Introdução
Histórica ao Malleus Maleficarum
Antes
das bruxas... a mulher na história da humanidade
Para
compreendermos a importância do Malleus é preciso termos
uma visão ao menos mínima da história da mulher
no interior da história humana em geral. Segundo a maioria dos
antropólogos, o ser humano habita
este planeta há mais de dois milhões
de anos. Mais de três quartos deste tempo a nossa espécie
passou nas culturas de coleta e caça aos pequenos animais. Nessas
sociedades não havia necessidade de força física
para a sobrevivência, e nelas as mulheres possuíam um lugar
central.
Em
nosso tempo ainda existem remanescentes dessas culturas, tais como os
grupos mahoris (Indonésia),
pigmeus e bosquímanos (África Central).
Estes são os grupos mais primitivos que existem e ainda sobrevivem
da coleta dos frutos da terra e da pequena caça ou pesca. Nesses
grupos, a mulher ainda é considerada um ser sagrado, porque pode
dar a vida e, portanto, ajudar a fertilidade da terra e dos animais.
Nesses grupos, o princípio masculino e o feminino governam o
mundo juntos. Havia divisão de trabalho entre os sexos, mas não
havia desigualdade. A vida corria mansa e paradisíaca.
Nas
sociedades de caça aos grandes animais, que sucedem a essas mais
primitivas, em que a força física é essencial,
é que se inicia a supremacia masculina. Mas nem nas sociedades
de coleta nem nas de caça se conhecia função masculina
na procriação. Também nas sociedades de caça
a mulher era considerada um ser sagrado, que possuía o privilégio
dado pelos deuses de reproduzir a espécie. Os homens se sentiam
marginalizados nesse processo e invejavam as mulheres. Essa primitiva
"inveja do útero" dos homens
é a antepassada da moderna "inveja
do pênis" que sentem as mulheres nas culturas
patriarcais mais recentes.
A
inveja do útero dava origem a dois ritos universalmente encontrados
nas sociedades de caça pelos antropólogos e observados
em partes opostas do mundo, como Brasil e Oceania. O primeiro é
o fenômeno da couvade, em que a mulher começa a trabalhar
dois dias depois de parir e o homem fica de resguardo com o recém-nascido,
recebendo visitas e presentes... O segundo é a iniciação
dos homens. Na adolescência, a mulher tem sinais exteriores que
marcam o limiar da sua entrada no mundo adulto. A menstruação
a torna apta à maternidade e representa um novo patamar em sua
vida. Mas os adolescentes homens não possuem esse sinal tão
óbvio. Por isso, na puberdade eles são arrancados pelos
homens às suas mães, para serem iniciados na
"casa dos homens". Em quase todas essas iniciações,
o ritual é semelhante: é a imitação cerimonial
do parto com objetos de madeira e instrumentos musicais. E nenhuma mulher
ou criança pode se aproximar da casa dos homens, sob pena de
morte. Desse dia em diante o homem pode "parir" ritualmente
e, portanto, tomar seu lugar na cadeia das gerações...
Ao
contrário da mulher, que possuía o
"poder biológico", o homem foi desenvolvendo
o "poder cultural" à medida
que a tecnologia foi avançando. Enquanto as sociedades eram de
coleta, as mulheres mantinham uma espécie de poder, mas diferente
das culturas patriarcais. Essas culturas primitivas tinham de ser cooperativas,
para poder sobreviver em condições hostis, e portanto
não havia coerção ou centralização,
mas rodízio de lideranças, e as relações
entre homens e mulheres eram mais fluidas do que viriam a ser nas futuras
sociedades patriarcais.
Nos
grupos matricêntricos, as formas de associação entre
homens e mulheres não incluíam nem a transmissão
do poder nem a da herança, por isso a liberdade em termos sexuais
era maior. Por outro lado, quase não existia guerra, pois não
havia pressão populacional pela conquista de novos territórios.
