela se abrisse ao conhecimento de si mesma. (ANDREA-SALOMÉ, 2001)

O acompanhamento semanal é rico em metamorfoses, usar de sabedoria sem poder é fundamental. Não possuímos o mando, somos seres trocantes, aprendemos, desaprendemos, acariciamos, desejamos, permitimos, relemos, num deslumbramento pela vida.

As idéias surgem, água viva escoa dos velhos telhados, céu aberto. Poeiras, cimento, cal fazem nova massa telúrica. Entradas e saídas, explosão, contimento sepultado, novas guias, mapas, trilhas. Justaposição, ângulos novos experimentados. Lugares, cheiros revisitados, semeando fragâncias. Entranhas muitas vezes em chamas cozinham sabores, iguarias, novos temperos que provamos muitas vezes em silêncio, ou em um riso solto. Gelo quebrado, estalos gestando sonhos, abrindo caminhos.

Pé no húmus, chão descoberto com nova constituição, raízes, galhos de um cipreste, asas em check-in. Os primeiros vôos rasantes ampliam aos poucos os novos horizontes com passos firmes e ligeiros. Um novo filosofar, parir novos pensamentos, escrita de novos versos, verbos de vida nova que também pode primar pelo ócio, uma retirada necessária do mundo.

Sangue nas faces rubras, forças, a essência encontrada no frasco quebrado, que espargiu em vida pelo espaço. Uma sinfonia, Carmen de Bizet no fundo de pupilas que transbordam em lágrimas não mais represadas, um viver novo.

O trabalho terapêutico é nutrido pela arte, do que sei e de tudo que ainda posso aprender, pelas percepções, forças que nos impelem a agir, vestidas de emoções descobertas. Sem imposições ditatoriais, o prazer está no encontro de curtir humanidades: sopro de novos ventos. Vagar, descobrindo o além eu. Disposição para o cosmos, viagens de fantasia, imaginação alegre, desvelo, amplidão, embriaguez.

“É necessário estar sempre embriagado. Tudo esta aí: é a única questão. Para não se sentir o horrível fardo do Tempo que quebranta os vossos ombros e vos curva em direção a terra, deveis vos embriagar sem trégua. Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, como quiseres. Mas embriagai-vos”. (Charles Baudelaire, in ‘Pequenos Poemas em Prosa’)

Distanciam-se os choros das horas fracionadas que traziam o medo, a tristeza e a auto-piedade. Um partilhante consciente de seu existir é mais livre, responsável, tem poder de ação, sendo capaz de melhor experienciar o mundo, modificá-lo externando o que está em seu íntimo. Jung Já dizia: “Quem olha para fora sonha. Quem olha para dentro acorda”.

Fazer terapia é aceitar mudanças, deslocar, transformar cambiando pensamentos, emoções. Educar, reeducar, transmutar-se em desejos intensos. Tanto o terapeuta como o partilhante dão aulas de existir, habitam novos lugares. Nesse contato transformador por vezes estrangeiro, criamos novas aberturas, ensinamos, aprendemos, deixamos fluir num efetivo exercício de potencialidades.

Sapientia brinca e canta nestes instantes de amor, sabores, saberes, entre sonho e vigília, desvendando a misteriosa alma humana. Até o momento da separação que escreve “apenas” mais um capítulo da poética escritura literária, em vida, rica, exuberante em efeitos recíprocos. Então: mais virtude, mais poesia e um pouco mais de vinho, brindando o delicado ofício de pesquisar a natureza humana.

Referência
BHARTES, Roland. A aula. São Paulo: Cultrix, 1989.
ANDREA-SALOMÉ, Lou. Carta aberta a Freud. Trad. Lenis E. Gemignani de Almeida. São Paulo: Landy, 2001.

Porto Alegre, maio de 2009

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Pecado-culpa-depressão


O colosso de Goya. Estampa solta.
Gravado à água-tinta brunida.


O que Nietzsche diria das terapias bíblicas encontradas a mãos cheias na internet? Diria que a “psicologia sacerdotal” continua a encontrar o homem desgraçado. O pecador que se arrasta desde Adão. Sua culpa é o fardo que carrega. O “deves sofrer” é seu mantra. “O pecado digamo-lo uma vez mais, essa forma de poluição da humanidade par excellence, foi inventada para tornar impossível a ciência, a cultura toda a elevação e toda a nobreza do homem; o sacerdote “reina” pela invenção do pecado”. (NIETZSCHE 1984)

Mas, em sua psicologia, o sacerdote “evolui”. Junto com o pecado trouxe de arrasto a depressão, termo mais contemporâneo que o rebanho já dispõe em seu estreito vocabulário. Dentro da teoria bíblica é preciso tentar um “diagnóstico” próprio para a causa da depressão e entre as alternativas disponíveis estão: medo, culpa, vergonha, raiva, desejo de fugir, falta de esperança, não confissão de um pecado. Nada que não possa ser solucionado pela confiança no Senhor. Eis a receita Cristã aos “doentes”: Adorá-lo com exclusividade, nutrir pensamentos Cristocêntricos, examinar e corrigir os pensamentos negativos e distorcidos, freqüentar cultos.

Nas abordagens bíblicas encontradas na web, é salientado que na Bíblia não se encontra o termo depressão propriamente dito, mas que aparece com outros nomes sugestivos, como por exemplo: “Em tudo somos atribulados, porém não angustiados; perplexos, porém não desanimados (ou deprimidos)” (II Cor 4.8). Nada como uma pequena adaptação de signos para que o verbo se faça! Causas bíblicas da depressão:

a) Um vazio interior, vida sem sentido. Ecles 1.2: Ecles 1.14
b) Sentimentos de culpa e remorso Sl. 32.3: Mt. 27:3-5
c) Espíritos malignos I Sm 16.14-23:
d) Ira, Ressentimento Gênesis 4.6,7: Gên 30.1:
e) Auto-Piedade I Reis 19.3.4:

As tribulações do diabo também são lembradas:

Tribulação vem em nossas vidas, mas é momentânea, o crente tem que ficar firme na graça, (2 Coríntios 4:17) “Porque a nossa leve e momentânea tribulação produz para nós um peso eterno de glória mui excelente”. Porém, temos que resistir o Diabo para termos uma vida de paz e amor em todos os sentidos, (Tiago 4:7) “Sujeitai-vos, pois, a Deus; resisti ao diabo, e ele fugirá de vós”. Nunca dando lugar para ele, (Efésios 4:27) “Não deis lugar ao diabo”. Acreditar em forças diabólicas como verdade, expõe o inimigo maléfico, faz ressurgir o demônio medieval. Nietzsche em sua obra O Anticristo, salienta a importância da palavra “diabo”, que chega e permanece até os dias atuais como um benefício, “não havia necessidade de uma pessoa se envergonhar de sofrer por semelhante inimigo”. Esta é a explicação para uma declaração de sofrimento antes velada e agora afirmada “Eu sofro” por meus pecados. O cristianismo produz a consciência do pecado e dela tira a sua sobrevivência.

Saídas para a depressão:

Terapia do Amor: A verdadeira terapia do amor está em (Efesios 5:22 a 25) “Vós, mulheres, sujeitai-vos a vosso marido, como ao Senhor; porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja, sendo ele próprio o salvador do corpo. De sorte que, assim como a igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres sejam em tudo sujeitas a seu marido. Vós, maridos, amai vossa mulher, como também Cristo amou a igreja e a si mesmo se entregou por ela”. Pobres mulheres!!!

Pois como diz o Apóstolo Paulo sobre o amor em (I Corintios 13:5e 7) “Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal; (...) tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”.

Ou seja, é a receita cristã para tornar o homem civilizado, manso, doente, decadente. Paulo prega o apequenamento do homem, símbolo da má consciência escrita pelos sacerdotes. Para Nietzsche sofrer não é padecer, o sofrimento despontecializa é preciso paixão, potência, para superar o sofrimento. A conduta do coração não é uma questão de fé, é prática, vida potencial e não uma crença.

Sendo assim: Obedecendo esses ensinos não há demônio que consiga desfazer o amor conjugal e as bênçãos estarão sobre o casal para todo sempre, (Salmos 71:15) “A minha boca relatará as bênçãos da tua justiça e da tua salvação todo o dia, posto que não conheça o seu número”. Tantas são a bênçãos que se torna impossível saber quantas são.

O que Deus uniu o homem não separa! Custe o que custar, além de seu fado carregue o fado alheio.

Alerta! Não caia no engodo de terapias, confia unicamente na Palavra de Deus. Creia em Deus e leia a Bíblia.

“Deus, a fórmula para todas as calúnias do “lado de cá”, para todas as mentiras do “lado de lá”. O nada divinizado em Deus; a vontade para o nada santificado!... (NIETZSCHE, 1984) Que moral é essa perguntaria Nietzsche? Os “sanguessugas pálidos e subterrâneos” ainda pregam suas mentiras como verdades universais? Que imperativos mesquinhos são esses? Quem deu a eles o poder de julgar?

Novos valores, arte, vida, criação gritaria com o martelo na mão. Uma moral perspectivista, sem fraqueza que domine, sem verdade absoluta, forças produtivas, potências que saboreiem e dão destino a própria existência. Um dar-se conta que a visão cristã não é a única interpretação do mundo, é apenas uma a mais. Há diversidades sempre em devir e elas precisam estar abertas para a eterna novidade da vida, da terra.

“Necessitamos de toda a arte petulante, flutuante, dançante, trocista, infantil e contente para não perder essa liberdade que nos coloca acima das coisas e que o nosso ideal exige de nós (...) é preciso que possamos nos sobrepor á moral e não somente que a inquieta rigidez que receia a cada instante dar um passo em falso e cair, mas com a vontade de alguém que pode planar e brincar sobre ela. Como (pois) poderíamos nesse campo dispensar a arte e o louco?” (NIETZSCHE, 1981) Aprender a amar o nosso destino, dizer sim a vida com alegria como o coração de uma criança que se nutre do amor, das cantigas e das danças. A boa nova do coração é o amor fati, o que dá sentido a própria vida a cada instante.

Distante das fogueiras, das torturas impostas por uma inquisição que com novos trajes traz consigo o ranço, o mofo sacerdotal que impõe a vida como pecado-culpa-depressão. Sombras de um tempo que para muitos ainda serve com referencial para uma possível salvação.

Vide os últimos acontecimentos divulgados pela mídia: padres pedófilos, exorcismos de um jovem homossexual na Itália, excomunhão dos médicos que fizeram aborto em uma menina grávida de nove anos, que corria risco de vida, estuprada pelo pai, que corria risco de vida, em Recife.

E vide ainda as últimas pérolas do Papa Bento XVI, na semana do Dia Internacional da Mulher: “A máquina de lavar roupas trouxe mais benefícios para as mulheres que a pílula anti-concepcional”. E em sua última viagem à Àfrica – país com o maior índice de portadores de HIV positivo no mundo -, sugeriu abstinência sexual aos africanos, para não utilizarem camisinha.

Quem sabe uma nova invenção?

Terapia não na concepção tradicional, mas como um sistema de percepção que essa experiência reúne, que tenciona, puxa, solta a um fim particular de vida útil. Útil porque é belo, vivo romance todas às sensações, ali podem estar contidas, perfumes próprios, sabores, imagens em movimento. Forças de produção, vida prática, transam com vida contemplativa, naturezas em ação, sempre novos acontecimentos. Espíritos livres e atuantes em liberdade hora lá, hora cá. Um mundo tal como é, estável, entre criação complacente, prazerosa e o caos. Onde razão grita, mas as coisas sensíveis dão plenitude a realidade, novos verbos, sucedem singularizações, em cada um de seus atos.

Acompanhar jornadas é a terapia prática, a vida na prática, estações de existência, um olhar sobre o que acontece entre paixões e anti-paixões. O que fazem, desfazem? Quais os demônios e seus deuses? O que impõe seus desejos de individualidade? O que ocorreu ou ocorre? Quais sensualidades, vislumbro ao ver essas partes de mundo? Quais mandos, destinos?

A cada novo acontecer não penetra novas coisas? Sua potência não é nova autoria do mundo através de planos que concebeu em seu pensamento? Toda vida não é sempre uma nova vida? Viva a arte e a loucura!!!

Referência:
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São Paulo: Hemus, 1981. ________________. O Anticristo. São Paulo: Editora Moraes, 1984.

(Texto apresentado no Seminário O anticristo na sala de artes, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, da linha de pesquisa Filosofia da Diferença e Educação. Professora Responsável: Paola Zordan.)

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Porto Alegre, janeiro de 2009

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A escrita é o espaço da alma amante


A escrita segundo Barthes deve dizer do coração e de todos os mistérios que dele advém. O que era “seco” é invadido, umedecido pelo prazer, a fruição, coabitação de linguagens. O espaço da alma amante possibilita gozos, posses, usufrutos.

Para quem escreve o escritor? Em sua obra O prazer do texto afirma: “Não é a “pessoa” do outro que me é necessária, é o espaço: a possibilidade de uma dialética do desejo, de uma imprevisão do desfrute: que os dados não estejam lançados, que haja jogo”. (BARTHES, 2006)

Para que escreve o escritor? A alma amante diz-se através da escrita, como amante ciumento, Barthes enfatiza Mallarmé com relação a essa prática de escrita: “Uma prática antiga e muito vaga, mas ciumenta, cujo sentido jaz no mistério do coração”. (BARTHES, 2005).

Sendo assim a alma amante do escritor não busca aprovação ou admiração, sua própria arte de escrita é um ato de amor. Escreve para ser amado, mesmo que à distância. Outras alegrias virão a preencher novos espaços “satoris” em dança frenética anunciando novas conversões. O mutante escritor em vão tenta estagnar sua hemorragia, espargindo gotas de amor com poder germinativo pelo mundo em devir.


