Aquele fio de saliva que já chegava a deslizar por seu pálido pescoço...
Seu desejo de beija-lo, mais forte ainda, aquele cheiro doce de flor, que Hiei exalava, enlouquecedor. Era uma promessa de beijos ainda mais doces, mas eram apenas sensações, Kurama não conseguia mais pensar, tornando-se somente sensações que faziam seus instintos mais selvagens aflorarem, não importasse que ao seu redor o mundo estivesse se acabando em fogo, não importava que todos estivessem morrendo e ele soubesse que encontraria a morte naqueles lábios...
Impossível resistir...
Soltou as mãos lentamente das raízes em que se segurava, ignorando a aspereza que o feria, mas não era a dormência da raiva que agora o impedia de sentir qualquer coisa, não estava mais se lembrando de que não era um animal, todos seus impulsos eram essenciais, básicos, fome, calor, medo, desejo... tudo era apenas uma sensação que o fêz rastejar pela lama, aproximando-se como um pálido felino de mãos e juba vermelhas, suas pupilas dilatadas, evitando qualquer ruído, seu respirar abafado pela ânsia, arquejando brevemente, o cheiro tão doce... Kurama estava alheio a se deixar rastejar, tão servil, implorando por alguma coisa que não sabia conscientemente o que era, e nem importava.
Mas quando viu que não era a única criatura afetada por aquela visão, por aquele cheiro, voltou a ficar imóvel, seus dedos se fechando na lama escura da outra margem do córrego, e somente olhou, indiferente, no mais invejoso, o que também surgia de entre as folhas, perto dele, aquele focinho fino de gazela, cheirando, esbarrando o queixo de Hiei, cheirando também suas roupas sujas... A gazela também não parecia se importar muito com os rugidos, com a ameaça do híbrido cuja destruição era algo que parecia tão pequeno perto do que acontecia agora...Pois aquele não era um monstro de verdade... Aquele sim, este sim era um verdadeiro monstro...!! Impressão apenas sua ou Hiei estava maior? Ou via-o assim por que estava parado? A lama deslizava entre seus dedos compridos e muito vermelhos, da mesma forma que a língua da gazela deslizava sobre a saliva de Hiei, subindo por seu pescoço como se encontrasse algum prazer profano em faze-lo, sorvendo a saliva que também estava sobre o queixo dele, cheirando, procurando. Kurama estremeceu e sentiu o ímpeto de fugir, ao mesmo tempo em que a gazela também sentiu isso, quando os olhos de Hiei deixaram subitamente, de estarem perdidos no espaço para fixarem-se nela, e tudo acontecia tão rápido, tão selvagem que era uma perfeita obra de arte do terror, o terror estava nos olhos da gazela, enquanto ela sentia que estava perdida, perdida como estaria Kurama se fosse ele a aproximar-se primeiro.
O animal não foi rápido o bastante para escapar do salto, e não foi forte o bastante para se livrar das unhas afiadas que rasgaram fundo seu couro, abrindo-o quando seu dorso foi agarrado em um abraço de morte, e a doçura daquela saliva que era um puro néctar de flor venenosa foi a última coisa que provara antes de morrer, quando Hiei aproveitou-se daquele descuido, da pouca distância, para lançar a cabeça para o lado, rompendo as veias do pescoço da gazela, fazendo o sangue espalhar-se sobre si, sobre a terra, sobre as folhas ao redor...
Então, Hiei a devorou, o calor da carne sendo despedaçada a dentadas ferozes e famintas podia ser percebido até na distância em que Kurama estava.
Tudo tão rápido.
Tudo tão perfeitamente violento e natural.
Todos seus gestos quase ocultos pela penumbra das árvores, pelo escuro de entre as folhas e galhos e raízes expostas.
O som da carne sendo vorazmente devorada o fez pestanejar. Poderia ter sido ele. Deveria ter sido ele. Aquela era a sua doce flor de fogo, o menino que não se deixava tocar. Era fascinante, era terrível, e por isso era encantador. Genkai não precisava ter criado mas uma aberração para adornar as sangrentas lendas que viviam naquela floresta escura e desabitada, somente para ver-se livre de Kurama. Kurama teria se entregado passivamente a morte naqueles lábios pequenos e deliciosos, deixaria com todo o mais pervertido dos prazeres que fosse a sua garganta a próxima a ser rasgada para saciar aquela fome impressionante.