É só nas regiões em que a coleta é escassa,
ou onde vão se esgotando os recursos naturais vegetais e os pequenos
animais, que se inicia a caça sistemática aos grandes
animais. E aí começam a se instalar a supremacia masculina
e a competitividade entre os grupos na busca de novos territórios.
Agora, para sobreviver, as sociedades têm de competir entre si
por um alimento escasso. As guerras se tornam constantes e passam a
ser mitificadas. Os homens mais valorizados são os heróis
guerreiros. Começa a se romper a harmonia que ligava a espécie
humana à natureza. Mas ainda não se instala definitivamente
a lei do mais forte. O homem ainda não conhece com precisão
a sua função reprodutora e crê que a mulher fica
grávida dos deuses. Por isso ela ainda conserva poder de decisão.
Nas culturas que vivem da caça, já existe estratificação
social e sexual, mas não é completa como nas sociedades
que se lhes seguem.
É
no decorrer do neolítico
que, em algum momento, o homem começa a dominar a sua função
biológica reprodutora, e, podendo controlá-la, pode também
controlar a sexualidade feminina. Aparece então o casamento como
o conhecemos hoje, em que a mulher é propriedade do homem e a
herança se transmite através da descendência masculina.
Já acontece assim, por exemplo, nas sociedades pastoris descritas
na Bíblia. Nessa época, o homem já tinha aprendido
a fundir metais. Essa descoberta acontece por volta de 10000 ou 8000
a.C. E, à medida que essa tecnologia se aperfeiçoa, começam
a ser fabricadas não só armas mais sofisticadas como também
instrumentos que permitem cultivar melhor a terra (o arado, por ex.).
Hoje há consenso entre os antropólogos de que os primeiros
humanos a descobrir os ciclos da natureza foram as mulheres, porque
podiam compará-los com o ciclo do próprio corpo. Mulheres
também devem ter sido as primeiras plantadoras e as primeiras
ceramistas, mas foram os homens que, a partir da invenção
do arado, sistematizaram as atividades agrícolas, iniciando uma
nova era, a era agrária, e com ela a história em que vivemos
hoje.
Para
poder arar a terra, os grupamentos humanos deixam de ser nômades.
São obrigados a se tornar sedentários. Dividem a terra
e formam as primeiras plantações. Começam a se
estabelecer as primeiras aldeias, depois as cidades, as cidades-estado,
os primeiros Estados e os impérios, no sentido antigo do termo.
As sociedades, então, se tornam patriarcais,
isto é, os portadores dos valores e da sua transmissão
são os homens. Já não são mais os princípios
feminino e masculino que governam juntos o mundo, mas, sim, a lei do
mais forte. A comida era primeiro para o dono da terra, sua família,
seus escravos e seus soldados. Até ser escravo era privilégio.
Só os párias nômades, os sem-terra, é que
pereciam no primeiro inverno ou na primeira escassez.
Nesse
contexto, quanto mais filhos, mais soldados e
mais mão-de-obra barata para arar a terra. As mulheres
tinham a sua sexualidade rigidamente controlada pelos homens. O casamento
era monogâmico e a mulher era obrigada a sair virgem das mãos
do pai para as mãos do marido. Qualquer ruptura desta norma podia
significar a morte. Assim também o adultério: um filho
de outro homem viria ameaçar a transmissão da herança
que se fazia através da descendência da mulher. A mulher
fica, então, reduzida ao âmbito doméstico. Perde
qualquer capacidade de decisão no domínio público,
que fica inteiramente reservado ao homem. A dicotomia entre o privado
e o público torna-se, então, a origem da dependência
econômica da mulher, e esta dependência, por sua vez, gera,
no decorrer das gerações, uma submissão psicológica
que dura até hoje.
É
nesse contexto que transcorre todo o período histórico
até os dias de hoje. De matricêntrica, a cultura humana
passa a patriarcal.
E
o Verbo Veio Depois...
|
Marilyn
French |
"No
princípio era a Mãe, o Verbo veio depois."
É assim que Marilyn French,
uma das maiores pensadoras feministas americanas, começa o seu
livro Beyond Power
(Summit Books, Nova York, 1985).