Referências:

BARTHES, Roland. O prazer do texto; Trad. J. Guinsburgl. São Paulo: Perspectiva, 2006.
________________. A preparação do romance II: a obra como vontade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

Porto Alegre, outubro de 2008

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Enfermidades e Degenerações – Uma terapêutica filosófica



Resumo: Qual um outro modo possível de se ver a falta de saúde? O que causa na realidade a “doença”? Seria o ressentimento, porque os ressentidos não teriam afetos ou buscam na realidade afetos? A doença não é de todo má. Segundo Nietzsche, na própria enfermidade há condições de se encontrar vontade de potência de intensidades variadas. A boa consciência, a grande saúde brota daí, é experimentar novos pensamentos, impulsos, afetos. Longe da metafísica é preciso encarar-se a si mesmo, em profundidade, pois há vida a pulsar nos tecidos íntimos, apesar das adversidades. Este texto foi apresentado no Seminário Avançado Ascese e terceira dissertação da Genealogia da Moral – Nietzsche, do PPGEDU/UFRGS, Linha de Pesquisa: Filosofia da Diferença; para a professora Paola Zordan. É um exercício de escrileitura, um modo próprio de escrever a partir de textos-base filosóficos.

Palavras-chave: Saúde, ressentimento, degenerações, terapia, Filosofia da Diferença

“O doente deitado em seu leito descobre às vezes que normalmente está doente de seu emprego, de seus negócios ou de sua sociedade, e que por causa deles, perdeu toda reflexão sobre si mesmo: ele tira esta sabedoria do próprio ócio a que sua doença o condena”. (NIETZSCHE, 2000)

Adoeci temporariamente, tive febres, dores, prazeres, suores noturnos lutei bravamente estabeleci conversações, mas não deixei de criar, um redemoinho no meu corpo alquebrado. Nesse delírio, passei por muitas saúdes, atravessei filosofias, não sou “rã pensante”, nem “máquina registradora”. Minhas vísceras queimavam e comecei a parir pensamentos.

Acolhi maternalmente o que veio do meu sangue, o prazer, a paixão, escutei meu coração em transe, entre tormentas de consciência, sonhos delirantes, destino, fatalidade e me senti mais viva, meus pés juntamente com meu coração adquiriram um novo ritmo, dançava aos pulos. Luz e chama, uma dor longa e lenta me fez mergulhar em abismos, profundezas de onde tirei confiança, era uma índia transfigurada, a médica filosofa, a minha própria terapia filosófica. Não havia sobriedade e sim embriaguez, dúvidas, insegurança, perguntas, respostas, novas idéias, conheci por instantes uma nova felicidade.

“Todas as grandes coisas perecem por obra de si mesmas, por um ato de auto-supressão: assim quer a lei da vida, a lei da necessária “auto-superação” que há na essência da vida – é sempre o legislador mesmo que por fim ouve o chamado: “patere legem , quam ipse tulisti”[sofre a lei que tu mesmo propuseste]. (NIETZSCHE, 1998).

“Eu sou” me habita, neste corpo antimetafísico, nessa mudança, nessa multiplicidade. Não desprezo meu corpo, pois devo a ele minha estima. A vida é criar, arte de viver, suplantar-se, ser superior é toda uma potência que atravessa o meu corpo como ponte em busca do super-homem.

Meu fardo sou eu, camelo, leão e finalmente criança que torna a brincar. Rumino pensares sobre a corda distendida, arrisco passos, atravesso outros tantos abismos, não olho para trás, não paro, não tremo. Entre a mulher e a fera, exercito os meus instintos, nesse ponto de contato que é o meu corpo. Sou uma ponte, uma passagem e mesmo que um dia chegue à morte sei que ela também é transitória nesse devir do tempo.

A vida é uma escola, quero ser um aluno de luz, sei que a escola é de guerra, mas “o que não me mata, fortalece-me”. (NIETZSCHE, 1996)

Minha felicidade não vem da decadência como a de Sócrates e Platão, símbolos da decomposição grega. Com “maldade de raquítico” em seu olhar Sócrates parece um médico, um salvador dialético. Isso me enfara.

Razão, virtude, felicidade são apenas moralismos, condicionamentos patológicos. Seu remédio, sua salvação é a expressão da decadence. Seus “pacientes” tinham como último recurso serem racionais negando seus instintos. Sócrates encarna o homem domesticado, se afasta da vida por exaustão, desgosto, deseja o seu fim, bebe sua sicuta e dá adeus à existência.

Perguntas me invadem como vento: Quem são esses Sócrates do dia-a-dia? Esses enfermos homens que não lutam? Quem é esse domado? Onde estão os que deveriam ser o próprio desafio do seu destino? Porque não experimentam ser diferentes?

Arrisco uma resposta: Ele, esse homem, perdeu a leveza, se arrastou pelo charco pantanoso, não resistiu, não tinha alegria, não via mais beleza, optou pela dança da morte.

Nesse pântano o homem fraco adora fazer morada, olha ao seu redor com o “olhar que é um suspiro”. As ervas crescem em meio ao autodesprezo, plantas de veneno em abundância, nesse cenário sua pequenez se destaca. Os reis e rainhas, batráquios da decadência.

“Aqui polulam os vermes da vingança e rancor; aqui o ar fede a segredos” (NIETZSCHE, 1998). Os pequeninos, enfermiços, conspiram contra os sãos.

Uma epidemia - a “peste negra” - está diante de nós com uma roupagem mais fashion do Bacillo Pasturella Pestis. Estende seus tentáculos silenciosos nos hospitais, clínicas, UTIs, pronto-socorros, manicômios, emergências em nossas casas, nossas escolas, nas academias, sobre a terra.

A hiena mulher é um perigo, me vem à mente uma imagem de Elisabeth irmã de Nietzsche. A hiena da família ou sua querida “lhama”, a mesma que intitulou de “tola presunçosa e inoportuna” em carta dirigida à Malwinda von Meysenbug. (FERRAZ, 1994).

Mas quem de nós não teve o desprazer de conhecer semelhante figura?
A hieninha ferida, a lhama inoportuna, sempre de plantão, um rostinho de mártir, empoada com talco “alma de flores”. Aquela que surge quanto estamos felizes e gargalhamos a plenos pulmões insiste em puxar o seu rosário de contas desenterrando “vivos ou mortos”, destilando seu veneno. Puxa suas agulhas da angústia para dilacerar nossa carne, nosso corpo sadio e assim satisfazer sua “nobre indignação”. Não se segura e pergunta insincera e docemente: “Como podes ser tão feliz diante de tanta miséria”?

Abaixo o azorrague ! “Fora esse mundo ao avesso”! Também sou mulher, não sou hiena, meu sentimento de felicidade me pertence. Foi através de meus méritos que conquistei, atingi por minhas potências efetivadas. Vivo apesar de saber da existência da miséria, mas não me deixei domar, resisto, tenho momentos de felicidade. Te afasta, hiena ressentida! Coma merda, transe uma vez por ano e continue sorrindo longe de mim. Minha melhor companhia sou eu mesma!

A enfermidade é comum ao homem, mas não podemos nos deixar levar pela doença é preciso resistir com “pujança da alma e do corpo” (NIETZSCHE, 1998). Digamos um sim à vida e um não à “vida contra vida”, máxima do asceta. Ele quer curar e proteger o seu rebanho ressentido, é o desprezador natural de toda saúde. Para que entendam os doentes é preciso também ser doente, sua aprendizagem serve para dominar os que sofrem primeiro ferindo, moral de enfermeiros e médicos. Injetam, cortam, amputam, isolam, entalam, extirpam. Surge o médico que acalma as dores com bálsamos e ungüentos, tornando o doente necessariamente manso e calmo.

Nessa mansidão vigiada o ressentido habita, entorpecido, mas, não satisfeito, sua busca é por um narcótico poderoso, uma droga chamada afeto. Nesse quadro ocorrem metamorfoses, ovelhas se transformam em rãs sem cabeça, espasmos de vida, se embebem de si, drogas do próprio veneno. A maldade exposta dilacera quando o pus brota - a culpa é do amigo, a mulher é culpada de seu fel, temos também o filho sangue da trombose, o tio catarro, o irmão vômito, o câncer do trabalho e tantos outros malfeitores.

Sua máxima: ‘Alguém ou alguma coisa deve ser culpada do meu sofrimento’, exclama continuamente, entre transfusões, balões de oxigênio, comprimidos de Prozac, Paracetamol, Rivotril, Lorax e eventuais doses de morfina.

Onde está meu médico? Meu urso-pantera-raposa? Meu três em um? O que não estuda minha saúde, mas minha doença. O meu amparo, meu apoio, o deuszinho tirano de guarda-pó branco feito nuvenzinha indo e vindo pelo corredor da morte. O senhor dos sofredores chega e afirma delicadamente: “somente você é culpado de si!”. (NIETZSCHE, 1998).

Chega de almas e corpos dispépticos, que não conseguem terminar nada, anda em círculos na certeza que estão indo adiante. É preciso esquecer positivamente, a força ativa pede passagem, um instante de frescura, um fluído, móbil e leve.

Chega do anal ressentido, o também chamado “cú de chumbo”, busquemos uma memória digestiva em constante atividade. Voltemo-nos para o plano do sujeito, um novo empirismo. Fim também para “o tudo fere”. Adeus à passividade do “não agido”. Chega de Retalina para crianças inocentes. Com fúria titânica acabemos com “Tu és mau, portanto eu sou bom”.

Sejamos senhores e não escravos. Somos botânicos e naturais, corpos a florescer apesar das adversidades. A ciência, assim como os sujeitos, não é fixa assim. É preciso uma nova filosofia, uma nova lucidez, movimento, escrita que imortaliza. Deixe que a Fênix surja das cinzas, afirmemos nosso caráter solar: “Sou por demais ardente, incendiado por meus próprios pensamentos: perco freqüentemente a respiração por causa disto. Preciso sair ao ar livre, longe de todos os gabinetes empoeirados.” (NIETZSCHE, 1979)

Nos libertemos dos pecados impostos à alma, que a fazem adoecer, não deixemos multiplicar em nós as dores interiores, essa “introjeção de força” que nos traz a má consciência. Os nossos instintos que desabrochem quebrando as crostas impostas pelos ressentidos, para receber assim novas excitações. Lembrem: O ressentido não re-age, em função disso, adoece. Nós precisamos do raro, do novo, no que nos defina como normas de nós mesmos. A boa consciência, a grande saúde brota daí, é experimentar novos pensamentos, impulsos, afetos.

Pode haver uma desestruturação momentânea nesse buscar, uma “decadence” episódica, mas não deve nos dominar, são interações muitas vezes necessárias, pois há uma pluralidade de sujeitos, uma luta de mando e obediência onde a ação é tudo.

Que nesses episódios, esses estados de corpo em devir, possamos nos tornar aventureiros, o navegador de nosso mundo interior. Nessa aventura, vamos viver, pois a vida ainda pulsa. Vamos dançar, fazer nova saúde, uma saúde que transborde, fazendo nascerem novas estrelas bailarinas, pois essa é nossa mais nova coreografia.

E Zaratustra falava assim ao povo: é tempo que o homem cultive o germe da mais elevada esperança. Eu vo-lo digo: é preciso ter um caos dentro de si, para dar à luz uma estrela bailarina. Eu vo-lo digo: tendes ainda um caos dentro de vós outros. (NIETZSCHE, 1979)

Não pensemos que a doença seja de toda má, ela serve muitas vezes para questionar, se auto-experimentar via pensamento em uma dimensão diferente, diversa. Mas de preferência que não se caia na perdição metafísica, isso é parar, não movimento, um desprezo ao teu próprio “Eu sou”. Tu és teu Deus. Diante disso sejamos tirânicos, rearranjemos em nosso corpo nossas potências para a manutenção da vida.

Como faz falta um “médico filosófico”, um enfermeiro filosófico, um terapeuta filosófico, um educador filósofo. Por quê? Ele conserva e afirma a vida, pois aprendeu a curar a si próprio e por via de conseqüência verei isso em seu olhar quando uma enfermidade minha me fizer seu paciente, seu partilhante melhor dizendo.

Ele verá em mim não somente o signo da doença, transformada em patologia, não verá em mim um conjunto de sintomas corporais, isso é só a superfície de meu corpo. Verá que eu também sou profundidade e em meu íntimo minhas potências ainda pulsam em meus tecidos íntimos. Isso fará toda a diferença nesses instantes.

¨ “O que constitui agora a unidade do olhar médico não é o círculo do saber em que ele se completa, mas esta totalização aberta, infinita móvel, sem cessar, deslocada e enriquecida pelo tempo, que ele percorre sem nunca poder detê-lo: uma espécie de registro clínico da série infinita e variável dos acontecimentos”. (FOUCAULT, 1998).

Para colaborar na busca dessa saúde, dessa construção compartilhada pode auxiliar uma boa música, nada de sedentarismo, diversão, bons livros, muito ar puro e pensamentos caminhados. “A natureza envia o filósofo à humanidade como uma flecha; ela não visa, mas espera que a flecha ficará cravada em algum lugar” (Schopenhauer apud DELEUZE).

Bons pensamentos são sintomas de saúde, o sofrimento faz parte do conflito do homem com o mundo. Faça o que potencializa, afirme a vida, isso dá saúde ao corpo e à alma. Não há uma fórmula universal de boa saúde, um Leito de Procusto , como o DSM IV massificador. Os corpos e almas não são iguais, cada um tem seu próprio devir, caminhos, trajetórias, cada um é um tipo singular e seus valores se criam dentro da sua perspectiva moral, sua plasticidade é um exercício do existir. Pode soar estranho, mas cada um deve tomar para si a tarefa de curar-se a si mesmo.

Foucault já afirmava que normalidade e patologia são conceitos políticos, a medicina vigia os limites por ela considerados entre razão e loucura. O rótulo de “doença mental” é o indicativo que vale como interdição. Esqueceram que cada ser humano tem a sua forma de ser no mundo, mesmo na intitulada “loucura”, não pode deixar de considerar como outras formas de potencias e impulsos. Lembrando que a OMS (Organização Mundial de Saúde) considera saúde: “Estado de completo bem-estar físico, mental e social”. Mas quem de nós se encontra em completo bem-estar?