Mas não teria este prazer tão cedo, talvez nunca chegasse a experimenta-lo. Haveria de morrer sim, por aquela hedionda criatura que estava exatamente a um passo deles. Vencendo precipitadamente as distâncias, agora tão grande e esguio, um tanto humanóide, que conseguia já arrancar as árvores menores em seu caminho, e o fazia sempre com aquele rugido, gritando e esperando como se o estivesse chamando. E era indecente e nojento Kurama descobrir que aquela coisa estava chamando por ele mesmo. Por ele!! E pior, ele compreendia naqueles sons que ele era procurado, que era chamado, que com a obediência de uma criança, aquela aberração fazia o que Genkai ordenara. Farejava o ar, expandia um youki distorcido em busca do dele, que agora estava contraído ao máximo que podia, tentando não se fazer perceber. Seu cheiro de rosa era único naquela floresta do Makai, era inconfundível de todas as flores daquele mundo, era tão estranho a tudo o que era natural ali que era como ser um intruso em um mundo no qual ele deveria ter seu lugar, pelo sangue que dividia, naquele laço profano de seu nascimento.
Escutava os rugidos muito mais perto, mais a escuridão natural da floresta não deixava que ele visse o que estava logo tão perigosamente perto. Hiei continuava naquele estado de quase transe, devorando, aquela carne rasgando-se em um ruído baixo e intimidador. De repente, um par de mãos... Não, reconheceu que não eram mãos!!... Eram garras nuas de pelos, mas de dorso coberto de negros e longos espinhos, abarcavam num só gesto duas árvores, que fechavam as margens do riacho do resto da floresta, impedindo que fosse possível seguir por ele mais adiante. E, quando aquelas garras apertaram, e puxaram, as árvores não se partiram, não estremeceram com seus grossos caules partidos, e sim foram arrancadas inteiras do solo, grandes torrões de terra caindo pelo ar quando elas foram erguidas e jogadas longe, e naquele curto espaço de tempo, em que foram tocadas pela fera, estavam quase podres, secas e se desmanchando.
Não havia engano nenhum, a fera estava agora cara a cara com Kurama, e seu rugido era tão alto, tão forte, que o ar deslocava-se numa lufada fétida. Aquele híbrido não tinha alma. Não importava o poder que tivesse, a força, mas não tinha alma, era como aquele que havia morrido ao sair ao sol, na prisão onde Genkai estava. Mas nem de longe o medo que sentira naquele dia se comparava ao de agora, não havia escuridão dissimulando as formas medonhas, e não havia lugar algum para onde pudesse fugir, e nem fazia idéia de como mata-lo, não havia certeza nenhuma sem que fosse a de que queria lutar, não se deixar render-se assim.
O monstro de espinheiro estava olhando para ele, esperando por um gesto para atacar. Estava agindo como uma serpente que montasse o bote, esperando que o medo fizesse Kurama se trair e tentar fugir, o que seria muito pior. Por um momento, Kurama viu a si mesmo fazendo aquilo antes, também sendo um monstro tão cruel quanto aquele e mais uma vez sentia que era aquilo que estava se tornando. Deslizou a mão pela lama, e mesmo que a terra estivesse fria, ele sentia que seus dedos se aqueciam, o vermelho subia por seus braços, enquanto ele contava as bufadas revoltantes daquele monstro, cuja face era muito parecida com o esqueleto de um animal, a cabeça descourada de um bicho, que estivesse em carne viva, seus músculos e as órbitas marrons de seus olhos muito expostos. Revoltante. Genkai não dera a oportunidade de viver a nada que valesse a pena, exceto Hiei e aquele híbrido viera para mata-lo também, no final das contas.
Estava concentrando seu youki para reagir de uma só vez, mas também não poderia deixar Hiei ali, como estava gora, com o término de sua refeição: sentado no meio de todo aquele festim sangrento e olhando para suas próprias mãos, lavadas de sangue. Mãos tão pequenas... Ele era todo tão pequeno, que talvez não conseguisse se defender sozinho!!
Kurama encarou de volta por mais uma vez o gigante que o olhava fixamente com suas órbitas expostas como se procurasse entender o que ele significava, tentando assimilar que Kurama também fosse um híbrido... Fez neste instante uma coisa que contrariava todo seu proceder, mostrara seus dentes num esgar de fera e fizera um ruído de ameaça, saltando sobre a lama, sobre a terra pisada daquela margem tão estreita do córrego.