E não é sem razão, pois podemos retraçar
os caminhos da espécie através da sucessão dos
seus mitos. Um mitólogo americano, em seu livro
The Masks of God Occidental Mythology (Nova York, 1970), citado
por French, divide em quatro grupos todos os mitos conhecidos da criação.
E, surpreendentemente, esses grupos correspondem às etapas cronológicas
da história humana.
Na
primeira etapa, o mundo é criado por uma
deusa mãe sem auxílio de ninguém. Na segunda,
ele é criado por um deus andrógino
ou um casal criador. Na terceira, um deus macho
ou toma o poder da deusa ou cria o mundo sobre o corpo da deusa primordial.
Finalmente, na quarta etapa, um deus macho cria o mundo sozinho.
Essas
quatro etapas que se sucedem também cronologicamente são
testemunhas eternas da transição da etapa matricêntrica
da humanidade para sua fase patriarcal, e é esta sucessão
que dá veracidade à frase já citada de Marilyn
French.
Alguns
exemplos nos farão entender as diversas etapas e a frase de French.
O primeiro e mais importante exemplo da primeira etapa em que a Grande
Mãe cria o universo sozinha é o próprio
mito grego.
Nele a criadora primária é Geia,
a Mãe Terra. Dela nascem todos as protodeuses: Urano,
os Titãs e as protodeusas, entre as quais Réia,
que virá a ser a mãe do futuro dominador do Olimpo, Zeus.
Há também o caso do mito
Nagô, que vem dar origem ao
candomblé. Neste mito africano, é Nana
Buruquê que dá à luz todos os orixás,
sem auxílio de ninguém.
Exemplos
do segundo caso são o deus andrógino
que gera todos os deuses, no hinduísmo,
e o yin e o yang, o princípio feminino e o masculino que governam
juntos na mitologia chinesa.
Exemplos
do terceiro caso são as mitologias nas quais reinam em primeiro
lugar deusas mulheres, que são, depois, destronadas por deuses
masculinos. Entre essas mitologias está a sumeriana,
em que primitivamente a deusa Siduri reinava
num jardim de delícias
e cujo poder foi usurpado por um deus solar.
Mais tarde, na epopéia de Gilgamesh,
ela é descrita como simples serva. Ainda, os mitos primitivos
dos astecas falam de um mundo perdido, de um jardim paradisíaco
governado por Xoxiquetzl, a Mãe Terra. Dela nasceram os Huitzuhuahua,
que são os Titãs e os Quatrocentos Habitantes do Sul (as
estrelas). Mais tarde, seus filhos se revoltam contra ela e ela dá
à luz o deus que iria governar a todos, Huitzilopochtli.
A
partir do segundo milênio a.C., contudo, raramente se registram
mitos em que a divindade primária seja mulher. Em muitos deles,
estas são substituídas por um deus macho que cria o mundo
a partir de si mesmo, tais como os mitos persa, meda e, principalmente
e acima de todos, o nosso mito cristão,
que é o que será enfocado aqui.
Javé
é deus único todo-poderoso, onipresente, e controla todos
os seres humanos em todos os momentos da sua vida. Cria sozinho o mundo
em sete dias e, no final, cria o homem. E só depois cria a mulher,
assim mesmo a partir do homem. E coloca ambos no Jardim das Delícias
onde o alimento é abundante e colhido sem trabalho. Mas, graças
à sedução da mulher, o homem cede à tentação
da serpente e o casal é expulso do paraíso.
Antes
de prosseguir, procuremos analisar o que já se tem até
aqui em relação à mulher. Em primeiro lugar, ao
contrário das culturas primitivas, Javé é deus
único, centralizador, dita rígidas regras de comportamento
cuja transgressão é sempre punida. Nas primitivas mitologias,
ao contrário, a Grande Mãe é permissiva, amorosa
e não-coercitiva. E como todos os mitos fundantes das grandes
culturas tendem a sacralizar os seus principais valores, Javé
representa bem a transformação do matricentrismo em patriarcado.