Referências

DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Trad. Antonio M. Magalhães. Porto-Portugal.Rés-Editora Lda, 1976.
FERRAZ, Maria Cristina Franco. Nietzsche, o bufão dos deuses. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.
FOUCAULT, Michel. História da loucura. Trad. José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Editora Perspectiva, 1997.
__________, O nascimento da clínica. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.
NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: Um livro para espíritos livres. (Trad., notas e posfácio: Paulo César de Souza). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
_________, Genealogia da moral: uma polêmica. (Trad, notas e posfácio: Paulo César de Souza). São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
_________, Crepúsculo dos ídolos. (Trad. Delfim Santos Filho). 3ª ed. Lisboa: Guimarães Editores, 1996.
_________, Assim falava Zaratustra. São Paulo: Hemus Editora Limitada, 1979.

Porto Alegre, setembro de 2008

Você também pode encontrar este texto no site: Casa da Filosofia Clínica

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O asno de Buridan?

O filósofo francês Jean Buridan viveu na Idade Média, foi mestre e reitor da Universidade de Paris. Uma de suas contribuições mais significativas foi desenvolver e popularizar da Teoria do Ímpeto, que explicava o movimento de projéteis e objetos em queda livre. Essa teoria abre caminho para a mecânica moderna com o desenvolvimento da dinâmica de Galileu e do Princípio da Inércia, de Isaac Newton.

“...depois de deixar o braço do arremessador, o projétil seria movido por um ímpeto dado pelo arremessador e continuaria a ser movido enquanto esse ímpeto permanecesse mais forte que a resistência. Esse movimento seria de duração infinita caso não fosse diminuído e corrompido por uma força contrária resistindo a ele, ou por algo inclinando o objeto para um movimento contrário. “ (Buridan)

O caso do asno de Buridan, que posto entre dois montes de feno, morreria de fome antes de se resolver quais dos dois comeria, na realidade não se encontra em suas obras, mas sim suas premissas. Buridan julga que a vontade segue o intelecto, onde a decisão é pelo bem maior, se a malha intelectiva assim julgar.

O paradoxo se dá justamente quanto o intelecto julga que dois bens são iguais, e assim a vontade acaba não se decidindo nem por um nem por outro e a escolha acaba não acontecendo. Buridan julga porém que o homem diferente do asno pode não morrer de fome, já que tem a faculdade de suspender ou impedir o juízo do intelecto. Diante de um impasse paradoxal a escolha deve ser adiada até se obter informações mais aproximadas sobre o resultado de cada ação possível.

A origem do caso do asno é encontrado na obra De Caelo de Aristóteles: “Diz-se que quem está muito sedento ou esfaimado, se acha em igual distância do alimento e da bebida, necessariamente fica imóvel onde se acha”. A diferença aqui é que Aristóteles fala de um cão e não de um asno, mas o princípio é o mesmo.

Trazendo esse caso para os dias atuais poderíamos lembrar a música dos Titãs que pergunta: Você tem fome de quê? Você tem sede de quê?

Em clínica encontramos muitas formas de “fomes” e de “sedes”, termos equívocos que necessitam um enraizamento. E também vidas sem objetivo da matar a fome ou saciar a sede, que já é um objetivo.

Quantas vezes nós não ficamos paralisados diante de uma decisão a ser tomada com dois montes de feno nos esperando? Quantas vezes você tem fome e sede de desenvolver projetos que muitas vezes precisam ser protelados nos deixando imóveis feito cão? O que fazemos com nossas potências não efetivadas? Falamos ou não falamos? Vamos ou não vamos? Tento ou nem tento? Mais à esquerda ou à direita? Um sorriso ou uma lágrima? Acabo com tudo ou recomeço? Chuto o balde ou espero? Grito ou fico em silêncio? Me ressinto ou luto?

E aquelas encruzilhadas principalmente entre jovens na época do vestibular: Direito porque meu pai quer, filosofia porque eu quero. E aí? As dúvidas vão ao infinito como infinitas são as singularidades que habitam uma existência. E os “resolutivos” desfechos abrirão novos caminhos buscantes.

Como diz um querido amigo: “São situações!” O que fazer e o como fazer nestas situações vão depender dos desdobramentos clínicos. Surpresas podem acontecer, um olhar atento dirão desses sinais. E a terapia segue seu curso entre ímpetos, paradoxos, movimentos de proximidade de ações potenciais ou travas inerciantes.

Porto Alegre, setembro de 2008

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A arte de compartilhar II

(Artigo apresentado no Décimo Encontro Nacional de Filosofia Clínica – Vitória – Espírito Santo)

Filosofia, educação, saúde, arte de compartilhar, filosofia clínica. Fiquei pensando, remoendo, idéias e sentimentos.

Pensei no lema do bom terapeuta - “amor e trabalho” - e tudo o que foi construído nessa trajetória. O amor puro de Schopenhauer, onde a compaixão é o conhecimento da dor alheia que é também a dor do mundo. E o trabalho onde não haja a traição da espiritualidade alegre e contemplativa que é o próprio homem, que nos traga “a boa consciência”, como bem nos lembra Nietzsche.

Uma das primeiras perguntas que faço nas minhas aulas é: “Vocês gostam de gente?”
Sim, porque trabalhar com Filosofia Clínica é ficar diante da humanidade em pessoa, diante de um ser humano, um alguém com todas as suas singularidades.

A segunda pergunta: Vocês acham que ser terapeuta, ser um filósofo clínico é possível para toda e qualquer pessoa? Acho que não.

O que é preciso para ser um bom terapeuta, um filósofo clínico, que vai usar seus conhecimentos filosóficos, seus saberes como educador, compartilhando artes, na busca de uma melhor qualidade de vida de seus partilhantes?

Amor por gentes, pelo seu trabalho, arte, criação e considero fundamental um bom traço de caráter. E isso não se consegue apenas durante a formação, porque é preciso que esteja lá essencialmente com cada um que busca ser terapeuta desde o começo. É preciso haver uma formação contínua, uma busca que não se esgota em um curso ou uma experiência pedagógica. É preciso um fazer e um refletir sobre esse fazer constantemente.

Para além disso, é desejável um conjunto de traços particulares, de bom efeito moral, traços éticos que vão nortear suas ações e o seu trabalho. Sem essa base, essa dedicação, sem essa sustentação, os alicerces acabam por ruir como um castelo de cartas.

Basta fazer dois anos de formação, mas pré-estágio e estágio e já se está pronto para ser um bom terapeuta? Não.

A formação é uma passagem, é um aperfeiçoamento daquilo que está latente num terapeuta. Durante essa trajetória, esse devir, agregamos mais instrumentos, mais qualificação para lidar com o humano.

Somos pesquisadores de humanidades, alunos, terapeutas, filósofos, sempre em formação (a-luno, significa sem luz). Procuramos uma luzinha: “Melhor aceitar a explicação mais simples, mesmo que não seja simples, mesmo que não explique muita coisa. Não precisa luz forte, uma luzinha basta para a gente viver da estranhidão, basta que seja uma luzinha fiel”. (Samuel Beckett)

Acredito que cada ser humano, tem uma luz própria. Dependerá muito de nossas ações, nossas práticas, sabermos buscá-la.

Uma das proposições mais belas da Filosofia Clínica é a construção compartilhada. Ela tem uma força, uma intensidade poderosa e é com esse propósito que entramos na “festa” da interseção.

Estabelecer interseção é algo fácil? Nem sempre. Mas, na minha concepção, há alguns posicionamentos básicos que podem agir como facilitadores, para essa dança, essa interseção que passa a se estabelecer. Além do que já salientei anteriormente, não podemos esquecer que estamos diante de uma estrutura plástica, dois corpos em movimentos que se dão a conhecer.

Escuta e ouvir: Escutar é estar atento para ouvir. Alguns aqui podem estar me escutando, sons, palavras, ruídos. Mas ouvir é isso, além de uma viagem que me proponho fazer para ir ao mundo do outro. Fui escolhida para isso, esse sujeito propõe um descortinamento, quer trocar, mostrar seu universo mais íntimo. E toda a minha atenção, ligação, respeito ao que começa me chegar estão dispostos nessa direção.

Perceberei dores, odores, alegrias, horrores, palavras, ações entrecortados de silêncios, suspiros de alma, paralisias e transbordamentos, complexidades, nuances, cores, simplicidades, nessa interseção hora estabelecida.

Escutar e ouvir é um exercício fascinante, primeiros passos para um tango, uma valsa, um rap, um funk, um clássico, uma novidade, só ouvindo verdadeiramente, escutando saberemos.

Isso basta?

É preciso algo mais, não atropelar, não induzir, não agendar, não julgar. Devo ser presença, presença que acolhe naturalmente, sem invasão. Mais tranqüilidade, serenidade, um olhar que diga “sim”. Um gesto de “estou te acompanhando”. Teu universo me interessa, estou indo contigo, te saco, quero saber de ti. Me conta tua história, quero visitar teus endereços existenciais. O “como” se faz é a tônica, “o amor busca para que o entendimento encontre”. (Ortega y Gasset)

Nessa vivência que se estabelece, somos companheiros, um filósofo outro partilhante, numa duração de tempo maior ou menor que varia de caso a caso.

Acolha o que a pessoa traz. A boa clínica demanda tempo, não é um comprimido efervescente, é um trabalho de delicadeza e paciência. É acompanhar desdobramentos.

A clínica vai além da técnica, dos saberes e dos conceitos filosóficos. Não temos uma fórmula pronta, temos instrumentos para acompanhar um processo em constante devir. Hora mais lento, hora rápido, raso, largo, profundo, doloroso, alegre, manso ou feroz, que constrói ou desconstrói. Às vezes, se deixa ver com maior nitidez, às vezes ainda se esconde por não estar pronto para se mostrar. Silencia e grita, acalma e agita. Ganha força, refaz, desfaz.

Há surpresas que não estão contempladas, apesar de todo o planejamento clínico obrigatório. Aí entra o poder criativo do filósofo clínico, quando surge o imprevisível, nuances do inesperado.

Um exemplo que costumo citar é de um caso no qual um partilhante não queria contar a sua história. Várias consultas que giravam em torno do assunto imediato e último.

O que fazer? Sem conhecer as circunstâncias mais amplas dessa existência, seu tempo subjetivo, suas relações, os endereços, lugares, como detalhar os choques dessa estrutura de pensamento? Como saber suas formas de ação ou submodos?

Aí veio a luz. Dentro do relato que novamente girava no problema que estava enfrentado no momento. Eu perguntei: E antes disso? Foi a alternativa que surgiu, consegui colher o histórico por retroação. E a partir daí a clínica fluiu com naturalidade.

A terapia é um desafio, é trabalhoso, leva tempo. A clínica não é uma ciência exata, as variáveis vão ao infinito. E nem uma pessoa será igual a outra. Cada partilhante que chega é único.

Uma das abordagens que faço no meu livro e que tenho repetido em encontros, aulas e workshops é a ênfase na formação. Para ser um bom terapeuta, além de estudar, se dedicar, ler, aprofundar os conhecimentos é preciso por em prática esses saberes.

Para mim, foi fundamental o trabalho voluntário, que comecei já antes da Filosofia Clínica na época da faculdade. No antigo Projeto Rondon. E após os estágios fui novamente fazer voluntariado com deficientes visuais.

Sair é preciso, ir para o mundo, colocar em práticas as idéias, os conceitos. O atendimento no domicílio é outra experiência que também recomendo. Essas práticas trarão com certeza aprimoramento, um novo empirismo entre sujeitos, riquezas existenciais que vão auxiliar nos devires seguintes e isso fará diferença.

Amadurecemos muito com isso, quebramos muito pré-juízos, vamos encarar outras tantas realidades, agregamos com isso força, novas perspectivas diante do mundo. Isso nos torna mais criativos, temos novos materiais para estudo e pesquisa.

Os estudos são constantes. Bons livros, bons filmes, seminários, grupos de estudos, encontros. Tudo o que possa servir para o aperfeiçoamento, para excelência de aulas, atendimentos, para nos enriquecer como seres humanos. Tornará qualquer tipo de relação mais qualificada seja na vida, na clínica em sala de aula. E isso irá transparecer pela intensidade das novas interseções.

Penso, acredito, que nesse tempo todo da Filosofia Clínica, onde lidamos diretamente com os saberes filosóficos, com educação e com a saúde crescemos muito. Caminhamos, entre erros e acertos.

E cresceu mais, quem lutou, buscou aperfeiçoamento que não se esgota nunca, pois a vida é um perpétuo móbile. Que criou, cultivou, distribuiu e auxiliou. Sendo uma luzinha fiel nessa trajetória. Quantas pessoas passaram por nós? Quantos ainda virão?

Se fizermos bem o nosso trabalho, com ética e responsabilidade, esse será o nosso reconhecimento, a nossa alegria e nossa marca no tempo.

A Filosofia Clínica é a arte de compartilhar.

Vitória, maio de 2008

Saiba mais sobre o livro A arte de compartilhar, finalizado em 2007.

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"Eu tenho TOC"


Recentemente recebi pela internet um convite de formatura de segundo grau de uma partilhante que atendi no ano passado, que circunstancialmente chamarei aqui de Janete. Juntamente veio a notícia de seu ingresso na universidade e a efetivação de contrato de trabalho em sua área de atuação. Meu pensamento criou asas e vieram as imagens dos primeiros encontros, do processo clínico e dos desdobramentos terapêuticos.

Esta partilhante chegou na primeira consulta já me trazendo o seu diagnóstico: "Eu tenho TOC. Estou tomando essa medicação, que me deixa mal". Janete concluiu que estava com TOC e procurou um médico que prescreveu medicações fortes, que ela tomava apenas periodicamente. Tem sido cada vez mais freqüente pessoas que chegam à clínica já trazendo um rótulo: "Síndrome do pânico", "distúrbio bipolar", de "humor", "TOC (transtorno obsessivo compulsivo)", etc...

Na sociedade contemporânea se tornou modismo sofrer de algum desses males. Os programas "informativos" muitas vezes não levam em conta que pessoas facilmente agendáveis são suscetíveis na reprodução e incorporação de uma sintomatologia característica desses quadros. O que se torna um problema, pois podem esconder principalmente via medicação as reais problemáticas das causas.