No mesmo movimento do salto, espalhou várias das sementes que deixava escondidas em seu cabelo, arrastando-as de lá com seus dedos (da cor que se confundia com eles, vermelhos como o sangue que sempre estivera em suas mãos, nesta vida e naquela que um dia fora de Kurama, o Youko...), jogando-as sobre a lama num gesto largo, quando só havia tempo para se erguer e pular sobre Hiei, segurando-o sobre a cintura e usando seu peso para mantê-lo junto ao chão, em que o híbrido, gigantesco, apavorante, arrastava as árvores dalí, tentando pega-lo, seu avanço, em quatro patas, massacrando o chão, revolvendo a terra, entre galhos apodrecidos e a viscosidade que brotava de seus músculos e poderosos, gotejando dos extremos de seus espinhos, num odor fétido que empesteava o ar pesado do bosque, o ar carregado e sem vento, que anunciava mais um temporal; aquele céu cor de chumbo, recortado de raios silenciosos, a única coisa a testemunhar a luta pela vida de seres que desafiavam a própria vida por existirem simplesmente.
Sentindo aquela deslocação de ar agora quase às suas costas, Kurama não sentiu que apertava com mais força ainda Hiei contra o chão, e ele, quase inerte, não tivera tempo de reagir, parecia acordar agora, como se houvesse despertado, mais do que ter acordado depois de desmaiar nos braços de Kurama na noite anterior, agora, a luz em seus olhos vermelhos parecia trazer claridade a tudo. Olhou com susto para aquele rosto pálido e transtornado perto do seu, sem saber se o sangue que estava na sua boca era seu mesmo ou de outra criatura. Tentou fazer força para sair daquele abraço firme, e foi assim que deu-se conta, olhando para o lado, que estava não mais no meio da floresta (e ele nem sabia como havia ido parar lá...), e sim no meio de uma vala de terra revolvida, ao redor de umas poucas árvores que restavam, por serem pequenas e flexíveis demais para se romperem com o gesto do monstro que os atacava, mas até estas já morriam do jeito terrível que tudo que o monstro tocava morria, apor terem sido tocadas por seus finos tentáculos que saíam de suas palmas.
E eles viram, lado a lado, enquanto erguiam-se, como a fera aproximava-se mais e mais, com outros estrondos, com mais gritos, estridentes e quase ensurdecedores, Hiei e Kurama sem pensar deram-se as mãos, e Kurama tentava fazer com que ele ficasse atrás de suas costas, tentava defende-lo, não sabia como, e ainda levava as mãos de volta à cabeça, puxando as últimas sementes e arrastando Hiei para que corressem, terminando de completar um semicírculo ao redor da fera.
Hiei nunca havia visto nada igual, nada tão terrível. Se havia um inferno em algum lugar, e se nele haviam demônios verdadeiros, haveriam de ser como aquela coisa encurvada, coberta de espinhos, humanóide, de carne exposta, que os perseguia. E nem conseguia distinguir o que era aquilo, mas reconhecia, não imaginava como, e sentia-se semelhante a ele também, da mesma forma que sentia-se semelhante a flor que segurava-o pelo pulso, que o largava agora, para enfiar os dedos na terra revolta e vibrante do youki do híbrido, concentrando o seu mesmo o máximo que conseguia, e a dor que Kurama sentiu, quando o fez, como se seu coração fosse explodir no peito, tanta foi a força de que precisou para não esgotar-se de uma só vez, também foi a dor de Hiei, e também era a dor da fera. E desta foi a dor, quase imediatamente, unicamente dela, de sentir o meio do seu corpo varado de galhos afiados, aquelas mesmas sementes que Kurama espalhara em meio círculo, por onde correra com Hiei, fazendo a aberração girar sobre si mesma, aproveitando seu tamanho para prende-la.
Só que havia esquecido-se
de um detalhe, e foi lembrado dele tarde demais, somente quando ele viu,
quando se levantava, tonto pelo esforço, a mão de Hiei sobre
seu ombro, como se querendo avisa-lo de que algo estava errado. Aquela
coisa inominável silenciara com o golpe, como se todo o seu ar fosse
perdido de uma vez, todavia, no mero instante de imobilidade que teve,
foi não para outra coisa, e sim sugar a seiva e o youki daqueles
galhos que se enviesavam em suas entranhas. Sem querer Kurama o estava
deixando mais forte.