O
Jardim das Delícias é a lembrança arquetípica
da antiga harmonia entre o ser humano e a natureza. Nas culturas de
coleta não se trabalhava sistematicamente. Por isso os controles
eram frouxos e podia se viver mais prazerosamente. Quando o homem começa
a dominar a natureza, ele começa a se separar dessa mesma natureza
em que até então vivia imerso.
Como
o trabalho é penoso, necessita agora de poder central que imponha
controles mais rígidos e punição para a transgressão.
É preciso usar a coerção e a violência para
que os homens sejam obrigados a trabalhar, e essa coerção
é localizada no corpo, na repressão da sexualidade e do
prazer. Por isso o pecado original, a culpa máxima, na Bíblia,
é colocado no ato sexual (é assim que, desde milênios,
popular -mente se interpreta a transgressão dos primeiros humanos).
É
por isso que a árvore do conhecimento é também
a árvore do bem e do mal. O progresso do conhecimento gera o
trabalho e por isso o corpo tem de ser amaldiçoado, porque o
trabalho é bom. Mas é interessante notar que o homem só
consegue conhecimento do bem e do mal transgredindo a lei do Pai. O
sexo (o prazer) doravante é mau e, portanto, proibido. Praticá-lo
é transgredir a lei. Ele é, portanto, limitado apenas
às funções procriativas, e mesmo assim é
uma culpa.
Daí
a divisão entre sexo e afeto, entre corpo e alma, apanágio
das civilizações agrárias e fonte de todas as divisões
e fragmentações do homem e da mulher, da razão
e da emoção, das classes...
Tomam
aí sentido as punições de Javé. Uma vez
adquirido o conhecimento, o homem tem que sofrer. O trabalho o escraviza.
E por isso o homem escraviza a mulher. A relação homem-mulher-natureza
não é mais de integração e, sim, de dominação.
O desejo dominante agora é o do homem. O desejo da mulher será
para sempre carência, e é esta paixão que será
o seu castigo. Daí em diante, ela será definida por sua
sexualidade, e o homem, pelo seu trabalho.
Mas
o interessante é que os primeiros capítulos
do Gênesis podem ser mais bem entendidos à
luz das modernas teorias psicológicas, especialmente a psicanálise.
Em cada menino nascido no sistema patriarcal repete-se, em nível
simbólico, a tragédia primordial. Nos primeiros tempos
de sua vida, eles estão imersos no Jardim das Delícias,
em que todos os seus desejos são satisfeitos. E isto lhes faz
buscar o prazer que lhes dá o contato com a mãe, a única
mulher a que têm acesso. Mas a lei do pai proíbe ao menino
a posse da mãe. E o menino é expulso do mundo do amor,
para assumir a sua autonomia e, com ela, a sua maturidade. Principalmente,
a sua nudez, a sua fraqueza, os seus limites. É à medida
que o homem se cinde do Jardim das Delícias proporcionadas pela
mulher-mãe que ele assume a sua condição masculina.
E
para que possa se tornar homem em termos simbólicos, ele precisa
passar pela punição maior que é a ameaça
de morte pelo pai. Como Adão, o menino quer matar o pai e este
o pune, deixando-o só.
Assim,
aquilo que se verifica no decorrer dos séculos, isto é,
a transição das culturas de coleta para a civilização
agrária mais avançada, é relembrado simbolicamente
na vida de cada um dos homens do mundo de hoje. Mas duas observações
devem ser feitas. A primeira é que o pivô das duas tragédias,
a individual e a coletiva, é a mulher; e a segunda, que o conhecimento
condenado não é o conhecimento dissociado e abstrato que
daí por diante será o conhecimento dominante, mas sim
o conhecimento do bem e do mal, que.vem da experiência concreta
do prazer e da sexualidade, o conhecimento totalizante que integra inteligência
e emoção, corpo e alma, enfim, aquele conhecimento que
é, especificamente na cultura patriarcal, o conhecimento feminino
por excelência.