Em muitos partilhantes os medicamentos químicos trazem uma mudança, algum alívio imediato, os sintomas são controlados e se vislumbra uma alegria efêmera. Quando o efeito dos antidepressivos, dos ansiolíticos, dos antipisicóticos cessam, vêm à tona toda uma gama de sentimentos, pensamentos, represados paliativamente em função das drogas utilizadas. Esses medicamentos operam na parte orgânica, regulando o fluxo químico de neurorreceptores, dopam e intoxicam. É preciso buscar uma visão mais integral da pessoa, profundidade, dedicação, pesquisa no estudo de cada caso, observando-se suas peculiaridades.

Considero uma boa anamnese o primeiro passo, colher com calma a história da pessoa, suas singularidades, escutar suas queixas, contextualizando e fortalecendo a interseção. Dentro do Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o TOC por exemplo, aponta manias, compulsões repetitivas, idéias, pensamentos, imagens persistentes, dúvidas, medos - entre eles de contaminação pelo contato físico que causam sofrimento para a pessoa, prejudicando o convívio social. Nesses casos "agudos", pode ser necessário o uso da medicação, observando-se seus mecanismos de ação e possíveis efeitos colaterais. Contudo, deve-se ressaltar que esse comportamento acomete apenas 2% a 3% da população geral.

No caso citado no início deste texto, trata-se de uma jovem saindo da adolescência com todos os ritos de passagem para idade adulta. Fase em que são chamados a decidir o rumo profissional, pessoal, emocional. Sexualmente os hormônios estão em ebulição, namoradinhos à vista, não tem certeza se fica com o "bad boy" ou com o "mauricinho chato". Pais subempregados, com situação financeira delicada, que ainda não se deram conta que ela não é mais a menininha que brincava com as Barbies. Os amigos confidentes tomaram outros rumos, não há com quem trocar idéias aliviando conflitos. Mais a perda de um ente querido pelo qual nutria um grande carinho, e o episódio de um dos pais operado emergencialmente. Um senso de responsabilidade acima do comum pela família, pelo trabalho, pelos estudos. Não entra no grupo das "patricinhas", pois gosta do seu jeito de ser. Tem idéias próprias acerca do mundo, mas tem dúvidas e algumas certezas sobre sua nau da existência.

Evidente que haverá choques nessa estrutura. Vão pintar inseguranças, medos, dúvidas, pois a sociedade cobra uma afirmação social positiva dentro de padrões estabelecidos "para ontem", que não deixam o indivíduo viver plenamente o agora. Essa estrutura se encontra momentâneamente fragilizada, sufocada, em função das circunstâncias que se apresentam. É preciso amenizar os choques, reordenar, ponderar, desconstruir, reencaminhar novos trajetos, perspectivas, novos ares para navegar.

Dedicação, habilidade, compartilhar esse devir qualitativamente, aproximação, pesquisa de humanidade que se deixa ver. Ser terapeuta é uma arte perspectiva, surpreende, encanta é criação, vida, raios, terra firme, desertos e flores pelo caminho.

Desnecessário dizer que Janete não precisou de medicamentos para superar essa fase e nem estava com TOC. É preciso atenção para não alimentar diagnósticos precipitados. Não é preciso ceifar uma vontade de vida que busca se realizar. É preciso entendimento, que o entorpecimento seja pela plena existência com seus obstáculos, sofrimentos e alegrias. A vida não é perfeita como no mundo das Barbies e dar-se conta disso faz parte do crescimento, dos saberes que agora se desdobram em outras direções, mais livres, pois o rumo do leme está em tuas mãos, Janete. E eu na beira do cais-consultório aplaudo tuas conquistas!!!

Porto Alegre, setembro de 2007

Você também pode encontrar este texto no site: Casa da Filosofia Clínica

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Mistério de Narciso


Acesse o arquivo em pdf do artigo publicado na Revista Filosofia Ciência & Vida, em junho de 2007:
Mistério de Narciso

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O coração que bate no peito se tornou para você somente um músculo?

“Me sinto perdida frente à realidade. Parece em alguns momentos que é estúpido persistir. Estamos vivendo uma época muito difícil atualmente. Alguns artistas conseguem penetrar na ferida. Não quero só imitar a realidade, mas ter a decência de transformá-la em linguagem cênica. Temos a obrigação de superar o desastre".(Pina Bausch)

Estou tentando elaborar em palavras, signos limitados para falar de meu êxtase sobre o ensaio aberto que tive o privilégio de assistir da coreógrafa alemã Pina Bausch, em Porto Alegre, no último dia 06 de agosto. Foram três horas de rara beleza que jamais esquecerei.

Sempre acompanhei com olhar atento a caminhada dessa mulher e suas produções, saber do descrédito que muitas vezes passou, os medos que sentiu e sente diante da realidade. Num dos documentários sobre seu trabalho, afirmou lhe causar estranhamento as pessoas não sentirem medo, ou terem medo de ter medo, pois que é condição do humano. Em nossa trajetória de vida, podemos traçar uma linha e isso é pensamento meu em que há uma linha tênue quase invisível entre medo e coragem.

Nossa tônica em consultório são as existencialidades e o universo da coreografia “Crianças de ontem, hoje e amanhã”, atravessa de maneira notável e atual sobre essa mesma temática. E como é bom, necessário e gratificante para o nosso aperfeiçoamento ouvir um eco no campo das artes cênicas.

No ano passado, quando já se cogitava a vinda dela para Porto Alegre durante o festival “Porto Alegre em Cena”, me auto-agendei: iria de qualquer maneira e fui. Estar ali no Teatro do Sesi respirando Pina durante o ensaio foi algo indescritível e de uma beleza e sensibilidade tocantes.

Imagens-movimento vivos que nos lembram Bérgson, que em minha memória vão ficar nutrindo o meu ser produzindo já um outro em cada instante com um sabor de infância. O que ficou arraigado em nós da criança que fomos ontem? Hoje como está, por que veredas nos levam? Amanhã ela ainda estará em nós? De que forma? Ou já está deformada pelas vivencias nem sempre prazerosas que a vida nos impõe?

O que chama atenção também é a integração dos bailarinos, um não é nada sem o outro e o todo fica belo exatamente por isso. Mérito dela, deles, da companhia de dança Tanztheater Wuppertal que batem em nossas retinas demonstrando que é possível sim se fazer arte sem necessidade de estrelismos.

Como de hábito, esse trabalho da coreógrafa fala das relações, de como cada um está diante dessas janelas, com suas paredes móveis, cadeados, armários negros que nem sempre poderão ser abertos, pois se perdeu a chave que daria acesso a tudo isso.

Remete ainda a como estamos construindo nossos castelos de areia. No tapete da sala, talvez? Como levamos a areia para a construção? Estamos edificando sós ou com a ajuda do outro? Respeitamos quem não tem o dom da engenharia em si e apontamos caminhos? Ou já estamos encastelados, rígidos como paredes que a qualquer momento pode ruir com a chegada de uma onda?

Posso soprar uma nuvem para que ela se desloque e faça chover num outro lugar? Quanto do meu tempo estou dispondo para tentar estabelecer uma relação nova? Meio minuto? Ou seria melhor nem tentar?

Estamos preocupados minimamente com a qualidade das interseções? O coração que bate no peito se tornou para você somente um músculo? Ou ainda guarda aqueles prazeres doces da criança de desenhá-lo com uma flechinha o atravessando? E por que não desenhamos mais? Qual o traço, com que água estamos diluindo nossas dores, nossos medos? Você ainda beija e abraça?

Pina Bausch e seus bailarinos foram tudo isso e muito mais. Me lavou a alma, me deixou mais tranqüila. É bom ver uma obra de uma artista de referência para a dança atual, uma cabeça pensante, rica de sentimentos pela condição humana. Me fez refletir que quando se quer é possível tornar a vida uma arte no sentido mais nobre que essa palavra possa ter. Revisitar endereços existenciais, pesquisar, trabalhar é um instrumento poderoso, rico de saberes, quando temos olhos para ver e um coração para sentir e talvez isso faça toda a diferença num mundo onde a indiferença e o descaso nos afasta da criança que sempre está por ser descoberta deste ontem, hoje e amanhã.

Ao final do ensaio mais uma prova da simplicidade e do grupo, todos foram aplaudidos de pé e Pina Bausch “não apareceu” e nem era necessário pois ela já estava toda ali e foi levada para casa em muitos corações e mentes que irão sonhar, lembrar, suspirar como crianças recriando um novo mundo diante de tanta beleza.


Porto Alegre, outubro de 2006

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A internet na vida real

Não há erro mais comum do que pensar que os causadores involuntários ou o participante ocasional das grandes tragédias compartilham dos sentimentos apropriados ao drama que assistem". (Oscar Wilde, em De profundis)

Neste mês de agosto, um fato ocorrido em Porto Alegre, divulgado pela internet, jornais impressos e rádios locais, chocou a sociedade e chamou a atenção, principalmente, de terapeutas. Um jovem de 16 anos, através de um chat na internet, planejou dia, hora e local para cometer suicídio.

Enquanto o rapaz se preparava para colocar o plano em ação, a jovem estudante universitária Lindsey, de Toronto, no Canadá, tentava avisar a Polícia Federal brasileira sobre o fato. Ela participava, há alguns meses, do mesmo grupo de discussão que o rapaz freqüentava na rede. Nessas salas de bate-papo, falavam sobre música e outros assuntos, e Lindsey já começava a perceber pelos comentários que se tornavam cada vez mais sérios sobre o plano de sua morte. Sua preocupação aumentou ainda mais quando observou que ele estava em contato com outros grupos que apóiam o suicídio.

Não foi possível a polícia chegar em tempo. Em seu blog, ele anunciava que se mataria no dia 26 de julho e a partir das 11 horas começaria o processo. Às 14h18 min, entrou no chat que reúne simpatizantes desta prática pedindo ajuda, pois não tinha muito tempo e temia a chegada dos pais. Horas mais tarde, os demais internautas que acompanhavam o desenrolar do fato concluíram que o suicídio por intoxicação havia dado certo, pois o rapaz não havia mais feito contato.

Mais o que está por trás dos fatos e o que pode nos levar a uma reflexão? O que leva um rapaz jovem, inteligente, estudante, de classe média, com inglês fluente, músico, considerado genial pelos amigos a cometer tal ato?

Talvez porque falar dos verdadeiros sentimentos via internet seja mais fácil, não há um contato direto pessoa-pessoa. A expressividade maior ou menor vai depender do desempenho manifestado em frente à tela ou câmera, um olhar mecânico. Nesse quadro que esboçava, o rapaz às vezes demonstrava confusão, sintoma muito comum nos casos depressivos. Escrevia em códigos sobre seus sentimentos, como que “gritando” num apelo ao mundo virtual. Esse grito de apelo foi ouvido. Teve abrigo numa sala de bate-papo e fórum que discutem o tema abertamente.

Fazendo uma leitura informal dos fatos, observa-se uma estrutura de pensamento que, apesar da inteligência, estava fragilizada, exposta, aonde os problemas existenciais se confundiam com a relatividade da vida, apareciam como problemas mais constantes. Estrutura frágil que recebeu atenção de um grupo receptivo, um eco, rico em agendamentos massivos, o incentivaram a levar adiante o planejado.

Foi abastecido com dicas eficientes de como levar a cabo a intenção sem maiores problemas. E foi acompanhado, não estava só, até o desfecho, sua morte. No final da cena deste fato tocante, o último pedido: “Eu não suporto esse calor. O que eu devo vestir para tornar isso mais suportável? O QUE EU POSSO FAZER?? Pelo amor de Deus, alguém me ajude”.

Arrisco em minha leitura que o assunto último combina com o imediato, esse rapaz precisava de alguém que o ajudasse, mas não houve tempo para isso.

O nosso tempo anda cada vez mais raro, não é mesmo? Podemos diante disto nos questionar sobre que tipos de relações estamos estabelecendo no nosso cotidiano. Estamos nos dando conta, observando aquela estrutura do outro que está eclipsada lá atrás, gritando loucamente por ajuda? Quanto tempo levaríamos para reestruturar esse tipo de fragilidade? Um instante? Uma palavra? Um gesto? Um ano? Jamais?

Que espaço deveríamos dar a esse outro? Que lacuna foi essa que não se deixou preencher? O que leva pessoas em uma posição confortável a motivar uma prática de suicídio a outras pessoas? Como são esses sujeitos que para si não assumem a prática do suicídio, mas instigam outras pessoas a isso? Que vácuo há nas relações que não são efetivadas e que fazem com que os indivíduos não sejam devidamente acessados e nem se deixem acessar dentro ou fora da web?

São questões sérias a serem analisadas, questionadas, pesquisadas, apuradas diante da vida real que por vezes se confunde com a virtual. Até que ponto a interseção estabelecida na rede pode se mostrar segura a ponto de apontar direções, invadir, anular, confundir, desarmonizar, eclipsar uma estrutura de pensamento já fragilizada? E que novos encaminhamentos seriam possíveis na tentativa de lidar com problemas dessa nova natureza? Que “roupa teremos que vestir” para suportar mais essa dor?


Porto Alegre, setembro de 2006

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A percepção como prática filosófica

Não é só na clínica que devemos aperfeiçoar nossa maneira de observar. O fenômeno da percepção se apresenta a cada instante, quando estamos diante do outro. Esse outro, assim como nós, é um ser de plasticidade, diante da realidade do mundo. Cada pessoa possui um mote de significações que são expressas no cotidiano em gestos, odores, cores, falas, silêncios, etc.

Como bons observadores, podemos ficar atentos ao conteúdo que uma determinada mensagens nos traduz, como pode se dar a sua manifestação, qual a sua significação existencial, como habita o ser sendo parte integrante dele.

Merleau-Ponty fala em sua obra Fenomenologia da Percepção que somente a estrutura da percepção efetiva pode ensinar-nos o que é perceber. E quando conseguimos vislumbrar com melhor clareza esse complexo estrutural temos maior facilidade de compreensão de nós mesmos e por via e conseqüência do outro.

Cada sujeito possui um corpo que transita pelo mundo desde o nascimento até a morte, estamos instalados nos horizontes abertos pela percepção em maior ou menor grau e dela tiramos nossas representações e impressões subjetivas - base de nossa consciência perceptiva. Alguns jovens em consultório se utilizam de vice-conceitos como “tá ligado?” e “entrar na mente”; acho que eles têm razão. Cada pessoa possui um campo perceptivo e prático e seus gestos e expressões possuem um certo alcance dentro das circunstâncias em que estão inseridas e circunscrevem o seu domínio, através de um conjunto de objetos que para o sujeito lhe é familiar.

