O vilarejo
de Salem, um pouco mais ao norte de Boston, na colônia americana
da Nova Inglaterra, nos finais do século XVII, o século
da colonização, foi tomado de assalto por uma onda de
intolerância e de fanatismo religioso, vitimando quase vinte pessoas.
A caça as feiticeiras que então se desencadeou, serviu
como um alerta para que os princípios de liberdade religiosa
fossem ainda mais assegurados na história futura dos Estados
Unidos da América.
A
visita de Satanás
"É uma certeza que o demônio
apresenta-se por vezes na forma de pessoas não apenas inocentes,
mas também muito virtuosas".
Rev. John Richards, século XVII
Mister Parris,
o pobre reverendo de Sálem, estava exasperado. Betty, a sua única
filha de apenas nove anos, acometida por uma série de estranhos
espasmos, jogou-se petrificada sobre o leito, negando-se a comer. Naquela
perdida cidadezinha, ao norte de Boston, não existiam muitos
recursos além de um velho médico que por lá se
perdera. Chamado para diagnosticar a doença, atestou para o aterrado
pai que menina estava era enfeitiçada e que nada lhes restava
a fazer além de uma boa e sincera reza. A conclusão do
doutor correu de boca em boca e em pouco tempo os pacatos habitantes
do pequeno porto tomaram conhecimento de que Satanás resolvera
coabitar com eles.
Simultaneamente
outras garotas, as amiguinhas de Betty, começaram a apresentar
sintomas semelhantes aos da filha do clérigo. Rolavam pelo chão,
imprecavam, salivavam, grunhiam e latiam. Foi um pandemônio. Pressionado
a tomar medidas, Parris resolveu chamar um exorcista, um caçador
de feiticeiras, que prontamente começou sua investigação.
No século
XVII poucos punham em dúvida a existência de bruxas ou
de feiticeiras porque uma das máximas daqueles tempos é
de que "é
uma política do Diabo persuadir-nos que não há
nenhum Diabo".
Interrogadas
por Cotton Mather, que iria se revelar uma versão americana do
inquisidor-mor Torquermada, as garotas contaram que o que havia desencadeado
aquela desordem toda foram uns rituais de vodu que elas viram Tituba
fazer. Tratava-se de uma escrava negra que viera das Índias Ocidentais
e que iniciara algumas delas no conhecimento da magia negra. Durante
o último longo inverno da Nova Inglaterra, ela apresentara várias
vezes os feitiços para uma platéia de garotas impressionáveis.
Educadas no estreito moralismo calvinista e no ódio ao sexo que
o Puritanismo devota, aquele cerimonial animista deve ter despertado
as fantasias eróticas nelas. Provavelmente culpadas por terem
cedido à libido, ou apavoradas por sonhos eróticos, as
garotas entraram em choque histérico. Seja como for o caso merecia
ser ouvido num tribunal. Toda a cidadezinha se fez então presente
no salão comunitário.
Quando colocadas
num tribunal especial, presidido pelo juiz S.Sewall, e inquiridas pelos
juizes Corwin e Hathorne, as meninas começaram a apontar indistintamente
para várias pessoas que estavam na sala apenas como curiosas.
O depoimento mais sensacional foi o da escrava Tituba, que não
só confessou suas estranhas práticas como afirmou que
várias outras pessoas da comunidade também o faziam.
A partir
daquele momento a cidadezinha, que já estava sob forte tensão,
se transformou. Um comportamento obsessivo tomou conta dos moradores.
Uma onda de acusações devastou o lugarejo. Vizinhos se
denunciavam, maridos suspeitavam das suas mulheres e vice-versa, amigos
de longa data viravam inimigos. Praticamente ninguém escapou
de passar por suspeito, de ser um possível agente do demônio.
Não demorou para que mais de 300 pessoas fossem acusadas de práticas
infames. O tribunal que entrou em função em junho de 1692
somente parou em outubro. Resultou que dezenove pessoas foram enforcadas.
Deteve-se
a execução quando as denúncias envolveram figuras
eminentes da colônia, tal como a esposa do governador de Massachusetts
e o pastor Samuel Willard, presidente do Harvard College (*). Enquanto
a arraia-miúda foi enclausurada, acusada de práticas escusas,
poucos se indignaram. O basta naquilo tudo foi dado quando os dedos
dos fanáticos ousaram apontar para a elite local. Ainda em 8
de outubro de 1692 circulou uma carta redigida por um intelectual da
região, Thomas Brattle, que se horrorizara com os enforcamentos,
revelando a loucura coletiva que tomara conta dos aldeãos. Segundo
Perry Miller, que estudou as idéias que circulavam pelas colônias
americanas daquele século, a letter de Brattle teria sido o primeiro
documento iluminista produzido na América do Norte, pois criticou
veementemente os prejuízos do fanatismo religioso. Entre outras
coisas Battle escreveu: "temo que os anos não apagarão
esta desgraça, esta nódoa que essas coisas lançaram
sobre nossa terra". E os processos dos endemoniados de Salém
assim como começaram, num repente terminaram.
(*)As
perseguições às bruxas de Salém serviram,
dois séculos e meio depois, como tema para que o teatrólogo
Arthur Miller - sofrendo as intimidações feitas pelo Comitê
de Atividades Anti-americanas do senador Joe McCarthy (1908-1957) -,
escrevesse a peça The Crucible (traduzida por nós como
As bruxas de Salém). Encenada no início dos anos de 1950,
eram evidentes as analogias que Miller fez entre os padecimentos da
esquerda americana na época da Guerra Fria,com os tormentos sofridos
pelos injustamente acusados em Salém. Quanto ao macartismo, é
interessante lembrar que ele ascendeu, em sessões abertas ao
público, acusando intelectuais, escritores, roteiristas, artistas
e gente de Hollywood em geral, mas naufragou quando ousou enfrentar
o Exército, ocasião em que Joe McCarthy foi ridicularizado
e exposto pelo advogado da corporação militar.