Freud
dizia que a natureza tinha sido
madrasta para a mulher porque ela não era capaz de simbolizar
tão perfeitamente como o homem. De fato, para podermos
entender a misoginia que daí por diante caracterizará
a cultura patriarcal, é preciso analisar a maneira como as ciências
psicológicas mais atuais apontam para uma estrutura psíquica
feminina bem diferente da masculina.
A
mesma idade em que o menino conhece a tragédia da castração
imaginária, a menina resolve de outra maneira o conflito que
a conduzirá à maturidade. Porque já vem castrada,
isto é, porque não tem pênis (o símbolo do
poder e do prazer, no patriarcado), quando seu desejo a leva para o
pai ela não entra em conflito com a mãe de maneira tão
trágica e aguda como o menino entra com o pai por causa da mãe.
Porque já vem castrada, não tem nada a perder. E a sua
identificação com a mãe se resolve sem grandes
traumas. Ela não se desliga inteiramente das fontes arcaicas
do prazer (o corpo da mãe). Por isso, também, não
se divide de si mesma como se divide o homem, nem de suas emoções.
Para o resto da sua vida, conhecimento e prazer, emoção
e inteligência são mais integrados na mulher do que no
homem e, por isso, são perigosos e desestabilizadores de um sistema
que repousa inteiramente no controle, no poder e, portanto, no conhecimento
dissociado da emoção e, por isso mesmo, abstraio.
De
agora em diante, poder, competitividade, conhecimento, controle, manipulação,
abstração e violência vêm juntos. O amor,
a integração com o meio ambiente e com as próprias
emoções são os elementos mais desestabilizadores
da ordem vigente. Por isso é preciso precaver-se de todas as
maneiras contra a mulher, impedi-la de interferir nos processos decisórios,
fazer com que ela introjete uma ideologia que a convença de sua
própria inferioridade em relação ao homem.
E
não espanta que na própria Bíblia
encontremos o primeiro indício desta desigualdade
entre homens e mulheres. Quando Deus cria o homem, Ele o cria
só e apenas depois tira a companheira da costela deste. Em outras
palavras: o primeiro homem dá à luz (pare) a primeira
mulher. Esse fenômeno psicológico de deslocamento é
um mecanismo de defesa conhecido por todos aqueles que lidam com a psique
humana e serve para revelar escondendo. Tirar da costela é menos
violento do que tirar do próprio ventre, mas, em outras palavras,
aponta para a mesma direção. Agora, parir é ato
que não está mais ligado ao sagrado e é, antes,
uma vulnerabilidade do que uma força. A mulher se inferioriza
pelo próprio fato de parir, que outrora lhe assegurava a grandeza.
A grandeza agora pertence ao homem, que trabalha e domina a natureza.
Já
não é mais o homem que inveja a mulher. Agora é
a mulher que inveja o homem e é dependente dele. Carente, vulnerável,
seu desejo é o centro da sua punição. Ela passa
a se ver com os olhos do homem, isto é, sua identidade não
está mais nela mesma e sim em outro. O homem é autônomo
e a mulher é reflexa. Daqui em diante, como o pobre se vê
com os olhos do rico, a mulher se vê pelo homem.
Da
época em que foi escrito o Gênesis até os nossos
dias, isto é, de alguns milênios para cá, essa narrativa
básica da nossa cultura patriarcal tem servido ininterruptamente
para manter a mulher em seu devido lugar. E, aliás, com muita
eficiência. A partir desse texto, a mulher é vista como
a tentadora do homem, aquela que perturba a sua relação
com a transcendência e também aquela que conflitua as relações
entre os homens. Ela é ligada à natureza, à carne,
ao sexo e ao prazer, domínios que têm de ser rigorosamente
normalizados: a serpente, que nas eras matricêntricas era o símbolo
da fertilidade e tida na mais alta estima como símbolo máximo
da sabedoria, se transforma no demônio, no tentador, na fonte
de todo pecado. E ao demônio é alceado o pecado por excelência,
o pecado da carne. Coloca-se no sexo o pecado supremo e, assim, o poder
fica imune à crítica. Apenas nos tempos modernos está
se tentando deslocar o pecado da sexualidade para o poder. Isto é,
até hoje não só o homem como as classes dominantes
tiveram seu status sacralizado porque a mulher e a sexualidade foram
penalizadas como causa máxima da degradação humana.