O mundo no qual estamos inseridos nos é dado a priori, como nos diz Kant, estamos diante da realidade, é do real que tiramos e experienciamos e com o corpo crio um sistema de abordagem sobre o mundo no transcorrer da vida.

No espaço clínico via interseção haverá uma exposição desse transcorrer na medida que escutamos e ouvimos a historicidade. Esse sistema estrutural é de troca intersubjetiva, fortalecido pela categoria relação estabelecida. Por aproximação posso ter uma visão mais clara de seu grau de abrangência entre seres presentes e vivos, abertos à natureza sensível com graus diferenciados de intencionalidade.

Aqui as variáveis observadas serão tão diversas, como diversas e singulares é a estrutura de pensamento de cada pessoa.

"Perceber é tornar algo presente a si com a ajuda do corpo, tendo a coisa sempre seu lugar num horizonte de mundo e consistindo a decifração em colocar cada detalhe nos horizontes perceptivos que lhe convenha. Mas tais fórmulas são enigmas a menos que a aproximemos dos desenvolvimentos concretos que elas resumem". (Marleau-Ponty, 1990)

Em cada estrutura subjetiva que se experimenta no mundo, na prática do dia-a-dia somos todos um pouco filósofos, uns mais despertos, outros nem tanto. Mas na jornada clínica que nos propomos a construir uma relação compartilhada podemos através da percepção motivar o partilhante à sua própria capacidade terapêutica via fenômeno perceptivo.

Muitas vezes é tudo o que a pessoa busca, aprimorar a consciência de si mesma numa troca enriquecida, dialógica, onde há quebras de barreiras na medida que visualiza o problema e partindo disso traçar novos rumos existenciais. Essas quebras de paradigmas muitas vezes apresentam efeitos graduais, é uma aprendizagem do próprio sujeito que se transforma, que muda sua forma de perceber a realidade, num movimento autogênico.

Nesse trabalho há ingredientes filosóficos da rara beleza, energia, sentimento, conexão e compromisso, vontade, disposição de se colocar a serviço do outro. Entra ai uma boa dose de compaixão, plasticidade como ações norteadoras de todo o processo clínico em constante movimento.

É filosofia na prática posta a serviço de situações aflitivas, como sofrimento e dores da existência na tentativa humana de minimizar, eliminar, mudar enfoques, dissipar traumas, desfazer estigmas, construir caminhos através de princípios e conceitos filosóficos que seguem em direção à natureza de um sujeito único.

"O filósofo é o homem que desperta e fala, e o homem contém em silêncio os paradoxos da filosofia, porque, para ser plenamente homem, é preciso ser um pouco mais um pouco menos do que homem”. (M.Marleau-Ponty, 1953)

Porto Alegre, agosto de 2006

Link relacionado:

Vídeo: Questões referentes à historicidade: http://www.acafic.com.br/blog/2007/11

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Sobre a anatomia do humano

Alguns autores falaram sobre esse processo como Nietzsche em Zaratustra: “É preciso ter o caos dentro de si para dar origem a uma estrela bailarina”. E, em muitos casos, isso pode ocorrer na medida em que situações sofríveis, caóticas, deixam algum aprendizado e se consegue ter entendimento de como foi gerado e de que forma é possível sair desse instante existencial limite.

David Hume, em sua obra Investigações sobre o Entendimento Humano, lembra que, assim como o artista procede, é preciso conhecer a anatomia do humano, assim teremos maior exatidão da “delicadeza do sentimento” alcançado através de um raciocínio correto. E diz também: “Sê filósofo; mas, em meio a toda sua filosofia, não deixes de ser um homem”.

A beleza da obra será a resultante dos procedimentos adequados, onde na prática haverá uma reordenação de determinada situação de aparência caótica. E se bem observado, estrelas irão dançar à sua frente como bailarinas, com uma coreografia, gerada por esse caos que passado conduz a uma leveza sem igual. “Só tem valor os pensamentos caminhados”, segundo Nietzsche. Os pensamentos caminhados e dados via interseção, que é a base da própria terapia em movimento, em processo gerador.

Um exemplo típico de caos existencial se dá quando um partilhante já chega com um carimbo de “Síndrome do Pânico e Depressão”. Essa criatura vem rolando por abismos, caminhos tortos, outras terapias, chega muitas vezes aos pedaços. Seu devir como ser humano está devidamente tipologizado, agarrou-se a isso como uma tábua de salvação, que só o empurra mais para baixo. A tipologia que ainda exerce um “fascínio” em muita gente, também é um bombardeio de agendamentos de incríveis proporções danosas.

Mas é colocar mãos à obra, terapia é também desafio e já sei que em muitos desses casos será preciso muito trabalho, onde a delicadeza será a tônica. A ferida está exposta, mas é preciso começar a desvendar esses meandros fragilizados, muitas vezes sustentados há anos por uma forte medicação que reproduz apatia.

Naquelas curvas do caminho essa pessoa estacionou existencialmente (“o que acha de si mesmo” quase inexiste e onde há algo, ainda está em choque consigo mesmo). Diria que é uma reconstrução compartilhada, o terapeuta é o arquiteto daquela linda construção que está totalmente abandonada, com sua estrutura em ruínas. Tijolo por tijolo, separa-se o que pode ser utilizado nessa repaginação de uma existência.

Dá trabalho, leva tempo, planejamento e mais planejamento clínico, estudo de caso, peça por peça, ambiente por ambiente sob o risco de tudo desabar. Até que se começa a vislumbrar pequenas transformações que todo esse processo gera o que pode se traduzir em uma nova fachada, paredes novamente sólidas, com bases refeitas, árvores no jardim, um córrego lá naquele canto onde só havia poeira, caos e limo. Águas límpidas a buscar novos trajetos redirecionados a uma nova sede de viver.

A pessoa começa a se posicionar existencialmente, se levanta e recomeça andar, é bárbaro, retoma sua epistemologia esquecida, encara suas buscas e passa a construir meios de realizar. Chama atenção suas novas tintas, o encantamento de seus pequenos progressos que havia pensado nunca mais alcançar. Já se acha capaz de enfrentar novos abismos sem pânico ou depressão. E, lá pelas tantas, tu recebes um telefonema e do outro lado está a estrela a dançar, pois conseguiu enfim, após anos de reprovação, passar em um teste, por exemplo. Que por muito tempo se julgara incapaz de conseguir, e essa foi apenas uma das vitórias que vem apresentando. Novas relações estabelecidas, quem não chegava ao portão por medo e pânico de enfrentar a rua, se aventura agora pelas avenidas da cidade.

Há mais buscas, expectativas, diante da vida que conseguiu pegar com as próprias mãos; passa a percorrer caminhos possíveis, agora livres de velhas armadilhas, através de encaminhamentos dentro de sua própria estrutura existencial agora refeita. Noto por vezes sombras atrás de suas costas, quando retorna quinzenalmente às consultas. Minha intuição me diz que começam a nascer asas e breve alçará vôo solo, sujeito de si, por outras paragens da existência. É preciso deixar ir. Seu trabalho foi bem feito. “A fórmula da minha felicidade: um sim um não, uma linha reta, uma meta...” (Nietzsche) Uma das minhas poucas certezas é o meu trabalho.

Porto Alegre, julho de 2006

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A importância do "como" na prática clínica

No exercício de ser terapeuta, importa mais "como" a "o quê" fazer. Não há fórmulas prontas, apriorísticamente, e para cada partilhante há de se descobrir um "como" abordar diferenciado.

A prática clínica, como as demais relações estabelecidas em nossa existência, deveria nos servir como conteúdo e bagagem para o aprimoramento pessoal. Toda essa caminhada em direção ao outro são instantes sublimes de onde podemos retirar elementos de crescimento interior riquíssimos. É um exercício do entendimento do outro e porque não de nós mesmos. Como sugere Ortega y Gasset: “Só se encontra o que se busca e o entendimento acha o que o amor procura (...) O amor busca para que o entendimento encontre".

Dentro da interseção terapeuta e partilhante, para que não ocorram entraves, e tudo flua naturalmente, é preciso uma postura elegante que leve em conta duas realidades subjetivas. E quando falo de elegância, falo de gentileza, amabilidade, cortesia, apuro no trato. É como uma composição aritmética entre sujeitos, uma fusão adequada de simplicidade, graça, que leva em conta toda uma consciência circunstancial.

Essa relação de abordagem valorativa entre “Eu e Tu”, como lembra Martin Buber, é um diálogo e, “será o testemunho originário e o testemunho final da existência humana”, dentro do contexto terapêutico. Como já coloquei em artigos anteriores, o ser humano é surpreendente e esse encontro da “surpresa” é o que me move na busca incessante de aprimoramento. É na minha leitura uma vivência de alma e de amor ao meu trabalho.

Estamos em movimento numa constante anamnese, como diz Platão (Ménon, 80 e 81), uma natureza: “E como toda natureza é congênere e a alma aprendeu tudo, nada impede que quem recorde uma só coisa encontre em si todo o resto, se tiver coragem e não se cansar na busca, já que buscar e aprender não são mais do que reminiscências”.

Aqui há muito de acomodação tópica, de ciclos de autogenia constantes, ora rápidos, ora lentos, que valem à pena serem observados com atenção.

Neste espaço do encontro único haverá muita diversidade, são situações de uma história de vida que vão sendo apresentadas ao terapeuta. Vão aflorar reminiscências existenciais, muitas vezes estacionárias, aquelas que podem parecer “boas” somente pelo costume e não pelo gosto da vida, com rigidez de padrões danosos e efeitos somáticos visíveis.

Padrões esses que fazem com que a pessoa passe pelos jardins da alma e desconheça a sua essência, pois se perdeu existencialmente e está na busca de entendimento desse processo.

Haverá cegueiras de olhares encobertos pela cortina da descrença, oriunda de perdas dolorosas. Que não deixa esses mesmos olhos captarem neste instante de vida que nos galhos de “dólar” planta tão comum em vasos e jardins, nascem micro-orquídeas de beleza inexplicável. E, lá pelas tantas, dentro do trabalho terapêutico há um retorno da visão que se verifica num brilho intenso de olhar e muitas vezes lágrimas de agradecimento, um retorno da boa condução do procedimento do terapeuta.

Haverá os que ao passarem por uma avenida movimentada de sua cidade, jamais perceberão sutilezas ou imaginarão dorsos de “cavalos de tróia” de aço que os espreitam em guindastes gigantes, à espera de soltar tudo o que existe de trancado, escondido dentro do seu dorso. E assim como em sua existência, há necessidade de uma esteticidade bruta, um choro convulsivo e urgente para aliviar a pressão do peito cansado.

Será preciso um carinho e uma calma redobrada para neste espaço clínico fazer recordar o eterno aprendizado do olhar, do redescobrir dos cheiros e apontar caminhos de acesso que se projetam àquela enorme imensidão de frutas que está na banca da vida à sua frente, feito um arco-íris de sabores a serem experimentados.

Vivenciando e espaço terapêutico, eu como aprendiz do outro, vamos pintando quadros e quadros, muitas vezes de molduras rotas, mas com figuras de contornos expressionistas que somos nós mesmos enquanto trocamos impressões sobre as tintas da vida que temos a nosso dispor.

Há aqui sonhos que se sonham em conjunto a serem decifrados em seus enigmas íntimos, repletos de conceitos e de princípios de verdade devidamente compartilhados.

Com que gesto e com que delicadeza devo externar que a pessoa se encontra em uma armadilha que beira a “estupidez” do quadro de Goia, onde dois homens lutam ferozmente em areia movediça? E é preciso para o seu equilíbrio um dar-se conta deste momento subjetivamente triste. Com segurança, sem dúvida, que só adquirimos pela prática diária e com procedimentos adequados a cada situação.

Como dizer ao outro que está num labirinto medicamentoso, enfiado até o pescoço, e que foi essa forma temporária que achou para anestesiar as vivências de memórias caóticas de ontem? E que hoje estou em tua presença, analisando num exercício atento tua estrutura de pensamento e vejo alternativas que sei que em breve verás pois tua lanterna aponta que estás a um passo disso e acompanho sem pressa esse desfecho?

Como demonstrar ao outro que há brasas em baixo de suas cinzas existenciais, que fazem com seu coração pulse, afastando o enfado depressivo, que fará com que reencontre o calor da vida. Que já vislumbro dentro do meu planejamento clínico que começo a traçar contigo?

Como terapeutas que "anjos" podemos ser e que responsabilidade nos invade cada vez que abrimos as asas sedentas em auxiliar, no correto espaço e tempo a cada ser singular? Que aprimoramento, fortaleza, leveza é preciso ter para demonstrar coragem nos disponibilizando para revisitar endereços existenciais que precisam ser desconstruídos e muitas vezes reconstruídos? Para que cicatrizem feridas e amenizem dores? Para que assim o partilhante volte a respirar ares e ande em novas direções de beleza pertencente a ele mesmo que ficou por tempos debruçado no varal da vida?

Nos estágios desse conviver em que acompanhamos traumas variados devemos escolher as palavras e o instante para que ocorra o encontro belo e profundo entre o "Eu e Tu". Assim atingiremos longe de qualquer superficialidade o outro mesmo. Aqui não posso tentar parecer ser mais ou melhor do que sou, isso não me tenta e isso torna essa relação verdadeira.

Eu sou grata por cada caminhada em que sou convidada a trilhar junto. Me refaço o tempo todo com meus partilhantes, são afinidades de alma que nos ligam, nos atraem respeitosamente e nos encantam com maneiras, gestos de cortesias mútuas.

As resposta às indagações que fiz vão sendo reveladas na medida que outra pessoa me chega e, de braços abertos, acolho-a para recomeçar a indagar e responder, trabalhar e novamente me surpreender.

"Aquele que imagina que todos os frutos amadurecem ao mesmo tempo, como as cerejas, nada sabe a respeito das uvas". (Paracelso)

Porto Alegre, junho de 2006

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Uma vontade de potência letárgica

Friedrich Nietzsche (1844-1900) sempre exerceu em mim uma fascinação. Sei que ele me acompanha e nestes dias em que somos obrigados a “dar um tempo”, os meus dados intencionais me levam e este antigo amor.

