Fatos da História

O homem mais do que nunca tenta mostrar-se superior elevando seus conhecimentos acima da sabedoria de Deus. Na luta contra a morte corpórea, o homem deseja mais, não basta apenas enganar as doenças que flagelam a carne é necessário reanimar o morto que não respira, dar vida a criatura sem nome: O Golem, obra-prima da harmonia cabalística. Mas, ao falhar por muito pouco em seu intento de imitar Deus, os mestres de Praga converteram o seu projeto no mais ousado dos feitos do Diabo.

Contemporânea do esplendor da cabala espanhola, a alemã encarna-se no primeiro movimento hassídico (que veio a renascer no século XVII com o movimento redentorista e messiânico de Shabetai Tzevi e culminou, com os seguidores de Isaac Luria, no século XVIII: a sobrevivência do mito golem adquiriu então um significado esotérico e religioso muito mais profundo, que não é possível tratar aqui).

O fundador do movimento, morto em 1217, foi o rabino Yehudá ben Samuel, o Piedoso (jasid), que lhe deu nome e desapareceu sem sequer deixar obra escrita; seu sobrinho, Eleazar bem Judá bem Kalonymos (conhecido como Eleazar de Worms) foi o verdadeiro impulsionador da cabala germânica, com lamentáveis conseqüências pessoais: segundo Zung e Ribadeau-Dumas, nas perseguições de que foi vítima por parte dos cruzados, estes mataram Dulcina, sua mulher, Belat e Hanerat, suas duas filhas, e o seu único filho, Jacob.

Sua obra- cujos manuscritos conservam-se atualmente no museu do Vaticano – foi densa e polífica, abonada pelo reiterado terror e expectativa que os milenarismos produzem no povo de Israel e que o cristianismo herdou (por volta dos meados do século XIII, o mesmo da vida e obra de Eleazar, o calendário hebreu ultrapassou o ano 5000). Nela destacava-se, junto a comentários eruditos sobre o livro sagrado, os Hekaloth (palácios), pelo esplendor de suas visões, e, para o interesse do tema tratado aqui, o Spher Hachem, o livro do Tetragrama, que seria o tratado nutriz para a fabricação do Golem.

Supõe-se que o Tetragrama, ou o nome secreto de Deus composto por quatro letras, inclui o princípio animador da vida, já que – sabemos disso desde o Gênese, e o pensamento Judeu não o olvidou jamais – é a palavra que anima o mundo: a criação inteira não existe enquanto Deus não a diz. Desde esse ponto de partida, que passou ao esoterismo cristão na busca do homúnculo pelos alquimistas, parece coerente a ambição amplamente alimentada nos bairros judeus de Praga durante o século XV e XVI: criar um ser humano; animar uma matéria inerte pela insuflação da palavra de Deus.

Atribui-se a Elias de Chelm a criação do primeiro golem, em cuja testa havia gravado a palavra “emet” (que seria uma das combinações possíveis do Tetragrama): a tosca criatura parece que não realizava senão movimentos elementares, tais como pestanejar ou simular penosamente um sorriso, e ainda por cima tinha-se que ficar regravando continuamente a palavra para que não se apagasse de todo.

O mais célebre taumaturgo, aquele que chegou mais longe – recuperado, para o nosso século, pela justamente famosa novela “O Golem”, de Gustav Meyrink, escrita em 1915 -, foi o rabino Judah Löw bem Bezabel (Judah Leon), que acabou por destruir sua criatura, espantado ante o imprevisível porvir do engenho.


Se, como vimos, uma característica diabólica por definição é a de imitar Deus, seguida pelo inevitável fracasso que se traduz na obtenção de uma caricatura divina, não há exemplo melhor que o golem para ilustra-la. Não só porque neste caso se trata de copiar a obra-prima de Deus – o homem, feito à sua “imagem e semelhança” -, mas também porque o patético do resultado exemplifica magistralmente a impossibilidade da empresa. Vejamos, porém: se o golem, ainda que precariamente, viveu, a aparente derrota transformou-se numa formidável vitória; outorga ao demiurgo sombrio o dom da criatividade, que outras latitudes e tempos lhe reconheceram, mas que as religiões mosaicas negaram-lhe obstinadamente.

No quinto capítulo da sua novela, Meyrink escreve que Judah Leon construiu o golem “para que este tocasse os sinos da sinagoga e fizesse os trabalhos pesados. Não era, sem dúvida, um homem como os outros e apenas o animava uma vida surda e vegetativa. Esta durava até a noite e devia sua virtude ao influxo de uma inscrição mágica, que lhe punham atrás dos dentes e que atraía as livres forças siderais do universo. Uma tarde, antes da oração da noite, o rabino esqueceu de tirar o selo da boca do golem, e este entrou em delírio, correu pelas ruelas escuras e destroçou a quantos lhe atravessaram o caminho. Por fim, o rabino prendeu-o e rompeu o selo que o animava. A criatura desmoronou. Restou apenas uma raquítica figura de barro, que ainda hoje pode ser vista na sinagoga de Praga”.

No Talmude (Sanhedrich, 65, b) lê-se que o mestre Rava conseguiu criar um homem, combinando letras dos inefáveis nomes de Deus e enviou ao justo Ray Zera, mas este descobriu o logro: “És uma criação da magia”, disse-lhe, “pois volta ao pó”, e o boneco desarticulou-se. No mesmo livro narram-se as especulações de dois mestres, que todas as sextas-feiras conseguiam criar um bezerro que depois era aproveitado para alimentação. Jorge Luis Borges, em seu “Manual de Zoologia Fantástica”, confirma que Eleazar de Worms tinha conservado ou redescoberto a fórmula necessária para construir um golem. A formulação do ritual abarcaria 23 colunas de fólio e exigiria o conhecimento dos “alfabetos das 221 portas”, que devem ser repetida sobre cada órgão do golem. “Na testa”, conclui Borges, “se tatuará a palavra Emet, que significa verdade. Para destruir a criatura, apagar-se-á a letra inicial, porque assim fica apenas a palavra Met, que significa morto.”

Artigo por: Márcio Domenes (Domenium)
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Bibliografia: Biografia do Diabo – Alberto Cousté; O Golem - Gustav Meyrink; Manual de Zoologia Fantástica - Jorge Luis Borges.


 

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