O
Malleus como Continuação do Gênesis
Enquanto
se escrevia o Gênesis no Oriente
Médio, as grandes culturas patriarcais iam se
sucedendo. Na Grécia, o status da mulher foi extremamente degradado.
O homossexualismo era prática comum entre os homens e as mulheres
ficavam exclusivamente reduzidas às suas funções
de mãe, prostituta ou cortesã. Em Roma, embora durante
certo período tivessem bastante liberdade sexual, jamais chegaram
a ter poder de decisão no Império. Quando o Cristianismo
se torna a religião oficial dos romanos no século
IV, tem início a Idade Média. Algo novo
acontece. E aqui nos deteremos porque é o período que
mais nos interessa.
Do
terceiro ao décimo séculos, alonga-se um período
em que o Cristianismo
se sedimenta entre as tribos bárbaras
da Europa. Nesse período de conflito de valores, é muito
confusa a situação da mulher. Contudo, ela tende a ocupar
lugar de destaque no mundo das decisões, porque os homens se
ausentavam muito e morriam nos períodos de guerra. Em poucas
palavras: as mulheres eram jogadas para o domínio público
quando havia escassez de homens e voltavam para o domínio privado
quando os homens reassumiam o seu lugar na cultura.
Na
alta Idade Média, a condição das mulheres floresce.
Elas têm acesso às artes, às ciências, à
literatura. Uma monja, por exemplo, Hrosvitha
de Gandersheim, foi o único poeta da Europa durante
cinco séculos. Isso acontece durante as cruzadas, período
em que não só a Igreja alcança seu maior poder
temporal como, também, o mundo se prepara para as grandes transformações
que viriam séculos mais tarde, com a Renascença. E é
logo depois dessa época, no período que vai do fim do
século XIV até meados do século XVIII que aconteceu
o fenômeno generalizado em toda a Europa: a repressão sistemática
do feminino. Estamos nos referindo aos quatro séculos de "caça
às bruxas".
Deirdre
English e Barbara Ehrenreich, em seu livro Witches,
Nurses and Midwives (The Feminist
Press, 1973), nos dão estatísticas aterradoras
do que foi a queima de mulheres feiticeiras em fogueiras durante esses
quatro séculos.
"A extensão da caça às bruxas é
espantosa. No fim do século XV e no começo do século
XVI, houve milhares e milhares de execuções —
usualmente eram queimadas vivas na fogueira — na Alemanha, na
Itália e em outros países. A partir de meados do século
XVI, o terror se espalhou por toda a Europa, começando pela
França e pela Inglaterra. Um escritor estimou o número
de execuções em seiscentas por ano para certas cidades,
uma média de duas por dia, 'exceto aos domingos'. Novecentas
bruxas foram executadas num único ano na área de Wertzberg,
e cerca de mil na diocese de Como. Em Toulouse, quatrocentas foram
assassinadas num único dia; no arcebispado de Trier, em 1585,
duas aldeias foram deixadas apenas com duas mulheres moradoras cada
uma. Muitos escritores estimaram que o número total de mulheres
executadas subia à casa dos milhões, e as mulheres constituíam
85% de todos os bruxos e bruxas que foram executados."
Outros cálculos levantados por Marilyn
French, em seu já citado livro, mostram que o
número mínimo de mulheres queimadas vivas é de
cem mil.
E
Por Que Tudo Isso?
Desde
a mais remota antiguidade, as mulheres eram as curadoras populares,
as parteiras, enfim, detinham saber próprio, que lhes era transmitido
de geração em geração. Em muitas tribos
primitivas eram elas as xamãs. Na Idade Média, seu saber
se intensifica e aprofunda. As mulheres camponesas pobres não
tinham como cuidar da saúde, a não ser com outras mulheres
tão camponesas e tão pobres quanto elas. Elas (as curadoras)
eram as cultivadoras ancestrais das ervas que devolviam a saúde,
e eram também as melhores anatomistas do seu tempo. Eram as parteiras
que viajavam de casa em casa, de aldeia em aldeia, e as médicas
populares para todas as doenças.