Por tê-lo feito um carinho, acariciado suas obras, antigos livros ainda do tempo da faculdade envelhecidos pelo tempo, eis que ele me surge em imagem viva, o próprio Dionísio. Acho que não por coincidência entre a leitura e divagações, assisti e recomendo um filme brasileiro (!) sobre este filósofo de uma sensibilidade fora do comum, que foi exibido pela Revista de Cinema da TV Cultura: “Dias de Nietzsche em Turim”, de Júlio Bressane. Com Fernando Eiras, Paulo José, Mariana Ximenes e Leandra Leal, filmado em 2002, o roteiro reconstitui o período entre abril de 1888 e janeiro de 1889, em que o filósofo alemão viveu na cidade de Turim, na Itália. Ali está exposto o Nietzsche com seus bigodes, sua ternura de pensamentos, seu andar de descobridor da alma humana.

Entre analgésicos, anti-térmicos, lenços e mais lenços de papel, xícaras de chá, xarope, que a gripe me impôs, abri com carinho minha alma para penetrar no universo do “Além do bem e do mal”. No livro encontrei várias partes sublinhadas a lápis e anotações que deram uma certa nostalgia.

A falta de compaixão pode levar à injustiça, no seu tempo, e ainda hoje, Nietzsche passou e ainda passa por constrangimentos, graças aos homens que permanecem em torres de marfim alimentando suas “delinqüências” e “debilidades enfermiças”. Fico pensando na atualidade do pensamento de Nietzsche, nestes tempos imprudentes, de homens mascarados, “rufiões” que tecem suas teias, tentando pronunciar suas verdades como a última palavra: “Como se a verdade fosse tão ingênua ou tão torpe que tivesse necessidade de defensores"!

O martelo bate forte, mas há passagens em seus pensamentos, palavras que respiram paixão e me levam a um jardim. E febril sonho: “Não esqueçais o jardim, eu vos rogo, o jardim com suas cancelas douradas. E cercai-vos de pessoas que sejam como um jardim ou o reflexo do sol na água, pois quando cai a tarde, o dia não é mais que lembrança. Escolhei a boa solidão, a solidão livre, a que vos permite seguir sendo bons em qualquer sentido”.

Estes dias em que fui obrigada a me “isolar” do mundo, voltei a encontrar esse velho e conhecido amigo. Dancei com seu Deus, tive visões elevadas que mais pareciam loucura e nem imagino como isso soará a ouvidos incompreensivos. Mas valeram os delírios febris que me fizeram ver os abismos e enfrentar alguns monstros, pois que fiz por amor, e portanto, está “além dos limites do bem e do mal”.

Foram dias de uma certa angústia, mas com matizes interessantes e uma sensação gostosa, quente com odores de camomila, limão, hortelã e mel. Essa solidão voluntária traz uma certa independência, uma audácia, um aventurar-se de si mesmo. Num labirinto de perigos onde por vezes se vê a sombra de um minotauro que está escondido na caverna de nossa consciência.

É um se deixar levar numa vontade de potência letárgica, corpos opacos, estrelas, uma só cor que apresenta todas as cores. É, Nietzsche foi, como sempre, meu fiel companheiro, uma boa solidão a dois, que só a nós dois revela sua significação. Matei um pouco a saudade e de alma renovada retorno as andanças do mundo.


Porto Alegre, maio de 2006

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Instantes necessários

"Melhor aceitar a explicação mais simples, mesmo que não seja simples, mesmo que não explique muita coisa. Não precisa luz forte, uma luzinha basta para a gente viver na estranhidão, basta que seja uma luzinha fiel". (Samuel Beckett / Malone Morre)


Passamos pela vida, onde é inevitável algumas vezes que nos sintamos à beira do abismo, mesmo que seja por instantes. São situações limites que retratam a nossa natureza frágil.

Embora esse tempo descrito como “instante” possa subjetivamente parecer quase eterno, denso, há uma suspensão dos sentidos, algo surreal. Como diz Beckett, andamos às cegas, num mundo louco, no meio de estranhos.

Mas esse não é para ser um artigo cético, nem niilista, embora estes adjetivos perpassem por vezes a nossa existência, somos humanos...

E não é uma sensação de todo negativa, pode se configurar numa antítese de um novo ciclo dialético que aponta seu fim, para recomeçar num contínuo, novamente. São fenômenos inesquecíveis, ricos, assustadores, que podem se tornar belos.

Acredito que uma certa magia se faz aparecer muitas vezes nas situações limites, são cores, espectros, uma “estranhidão”. Basta uma luzinha fiel para clarear e vermos ao longe onde aponta a seta no caminho.

Nestes instantes necessários, a priori não sabemos onde iremos chegar. As “certezas” que terei a posteriori poderão mostrar alguma verdade encoberta, presa em uma armadilha, muitas vezes melhor do que a antiga aparência.

Talvez um novo paradigma, onde aprendemos a romper com expectativas aprisionadoras. Como uma nova autorização para mim mesma, sem padrão, ou fórmula pronta, está em devir, em constante movimento.

Talvez esse seja o instante-já que nos falava Clarice Lispector no livro Água Viva: “Meu estado é o de um jardim com água correndo. Descrevendo-o tento misturar palavras para que o tempo se faça. O que te digo de ser lido rapidamente como quando se olha”.

A impossibilidade, a tensão temporária nas situações críticas, abre-se ao invento de um novo futuro. No instante de transição somos surpreendidos pelo novo, que se deixa ver. Esse inventar-se, é um voltar-se ao ser natural que não pode ser outro, que se indaga sobre sua verdadeira essência “louca”, profunda e livre que dá sentido à existência.

Como não sou uma nonagenária como o ancião Malone de Beckett, ainda não vivi todo o vivível. Acredito que essas circunstâncias limites nos servem para dizermos delas, de como as vivenciamos, numa tentativa de troca. E talvez esse instante existencial não possa ser totalmente traduzido em palavras, pois elas são limitantes. Há aqui um desbravar de limites que talvez seja melhor significado em uma pintura, tais as matizes que esse fenômeno produz no espírito. É como uma realidade além da palavra, anterior à realidade, é um silenciar, que antecede o indizível.

Como aquele pequeno lume, busco fazer ver esta vertigem que vale à pena ser “captada”, um objeto já ilusoriamente “perdido”. Que já é outra realidade, agora reconhecível em mim.

As explicações para a vida são simples ou complexas, talvez para alguns, melhor expressas para mim com as cores do coração. De lá vem a luz que mistura tintas, que após as trevas, volta a brilhar no esplendor necessário.

Esse dado de vivência singular está além dessas palavras. Nós, quando atentos, a reconhecemos, sabemos captar, o instante entre a palavra e a mudez.

Como Clarice Lispector com propriedade afirma no seu livro A paixão segundo G. H. – “Eu tenho à medida que designo - e este é o esplendor de se ter uma linguagem. Mas eu tenho muita mais à medida que não consigo designar. A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscá-la – e como não acho. Mas é o de buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é meu esforço humano. Por destino tenho que buscar e por destino volto com às mãos vazias. Mas volto com o indizível. O indizível só poderá se dar pelo fracasso da minha linguagem. Só quando falha a construção é que obtenho o que ela não conseguiu”.

Mas fica a tentativa. A realidade por vezes se mostra sombria, mas se há sombra é porque há em algum ponto um foco de luz, que nos alegra, aquece, uma luzinha fiel. Acredito no compartilhamento dessas experiências que expõe nossas fragilidades, mas encanta, legitima e fortalece nossa condição humana.


Porto Alegre, março de 2006

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A prática clínica não é como um comprimido efervescente



Assim vai rumo a ti a corrente das coisas. E como as taças mais altas dos chafarizes transbordam sempre, como se madeixas de soltos cabelos, para as mais baixas: tudo assim cai em ti, em tua várzea, quando as coisas e as idéias transbordam.


Como escreveu Rainer Maria Rilke em O Livro de Horas é preciso ter espírito atento para ver e sentir este transbordar de coisas e idéias – e o espaço terapêutico propicia esse movimento. A diversidade de pessoas que chegam à clínica é infinita, cada ser é um pequeno universo a ser desvendado. Variadas correntes, por vezes represadas por barreiras existenciais. Mas para tudo na vida há uma hora, um tempo.

Pelo que tenho observado, acredito que a pessoa, o partilhante, tem que estar disposto a fazer terapia, caso contrário, por melhor que seja a interseção ou o preparo por parte do Filósofo Clínico, não haverá continuidade no trabalho. Mas o que ocorre com essa pessoa para não querer se entender melhor, descortinar suas problemáticas existenciais e tentar compartilhar uma nova caminhada?

Do meu ponto de vista, várias questões, uma mencionada na introdução desse texto: fecharam as comportas, não consideram o momento adequado. E lembro aqui de Sartre: “O homem está condenado a ser livre”. E dentro desta liberdade, a optar se quer se decifrar ou não. Vou elencar algumas possibilidades verificadas em clínica.

O partilhante muitas vezes nos chega trazido por alguém próximo, que sofre também quase sempre com problemas relacionados à interseção de estruturas de pensamento. Os motivos têm origens diversas, assim como suas complexidades.

Pode acontecer de topar fazer terapia para ver se há fortalecimento de uma relação desgastada, na tentativa de salvá-la. Mas é uma contra corrente e, lá pelas tantas, abandona, pois à medida que há uma exposição de sua história, a pessoa se dá conta que os problemas não são poucos e precisará fazer uma espécie de “assepsia” demorada, suave, em suas feridas, para colocar a casa da existência em ordem.

Muitos acham que não vale à pena. Preferem continuar vivendo como estão, apesar destes ferimentos existenciais estarem gerando um mal estar subjetivo, que passa a se refletir no dia-a-dia. E assim preferem continuar a abrir outras feridas de maior dimensão até chegar ao limite do suportável.

Ao relatar sua história de vida, o partilhante acessa velhos baús, caixinhas esquecidas pelos cantos para então abri-los com a chave que a cada um pertence. E aqueles velhos sentimentos, conceitos, vivências, relações, à medida que são relatados, são revistos. As nuvens do pensamento ficam densas, ventos fortes levantam a poeira. Isso dá uma mexida na pessoa, mas tudo pode ser repensado com maturidade, serenidade, e cabe ao terapeuta conduzir esse processo. Podem se formar ondas gigantes como conseqüência, ou um soltar de amarras de curso incerto, na tentativa de uma reacomodação estrutural.

Esse movimento é muito comum nos casos de uso de drogas, com as fases da dependência orgânica, a desintoxicação, onde são usadas tantas outras químicas (mal necessário), a readaptação social, o trabalho terapêutico, etc. Por essas complexidades implicadas, casos como os de dependência química me parecem uma colcha de retalhos, ou a formação de uma grande teia, onde a aranha não cansa de tecer. Quando nos é oportunizado conduzir esse processo, deve haver muita calma, cuidado, atenção a cada momento. Acredito num reencaminhamento, em uma melhora subjetiva, mas a reincidência é muito comum.

A prática clínica não é como um comprimido efervescente. É um trabalho de muito tempo, de delicadeza e paciência. É um mexer de águas que falam de emoções e vivências profundas que por vezes parece que não conseguiremos atingir. A recompensa está quando há resultados positivos, que fazem valer nossos esforços.

Outras vezes, a pessoa está disposta, veio por conta própria, quer saber o que está lhe causando um mal estar subjetivo. Observando, o filósofo clínico constata que não há grandes choques estruturais. A pessoa precisava na prática ser ouvida, em sua singularidade, expor suas problemáticas, sem rotulações, sem interrupção. Isso faz toda a diferença. Ouvir, não agendar.

Muitas vezes, ela mesma precisa se ouvir, se encontrar consigo mesma, crescer e tocar a vida em frente. Pois no seu cotidiano não havia espaço para que isso se desse. Pode-se detectar a melhora: a pessoa começa a se permitir, a ser o sujeito do seu próprio destino, melhora a sua auto-estima. É fascinante observar a transformação, essa metamorfose por vezes lenta, mas tão significante que ditará os novos rumos a seguir. A pessoa só precisava de um novo sopro, um novo vento.

São essas pessoas que quando nos damos conta, ligam depois de algum tempo, um final de semana qualquer, para relatar suas novas conquistas e agradecer por ter se deixado compartilhar. Já se encaminharam profissionalmente, estabeleceram novas relações, efetivaram suas buscas, etc. E a vida segue seu curso, com maior leveza.

Mas há outros partilhantes que chegam pensando que somos gurus, místicos, a palavra filosofia exerce este fascínio. Pensam sermos possuidores de poderes extra-humanos e que resolveremos tudo em algumas sessões e num passe de mágica. E aqui não vai qualquer crítica a esses profissionais, só que nós, filósofos clínicos, temos uma forma diferenciada de condução em clinica.

Após explicarmos o funcionamento de todo o processo, acham interessante e começam a terapia. Mais adiante, já utilizando submodos, acontecem os reveses, quase uma surpresa. Quando se dão conta de suas fragilidades ou do quanto possuem de barreiras que colocaram ao seu redor, muitas vezes, afastando as pessoas que dizem amar, somem por tempos, pois é difícil digerir tudo isso. Assim como não é fácil se dar conta, por exemplo, de se estar reproduzindo um padrão considerado odioso, ou então que se está em solidão, inversiva total, se afogando em pré-juízos ultrapassados. Almejam conquistas por vezes tão distantes que se esquecem de viver o agora e tudo isso faz doer e se fechar numa enorme concha, submersa, numa armadilha conceitual.

Com tudo isso, as pessoas buscam serem amadas, apesar de seus ranços diários que ninguém ao seu redor consegue mais suportar e as alegrias que foram sendo deixadas pelo caminho. Fizeram um enorme esforço ao procurar a clínica, havia devastado parte do jardim da existência, num emaranhado de armadilhas de conceitos e atitudes vãs. Talvez nunca mais apareçam, para um muito obrigado, por terem conseguido lá pelas tantas fazer uma pequena recíproca de inversão, que era tudo que precisavam para começar a ver a vida numa outra perspectiva.

Mas o ser humano é complexo, apaixonante por isso mesmo, com suas vicissitudes, seus limites, seus sonhos, sua disposição de tentar uma melhora subjetiva. Neste universo terapêutico serão muitas as surpresas, muitas idas e vindas, correntezas de humanidade, belas, intrigantes.

Tudo pode acontecer neste espaço de clínica, até os que virão um só vez, para dizer que tentaram, mas que acabam optando por um remédio, um paliativo, um anestésico qualquer para que amenize suas dores existenciais, por hora. Até que a ferida novamente se exponha, dilacerante, como correntes de águas turvas por anos represada. Caberá a opção, livre, de dar um passo ousado em direção ao universo terapêutico ou de permanecer na dependência de bandagens que impedem a percepção de questões que causam os incômodos subjetivos.


Porto Alegre, outubro de 2005

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Vice-conceitos sobre cascas de limão



Vice-conceitos sobre cascas de limão Sabe aquele ditado, “se me derem um limão, faço uma limonada”? Há quem faça. Durante uma existência, uma vida, as variáveis desse trilhar são muitas e, por vezes, incertas. Em algumas ocasiões, só temos um limão para fazer essa limonada. Ótimo! “Sorvemos aos poucos” e vamos “tocando o barco”.

Mas e se, após a limonada, você tiver que se “virar” por um tempo “x” somente com os restos (a casca e o bagaço) - e sim, isso acontece! Há pessoas que passam por períodos de extrema fragilidade em seu existir e precisa tirar justamente “da casca e do bagaço” um novo bálsamo para seguir adiante. Algum elixir qualquer que dê sentido a tudo.

Esses períodos de fragilidade são pontuais, fazem com que os pratos da balança da existência oscilem tão diferente do usual, que nos sentimos fora de compasso, sem “equilíbrio” momentâneo. Isso pode ocorrer quando na vida somos surpreendidos por uma demissão que não se previa, perda de alguém querido, uma traição, um acidente, uma tragédia, enfim, situações que podem abalar nossa estrutura.

Mas tenho tido o privilégio de ver nessas gentes, uma força que faz dessa fragilidade, criação. Pegam a casca seca do limão e fazem um chá. Que vão bebendo aos pequenos goles, com esperança num “arfar de peito sôfrego”. Essas estruturas existenciais ricas são encontradas nos tidos como “marginais”, que se encontram às margens do mundo. Gente que como cada um de nós um dia na vida já se sentiu em abandono, à margem, costeando o rio. Um abandono que faz com que percamos o brilho, mas nunca a luz, pura, regeneradora.

Deste rio podemos tirar a água para o chá, um ritual de gestos de incomum beleza.

Há pessoas que possuem essa certeza de que a casca do limão ainda está lá, à espera, para uma futura infusão. Elas acreditam que, após uma queda, é uma questão de tempo para “firmar as pernas”, “limpar o pó dos joelhos”, “enxugar as lágrimas” e retomar com novo vigor o caminho.

Que experiência maravilhosa sentir o aroma desse chá, poder acompanhar, ali ao lado, esses movimentos, todo esse processo do “se refazer’, do “soltar as amarras”. É quando se percebe um novo brilho no fundo do olhar, um andar firme, uma utopia por realizar e um sorriso que a alma deixa transparecer como um espectro de um já novo viver. Um novo sopro de vida que ditará o caminho a ser seguido.

Limão limonada, limão chá, basta um passo, um sim nesse querer possível. Com olhos atentos, sentados, ali juntos, face a face, podemos compartilhar na xícara ou no copo o que a vida tem para oferecer.

A relação terapeuta e partilhante é doação recíproca, é andar pelos meandros do ser, vislumbrando diversidades. Não há estranhamento, mas descoberta. Esta riqueza do ser humano enternece, recompõe as energias. As gentes são uma surpresa a cada encontro, e com elas sigo a buscar suas essências múltiplas numa vigília intensa, muitas vezes em um silêncio contemplativo.


Porto Alegre, setembro de 2005

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Pacientes terminais

(Homenagem ao meu pai Carmelindo, que partiu em janeiro de 2003, deixando muitas lições)


O ser humano que se submete à terapia durante uma fase de doença deve ter atenção redobrada pelo terapeuta. Essas pessoas, em vários estágios de acompanhamento, poderão ter momentos de agitação positiva, quando determinado procedimento médico sai bem, mas facilmente podem entrar em depressão, caso o quadro clínico se agrave.

O neurologista Oliver Sacks coloca em um de seus livros que não é a pessoa que tem a doença, mas a doença tem a pessoa. Sim, a doença monopoliza a pessoa tornando sua vida diferente da que costumeiramente vinha levando. Isso faz com que, além da doença, ela tenha que remanejar totalmente seus hábitos.

Deverá tomar mais cuidado com a alimentação, controlar pressão, febre, dores estranhas, adaptar-se às medicações observando regiamente seus horários; fazer visitas freqüentes ao médico para verificação de seu quadro clínico. Poderão ser solicitados mais exames de controle, tais como: ecografia, tomografia, ressonância magnética, radiografia, exames de sangue, colesterol, triglicérides, ácido úrico, eletrocardiograma de esforço ou em repouso, glicemia de jejum, densiometria óssea e tudo mais dentro das circunstâncias – para alguns, uma verdadeira revolução existencial.

Poderá ter que passar por sessões de quimioterapia, hemodiálise, transfusões de sangue, internações, etc. Todo este processo de dominação da doença fragiliza, a pessoa fica exposta e luta na tentativa de qualificar sua vida de maneira a amenizar o sofrimento imposto.

Uma das coisas que me chama atenção é o desconforto que alguns partilhantes expressam ao serem rotulados nos hospitais de “pacientes terminais”. Considero o enquadramento desnecessário dentro desta circunstância já tão dolorosa. Este termo empregado na medicina me parece significar que a pessoa está ali pacientemente esperando um fim, quem sabe o trem da morte, o ônibus, o avião ou o navio para o além.

Pela minha experiência nestes casos, o que presencio das pessoas é justamente o contrário: vejo pessoas muitas vezes consideradas “desenganadas”, lutando, colaborando, com esperança, fé e dignidade, acreditando vencer a doença que limita sua existência.

A doença quando toma a pessoa pode torná-la mais frágil emocionalmente, mas não menos atenta - seus sentidos percebem tudo. Há um exercício de adaptação à nova realidade e devemos respeitar o tempo subjetivo de cada um. Podem ocorrer variações de raciocínio em função da medicação e do próprio estado clínico.

Pensem, não é fácil para a pessoa largar sua casa, seus afazeres, e de pronto passar a conviver em um quarto de hospital. Esse período causa tensão e expectativa, tanto na pessoa, como em seus familiares. Há toda uma mudança sensorial. Num quarto estranho, o espaço que ocupa é a cama, passará a ver quase tudo por este ângulo. Os sons oriundos dos aparelhos de monitoramento serão constantes e diferenciados.

Estará às voltas com bolsas rubras de sangue em contraste com a transparência do soro, sem falar nas seringas coloridas pelas mais variadas medicações. Tomará comprimidos redondos, compridos, chatos, com risquinho no meio, sem falar em pomadas contra os hematomas, cremes para escaras, anti-séptico bucal, fraldas, toalhas, comadres, escarradeiras, tomadas de campainhas que acendem e apagam conforme a urgência, abocates, cateteres.

Esta pessoa poderá precisar ser sondada, caso não consiga urinar, e em outros casos, pode passar por lavagem para facilitar a excreção, oxigênio para facilitar a respiração, entre outros procedimentos. Junte tudo isso e veja que fragilidade, que mudança de cenário.

É preciso muito tato e competência para acompanhar pessoas com enfermidades. Lidamos com a vida que ali pulsa agora de maneira diferenciada e o nosso proceder deverá acompanhar esta nova situação. O saber ouvir sem interromper e o toque físico ficam em evidência, se tornando ferramentas fundamentais. No decorrer do processo haverá momentos de revolta, desespero e momentos de lucidez, gratidão e retribuição.

A convivência e o trabalho com essas pessoas abrange também o contato com familiares, amigos de suas relações, onde podemos colher informações sobre seu histórico de vida, que nos darão subsídios de maior abrangência e servirão como recurso para o trabalho terapêutico.

Pessoas em estágio mais avançado de doença não sentirão mais um pleno bem-estar físico, terão dificuldades de locomoção, para se alimentar, de articulação de palavras. É preciso aproveitar os momento de melhora e trabalhar, na medida do possível, em questões que sejam de seu interesse, colhido em seu histórico, que a envolvam e possam amenizar o sofrimento, trazer um pouco de conforto e, quem sabe, alegria. As pessoas que estão na fila de transplantes também têm suas peculiaridades, uma esperança maior. Buscam numa batalha diária manter-se bem física e emocionalmente. O dia seguinte para estas pessoas é uma incógnita, mas lutam bravamente. Passam horas em aparelhos que fazem a função do órgão debilitado para que seu organismo como um todo possa se manter estável.

Se estes seres humanos estão mais próximos da morte por não terem uma saúde perfeita, não vejo necessidade alguma de serem lembrados disso a todo instante, sendo rotulados de “pacientes terminais”. Ninguém mais do que eles mesmos sabem, têm consciência de seu estado e das conseqüências que a falta de saúde impõe a si, a seus familiares e a todo o seu mundo existencial. A doença tem essas pessoas, é preciso tratá-las com todo carinho, delicadeza, atenção e respeito, ingredientes fundamentais para um bom processo terapêutico.

Porto Alegre, março de 2004

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Quando as emoções são determinantes

As emoções englobam os estados afetivos, falam dos sentimentos dos homens – e aqui me refiro aos seres humanos, sem distinção de gênero – e de como se estruturam internamente frente às circunstâncias que a vida impõe.

Este tópico se salienta em consultório, quando é parte determinante da pessoa que chega, pois fica bastante evidente, principalmente quando aparece em forma de esteticidade bruta - um choro, lágrimas que brotam em silêncio, ou de maneira compulsiva, aos soluços, misturadas com esboços de risos, há uma variedade de características, de acordo com a singularidade de cada um. Existe o choro que se deixa ver e o choro que não se vê, mas que fica lá dentro, velado.

Mas quero me deter numa visão mais ampla das emoções humanas de um modo geral, trazer para o cotidiano, aproveitando esta bagagem que a função de terapeuta me proporciona.

Logo que nascemos, o choro é sinal de vida. Se o recém-nascido de imediato não chora, há o “tapinha” intencional, para que o choro e as demais funções se efetivem.

Nos primeiros anos de vida, o choro se caracteriza por ser um sinal de que algo precisa ser suprido, seja matar a fome, espantar o frio, anunciar uma cólica, receber uma massagem, ou fazer uma “manha” para ganhar um colinho gostoso.

Na medida em que amadurecemos, nos emocionamos com maior ou menor intensidade diante das mais variadas situações, que podem ir das boas gargalhadas ao choro no cantinho.

Para Nietzsche, o homem foi compelido a inventar o riso para disfarçar a dor que corrói o espírito e o faz sofrer. Em Zaratustra, ele fala da emoção do riso em relação à verdade: “E que seja tida por nós como falsa toda a verdade que não acolheu nenhuma gargalhada”.

No campo das artes, Van Gogh, em suas cartas ao irmão Théo, fala de seus sentimentos: “Ainda que freqüentemente eu esteja na miséria, há contudo em mim uma harmonia e uma música calma e pura. Na mais pobre casinha, no mais sórdido cantinho, vejo quadros e desenhos. E meu espírito vai nesta direção por um impulso irresistível”. A miséria maior sofrida por Van Gogh foi não ser apreciado e valorizado em sua época, levando-o em um momento de depressão e tristeza profunda a decepar a sua própria orelha.

Quantas vezes pela vida, por falta de compreensão de nossas idéias e objetivos, não nos decepamos ou somos decepados aos poucos. O sentir-se ignorado, colocado à margem, traz em sua companhia muito de frustração, tristeza como uma faca afiada que rasga as entranhas dos sentimentos.

Poderia discorrer neste artigo com as mais variadas citações de inúmeros autores dos famosos da literatura mundial, aos mais populares, pois muita gente já se debruçou sobre o tema emoções. São por elas que no decorrer da história da humanidade muito se escreveu, filmou, dançou, encenou, pintou, cantou, falou, se viveu e se morreu por algumas delas.

As emoções são estas sensações íntimas, que brotam do corpo e da alma, onde depositamos nossos desejos, alegrias, aflições, temores e prazeres – são parte integrante de nossa caminhada de vida. E sendo um tópico determinante na forma de estruturação de uma pessoa, esta travará lutas com a própria razão, na tentativa de tradução que estas sensações emotivas trazem. Neste caso, lembre: “O coração tem razões que a própria razão desconhece”.

Algumas pessoas administram bem seus estados afetivos, usam de recursos próprios de ação (submodos), significando-os de forma mais amena. Outras podem sentir perturbações quando algum fenômeno emotivo se impõe, não sabendo como lidar com ele, o que pode levar às mais variadas formas de somatizações.

Sim, o corpo fala de suas emoções, e por vezes mais do que as palavras por ele emitida. A soma das sensações corporais forma um complexo dinâmico de expressões emocionais. Como bem salienta Merleau-Ponty, o corpo é um eu natural, sujeito da percepção, pois com ele transitamos no mundo. Partilhantes que sofrem com desestruturações ligadas a emoções poderão ter dificuldades para conseguir se alimentar, podem ter náuseas e baixa de peso, e, por vezes, ocorre o inverso: passam a se alimentar com excesso e ganham peso. Poderá haver hiperatividade mesclada com estados de apatia; longos períodos de sono ou insônia e, sem dúvida, muitas lágrimas. Todos estes fatores devem ser levados em conta, pois tratamos o partilhante como um todo integrado, plástico.

Os homens choram também por suas decepções, por seu tempo perdido, por seus passos em falso, por suas conquistas, pela falta de perspectiva e riem igualmente em seus cultos e ritos. Choram a perda de um ente querido, choram por ganhar um campeonato, choram de raiva, de dor, choram de alegria diante de uma paisagem, de um poema, choram suas relações desfeitas, choram pela volta de um filho, choram pela cura de uma doença, choram por estarem vivos, pois, neste caso, as emoções como um todo sustentam sua existência.