Mais
tarde elas vieram a representar uma ameaça. Em primeiro lugar,
ao poder médico, que vinha tomando corpo através das universidades
no interior do sistema feudal. Em segundo, porque formavam organizações
pontuais (comunidades) que, ao se juntarem, formavam vastas confrarias,
as quais trocavam entre si os segredos da cura do corpo e muitas vezes
da alma. Mais tarde, ainda, essas mulheres vieram a participar das revoltas
camponesas que precederam a centralização dos feudos,
os quais, posteriormente, dariam origem às futuras nações.
O
poder disperso e frouxo do sistema feudal para sobreviver é obrigado,
a partir do fim do século XIII, a centralizar, a hierarquizar
e a se organizar com métodos políticos e ideológicos
mais modernos. A noção de pátria aparece, mesmo
nessa época (Klausevitz).
A
religião católica
e, mais tarde, a protestante contribuem de maneira decisiva para essa
centralização do poder. E o fizeram através dos
tribunais da Inquisição que varreram a Europa de norte
a sul, leste e oeste, torturando e assassinando em massa aqueles que
eram julgados heréticos ou bruxos.
Este "expurgo" visava recolocar dentro de regras de comportamento
dominante as massas camponesas submetidas muitas vezes aos mais ferozes
excessos dos seus senhores, expostas à fome, à peste e
à guerra e que se rebelavam. E principalmente as mulheres.
Era
essencial para o sistema capitalista que estava sendo forjado no seio
mesmo do feudalismo um controle estrito sobre o corpo e a sexualidade,
conforme constata a obra de Michel Foucault, História da Sexualidade.
Começa a se construir ali o corpo dócil do futuro trabalhador
que vai ser alienado do seu trabalho e não se rebelará.
A partir do século XVII, os controles atingem profundidade e
obsessividade tais que os menores, os mínimos detalhes e gestos
são normatizados.
Todos,
homens e mulheres, passam a ser, então, os próprios controladores
de si mesmos a partir do mais íntimo de suas mentes. É
assim que se instala o puritanismo, do qual se origina, segundo Tawnwy
e Max Weber, o capitalismo avançado anglo-saxão. Mas até
chegar a esse ponto foi preciso usar de muita violência. Até
meados da Idade Média, as regras morais do Cristianismo ainda
não tinham penetrado a fundo nas massas populares. Ainda existiam
muitos núcleos de "paganismo" e, mesmo entre os cristãos,
os controles eram frouxos.
As
regras convencionais só eram válidas para as mulheres
e homens das classes dominantes através dos quais se transmitiam
o poder e a herança. Assim, os quatro séculos de perseguição
às bruxas e aos heréticos nada tinham de histeria coletiva,
mas, ao contrário, foram uma perseguição muito
bem calculada e planejada pelas classes dominantes, para chegar a maior
centralização e poder.
Num
mundo teocrático, a transgressão da fé era também
transgressão política. Mais ainda, a transgressão
sexual que grassava solta entre as massas populares. Assim, os inquisidores
tiveram a sabedoria de ligar a transgressão sexual à transgressão
da fé. E punir as mulheres por tudo isso. As grandes teses que
permitiram esse expurgo do feminino e que são as teses centrais
do Malleus Maleficarum são as seguintes:
1)
O demônio, com a permissão de Deus, procura fazer o máximo
de mal aos homens a fim de apropriar-se do maior número possível
de almas.
2)
E este mal é feito prioritariamente através do corpo,
único "lugar" onde o demônio pode entrar, pois
"o espírito [do homem] é governado por Deus, a
vontade por um anjo e o corpo pelas estrelas" (Parte I, Questão
I). E porque as estrelas são inferiores aos espíritos
e o demônio é um espírito superior, só
lhe resta o corpo para dominar.