Momentos tristes e momentos alegres são períodos, estados emocionais, que a vida impõe. Uma citação de Borges já lembra: “Não existe felicidade; há isto sim, inúmeros momentos felizes”. Quem sabe por isso choram os homens?

Mas o importante é administrarmos estas súbitas surpresas, esses momentos que fazem parte da vida, estes sentimentos de alegria, tristeza, prazer e dor que são efêmeros, passageiros e que nos fazem refletir sobre a própria existência e medir o grau de importância que cada um destes sentimentos suscita.

Respeitar “o como” estas emoções são trazidas ao consultório é a tônica de todo o processo clínico. Há os que dirão que “homem não chora” (agora sim, uma referência ao gênero masculino) e de repente temos um homem/menino diante de nós a chorar copiosamente. Acolha, deixe que flua este engasgo que pode ter tornado a vida dessa pessoa um inferno, por nunca ter se permitido chorar. Acompanhe a transformação e a sensação de alívio em seu rosto, depois de ter alcançado mais um lenço de papel a este ser que agora parece estar em êxtase e livre para seguir em frente sua vida, despido daquele fardo que comprimia o peito.

Observe os seus gestos, como já se reclina melhor na poltrona do consultório e como seus movimentos corporais se tornam mais lânguidos, deixando de lado aquela rigidez dos primeiros encontros. Sinta que ao final da consulta já passa um calor diferente na despedida, olhe no fundo de seus olhos e veja um novo brilho a refletir a vida.

Em consultório, tenho observado que as emoções possuem um destaque dentro da estrutura humana. Quando este tópico se encontra problematizado, em choque com outros, causa ao partilhante um desconforto muito grande, quase insuportável. Quando atentamos para esta pessoa, temos a impressão de “terra arrasada”, tudo parece estar fora do lugar, e na realidade está. Tudo está mexido por dentro e por fora, o que se deixa ver não nos dá outra impressão. Esta pessoa está procurando desesperadamente colocar ou dar uma nova ordenação aos seus sentimentos e pensamentos.

A cada consulta, começa a se descortinar todo um conjunto de circunstâncias sofríveis geradoras dos conflitos existenciais. Levando-se em conta o tempo subjetivo, as características próprias, com o fortalecimento do diálogo, via interseção se observa aos poucos um processo de estabilização onde os “nós” começam a ser desfeitos.

O bem-estar que se verifica neste sujeito a cada encontro te dá a certeza de que o processo de terapia está atingindo os objetivos a que se propõe. Aguarde e verás as novas transformações que ocorrerão a este sujeito que se deixou ver e que a teu lado se permitiu desabafar, compartilhando contigo este instante único de sua existência.


Porto Alegre, setembro de 2003

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Sindrome da Solidão Aguda Severa e as visões existenciais de Kierkegaard

Nestes tempos de guerra e epidemia que enchem os noticiários e os jornais, a maioria das pessoas não se importa com o que está acontecendo no seu próprio quintal. Falo sobre o que tomei a liberdade de nomear como “Sindrome da Solidão Aguda Severa” (ou SSAS) e, creiam, é uma epidemia devastadora.

Não só eu, como outros colegas filósofos clínicos, temos trocado idéias sobre este tema que é freqüente nos grupos de estudos de casos clínicos e em workshops – a solidão.

A “SSAS”, chega de mansinho, se instala e começa a causar danos. Como naquela música do Alceu Valença: “A solidão é fera, solidão devora, é amiga das horas, prima-irmã do tempo e faz nosso relógios caminharem lentos, causando um descompasso no meu coração, solidão”.

Há quem opte pela solidão, como refúgio para reflexão e descanso, mas não é desta situação que estou falando.

O que tenho visto e escutado em consultório, no atendimento à domicílio ou em hospitais, diz dessa solidão de pessoas que se sentem completamente sós, e são levadas a um estado de angústia que causa mal-estar.

Kierkegaard já dizia que “a angústia e o nada marcham continuamente juntos”. Concordo com ele, pois esta sensação de vazio, esse nada, objeto da angústia, por vezes invade a narrativa de muitos partilhantes, trazendo em seu bojo o tema da solidão. São olhares vagos, uma sombra de desespero no ar, como uma vertigem em uma busca de libertação.

O que vejo diante de mim são mulheres que abafaram suas buscas para criar filhos, auxiliar maridos e, quando se dão conta, nem de respeito são dignas. Estão com quase cinqüenta anos, isoladas, atrás do tempo perdido. E como “nenhuma perda pode passar desapercebida”, segundo Kierkegaard, devemos estar atentos.

São adolescentes completamente deslocados existencialmente, mal compreendidos e amados, por terem feito opções profissionais, sexuais, existenciais que não agradam às famílias e são postos à margem dela, muitas vezes se dirigindo ao mundo das drogas como única alternativa. “A juventude vive na ilusão, esperando dela e da vida o extraordinário”, ainda Kierkegaard.

São homens confusos em seus papéis existenciais, que reproduzem os mesmos modelos a que foram submetidos em sua criação. Sentem desconforto, não se dão conta, vão se afastando das criaturas que lhe são queridas, por conta de pré-juízos torpes. Muitas vezes, trazem seus filhos pela mão, como se neles estivesse o centro do problema. “O homem desesperado não faz portanto mais do que construir castelos no ar e bater-se sempre contra moinhos de vento”, apontou Kierkegaard.

São velhos, asilados, confinados, ou depositados no quartinho dos fundos ou em instituições onde ficam a relembrar com saudade, os momentos onde havia companhia, em bailes, natais, aniversários, etc. “(...) nos velhos a ilusão está na sua maneira de recordar a mocidade. Uma velha mergulha, tanto como uma rapariga, nas ilusões mais fantasiosas ao evocar a sua juventude, como era feliz, linda, etc ...”, dizia novamente o filósofo.

São os deficientes visuais e físicos que sofrem na pele o desleixo e o descaso. Ou são tratados com comiseração ou como motivo de riso por sua maneira diferenciada de estar no mundo. “O eu é necessidade, porque é ele próprio, é possível, porque deve realizar-se”, anunciava Kierkegaard, e, muitas vezes, estes diferentes “eus” são impedidos de realizar-se.

São pessoas, homens, mulheres, crianças e jovens de idade variada em um leito hospitalar sem receber uma só visita para acalentar o frio da falta de saúde. Paira aí o silêncio e o cheiro adocicado da morte que espreita, dança, embalada pelos sons dos mais variados aparelhos.

A solidão assola toda esta gente de um modo brutal, são olhos tristes, respiração entrecortada, um andar pesado, um senho fechado, um pulso a bater fraco, um cansaço, uma falta de perspectiva.

As relações humanas e suas interseções em geral, carecem de qualidade e isso é justificado, ao meu ver, pela falta de respeito à singularidade de cada um. São os “malditos” padrões pré-estabelecidos, insensatos, vulgares, incoerentes que menosprezam Estruturas de Pensamento (EPs) de raro valor.

É preciso que haja uma visão, um olhar amplo, um saber conduzir, estar aberto ao novo, rever conceitos e práticas. Admitir erros e acertos é ser humano, é ser terapeuta. Somos uma opção viva diante do outro, com toda riqueza e complexidade que a vida abarca.

É sentar e conversar, parar e ouvir, ficar ao lado, é tocar, perceber e entender o que vem e o que vai lá no íntimo de cada um, é se ver e se mostrar, é um exercício existencial.

Vejam que enorme responsabilidade nós - Filósofos Clínicos - temos, o de ser talvez o último farol, um porto, um gesto, uma palavra, um par. Já sabemos como abordar (Exames Categoriais, EP, Submodos), acompanhando este sujeito único que se dá a conhecer. E além disso, temos o dever de acolher estas pessoas que nos chegam, na tentativa de que a “SSAS” não se espalhe como fera, destruindo quintais, não possa ceifar mais vidas e aniquile por conta disso todo o círculo de relações das quais faz parte. Afinal, “comunicar com o outro é fazê-lo existir é também fazer-se existir a si próprio”, na visão de Kierkegaarg.

* Sören Aabye Kierkegaard (1813-1855) – Filósofo dinamarquês, entre suas obras, salientam-se: Sobre o conceito de ironia, Discursos Edificantes, Um fragmento de vida, Temor e Tremor, A repetição, O conceito de angústia, Etapas no caminho da vida e O desespero humano (Doença até a morte). Dessa última foram retiradas as citações deste artigo.

Porto Alegre, junho de 2003

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Pintura de Darios Regoyos

A tela do partilhante

Já ouvi muitas vezes a seguinte colocação: “em clínica, a pessoa chega e despeja todo o seu lixo sobre o terapeuta”. Ficava quieta, sem concordar e fui elaborando o seguinte: considero esta declaração um tanto arriscada e suspeita para quem deseja ser realmente um terapeuta.

Se tu considera alguém que está na tua frente, de antemão, disposto a despejar seus dejetos consultório adentro, há aqui, na minha visão, um prejuízo enorme que pode inviabilizar a clínica. O lixo quase sempre é malcheiroso, está colocado naquele canto onde não fica muito à vista, é armazenado em tonéis, dividido em “seco” e “orgânico”, em sacos de plástico das mais variadas cores e tamanhos. Uma pessoa em consultório não é isso.

Se na nossa prática o diálogo é uma das premissas, sinceramente não vejo duas pessoas trocando idéias e experiências de vida como “coisas” inertes, cheias de restos. Talvez esta analogia se refira ao fato de que nas fases de coleta da historicidade e exames categoriais, mais ouvimos do que falamos. E há quem possa falar, mas lixo pode servir de adubo ou ser reciclado, e pode também deixar resíduos. Mas a pessoa é vida, não resíduo. Então, em hipótese alguma considero o partilhante que me chega como alguém que vem despejar lixo, ali na minha frente. Não. É preciso, para ser terapeuta, um senso de humanidade acima dos padrões convencionais.

Muitas vezes, isso não se aprende, ou se tem, ou não. Esse livre trânsito entre mim e meu partilhante é andar muitas vezes sobre um papel de arroz; outras vezes, subir montanhas; estar disposto a um mergulho profundo; compartilhar de extensa e breves caminhadas.

O que as pessoas trazem é um quadro da pintura de suas vidas. Alguns impressionistas, outros expressionistas, barrocos, desenhos de cera “infantil”, um risco fraco de grafite. Mas é preciso ter olhos para ver e, com certeza, essas nuances de cores, lágrimas, risos, sussurros é antes, mais uma pincelada nesta grande tela da vida de cada um, do que lixo.

Se ela chegou ao terapeuta, está à procura de, em busca de, ou, simplesmente, quer estar para mostrar e falar de sua “obra de arte” que foi o seu existir. A princípio, ela vai te mostrar só a moldura de seu quadro, ainda meio sem jeito. Se eu a fitar torcendo o nariz, imaginando “que belo lixo vou começar a remexer”, não verei a tela, e que bela oportunidade posso estar perdendo. Devemos lembrar que essa pessoa com sua tela sente, intui, percebe, principalmente estando fragilmente exposta, pois o verdadeiros artistas da vida assim andam e criam.

Esqueça o “lixo”, pense em ver a “tela”, as tintas, o que a pessoa traz e como traz. Com uma boa interseção, com a amizade fortalecida, poderás ter a surpresa de que te estendam o pincel para que tu possas deixar tua pequena marca, nesta criação que é a vida. Sentirás então o cheiro das tintas, a amplitude dos sentimentos. Te tornarás “imortal” no existir deste outro, que agora é um pouco de ti também.

Ser filósofo clínico é criar e recriar, é ser e ter, é dar e receber, é viver o espaço terapêutico em toda a sua abrangência. Por isso, não reduza o que seu partilhante te traz a lixo.


Porto Alegre, abril de 2003

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A Arte de Compartilhar

A Arte de Compartilhar Na Grécia Antiga, em suas reuniões ao ar livre, os “Filósofos de Jardim”, dialogavam de modo coloquial e familiar, estabelecendo uma relação de amizade. Epícuro buscava e valorizava a capacidade de integrar e promover o bem estar entre as pessoas. Através do ato de filosofar estava a maneira de se libertar das ansiedades e frustrações do mundo e buscar a felicidade.

Eis aqui a filosofia sendo utilizada na prática, via diálogo, via interseção, num compartilhar. O Filósofo Clínico é o profissional disposto à arte do diálogo. Ao ouvirmos, franqueamos nossa mente por inteiro. O estar “plugado” é um envolver-se integralmente, frente à outra figura humana, o partilhante. Esse nos chega com suas experiências pessoais, visão de mundo, afetos, buscas, traumas e circunstâncias pessoais, porque alguma coisa em seu caminho ou existência não flui de maneira tranqüila. Essa relação precisa se dar de uma maneira qualitativa, atenta, por aí começamos a decifrar a Estrutura de Pensamento (EP) que se dá a conhecer.

O olhar dentro dos olhos, o escutar, a lágrima, o riso, a respiração, o tom da voz, os gestos, esse universo individual se expõe. Há aqui toda uma estrutura interna em movimento: são 10 bilhões de neurônios que recebem, integram e transmitem informações; a malha intelectiva traz vivências passadas tornadas contemporâneas à medida que são narradas.

Ao nos comunicarmos, uma corrente elétrica aciona 100 trilhões de conexões sinápticas entre esses neurônios. Uma sucessão de representações vêm à tona pelo pensamento. Com olhar atento, já podemos observar possíveis choques estruturais.

O objetivo da Filosofia Clínica é levar o partilhante a ter consciência de seu próprio funcionamento interno para que ele, dentro de seu universo pessoal, busque sua melhora existencial. Isso se dará via submodos (formas de ação), os que o partilhante já usa informalmente e os que se adequam à sua EP. Essa caminhada junto ao outro, na riqueza do compartilhar, gradual, da existência, somente se dá através da interseção.

Como em toda arte, há muito de sentimento e intuição. O conhecimento é só o primeiro passo desta vivência que floresce na sabedoria e no respeito mútuo.


Porto Alegre, março de 2001

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