3)
E este domínio lhe vem através do controle e da manipulação
dos atos sexuais. Pela sexualidade o demônio pode apropriar-se
do corpo e da alma dos homens. Foi pela sexualidade que o primeiro
homem pecou e, portanto, a sexualidade é o ponto mais vulnerável
de todos os homens.
4)
E como as mulheres estão essencialmente ligadas à sexualidade,
elas se tornam as agentes por excelência do demônio (as
feiticeiras). E as mulheres têm mais conivência com o
demônio "porque Eva nasceu de uma costela torta de Adão,
portanto nenhuma mulher pode ser reta" (1,6).
5)
A primeira e maior característica, aquela que dá todo
o poder às feiticeiras, é copular com o demônio.
Satã é, portanto, o senhor do prazer.
6)
Uma vez obtida a intimidade com o demônio, as feiticeiras são
capazes de desencadear todos os males, especialmente a impotência
masculina, a impossibilidade de livrar-se de paixões desordenadas,
abortos, oferendas de crianças a Satanás, estrago das
colheitas, doenças nos animais etc.
7)
E esses pecados eram mais hediondos do que os próprios pecados
de Lúcifer quando da rebelião dos anjos e dos primeiros
pais por ocasião da queda, porque agora as bruxas pecam contra
Deus e o Redentor (Cristo), e portanto este crime é imperdoável
e por isso só pode ser resgatado com a tortura e a morte.
Vemos
assim que na mesma época em que o mundo está entrando
na Renascença, que virá a dar na Idade das Luzes, processa-se
a mais delirante perseguição às mulheres e ao prazer.
Tudo aquilo que já estava em embrião no Segundo Capítulo
do Gênesis torna-se agora sinistramente concreto. Se nas culturas
de coleta as mulheres eram quase sagradas por poderem ser férteis
e, portanto, eram as grandes estimuladoras da fecundidade da natureza,
agora elas são, por sua capacidade orgástica, as causadoras
de todos os flagelos a essa mesma natureza. Sim, porque as feiticeiras
se encontram apenas entre as mulheres orgásticas e ambiciosas
(I, 6), isto é, aquelas que não tinham a sexualidade ainda
normalizada e procuravam impor-se no domínio público,
exclusivo dos homens.
Assim,
o Malleus Maleficarum, por ser a continuação popular do
Segundo Capítulo do Gênesis, torna-se a testemunha mais
importante da estrutura do patriarcado e de como esta estrutura funciona
concretamente sobre a repressão da mulher e do prazer.
De
doadora da vida, símbolo da fertilidade para as colheitas e os
animais, agora a situação se inverte: a mulher é
a primeira e a maior pecadora, a origem de todas as ações
nocivas ao homem, à natureza e aos animais.
Durante
três séculos o Malleus foi a bíblia dos Inquisidores
e esteve na banca de todos os julgamentos. Quando cessou a caça
às bruxas, no século XVIII, houve grande transformação
na condição feminina. A sexualidade se normaliza e as
mulheres se tornam frígidas, pois orgasmo era coisa do diabo
e, portanto, passível de punição. Reduzem-se exclusivamente
ao âmbito doméstico, pois sua ambição também
era passível de castigo. O saber feminino popular cai na clandestinidade,
quando não é assimilado como próprio pelo poder
médico masculino já solidificado. As mulheres não
têm mais acesso ao estudo como na Idade Média e passam
a transmitir voluntariamente a seus filhos valores patriarcais já
então totalmente introjetados por elas.
É com a caça às bruxas que se normaliza o comportamento
de homens e mulheres europeus, tanto na área pública como
no domínio do privado.
E assim se passam os séculos.
A
sociedade de classes que já está construída nos
fins do século XVIII é composta de trabalhadores dóceis
que não questionam o sistema.
Autoria:
Rose Marie Muraro
Histórias
Ocultas E-mail: [email protected]
Imagens:
Google/ Dark Arts "jason beam"