O que eu devo fazer? Minha espada não está aqui... Eu preciso dela para fazer alguma algo, ou esta coisa vai acabar conosco... Por que eu me importo com ele? Ele não é nada para mim... O que eu posso fazer? Eu não sei o que fazer... eu não sinto o meu youki, eu não sinto nada, somente este gosto de sangue...
“Ainda está aí!!”
Hiei arregalou seus olhos com aquele grito, aquelas palavras ditas por sobre o ombro, enquanto Kurama adiantava-se, um algo que parecia uma cobra subindo por dentro da manga de sua túnica agora enegrecida de lama e sangue, e surgindo como um chicote, rodando no ar, estalando, fazendo seu youki afeta-lo de tal modo que toda sua pele estava vermelha e não só suas mãos.
Hiei apertou as beiradas do obi, juntando-as rente ao pescoço sujo, sufocado e friorento, mas sentindo-se também cheio, feito houvesse mais ar dentro de seu peito do que lá coubesse. Adiantou-se, para estar sempre perto de Kurama, melhor estar perto do que ser um alvo fácil demais sozinho, desorientado e sem saber o que havia acontecido com aquela energia que não muito tempo atrás ainda conseguia flamejar nas suas palmas, mas quando tentava se aproximar, uma das patas da fera impediu-o de continuar, e o rugido veio em sua direção, e não adiantava em nada Kurama tentar chamar sua atenção, o chicote se dilacerava todas as vezes que encostava em seu dorso coberto de espinhos...
“Não corra!!” – Kurama gritou de novo, mesmo que Hiei também percebesse que seria um erro fazer isso. A fera estava mais uma vez concentrando-se em olhar para ele da mesma forma que encarou aquela rosa demoníaca. – “Não corra!... Ainda esta aí!!” – Ele dizia mais uma vez, e Hiei imaginou do que ele estaria falando. Havia tantas coisas que queria saber, e eram perguntas demais de uma só vez, tantas que a única coisa que ainda poderia motiva-lo era ter aquelas respostas.
Hiei somente olhou para ele, por entre as pernas longas, as patas horrendas, animalescas, um arremedo humano mal feito... De uma única vez, ele apercebeu-se frente ao que estava. Não havia dúvida de que era um híbrido, e que Genkai havia dado seu sangue àquela criação, por isso aquela coisa tinha formas mais impressionantes ainda, tanta astúcia...Hiei olhou para Kurama como a perguntar o que fazer...
Que ironia, ele comandara exércitos, conquistara fronteiras e tivera seu nome dito com temor entre seus soldados, tamanha era a sua ferocidade e pela primeira vez não sabia o que fazer. Estava frente a frente com o mais terrível inimigo...
E somente sentia aquele algo transbordante...
Crescente...
Ardente, subindo por dentro
dele, se misturando ao gosto de sangue...
******
“Eles já foram convocados, majestade. Tomei a liberdade de envia-los diretamente as fronteiras da terra de ninguém, onde estão esperando por suas ordens”
O conselheiro de guerra de Yomi não quis adiantar-se em mais aquele passo dentro do vestíbulo dos aposentos do rei, tão opressiva era a escuridão que reinava ali dentro. Suas notícias avisando-o dos mercenários não tardaram. Restava agora ele saber o que mais Yomi queria que fosse feito, qual ordens ele daria e...
“Se eu não estiver sendo indiscreto, majestade... o que pretende, no final de todas estas ações?” – O youkai de avançada idade que era o conselheiro riu nervosamente, estremecendo perante a resposta que era sempre um silêncio compenetrado de Yomi, sentindo as partes de sua armadura tilintarem.
“Está sendo indiscreto, sim.” – A voz profunda e subitamente mais grave de Yomi veio, ele estava muito mais perto o tempo todo do que o youkai supunha e estava quase invisível pelas roupas que vestia... A luz que entrava do corredor pelas bandas abertas da porta do quatro dele o iluminaram. Mas... qual raios... Yomi vestia um traje de batalha!!
“Majestade! Mil perdões, mas isso é...??!” – O conselheiro quase não acreditava no que via, era como estar vendo diante de seus olhos o mesmo Yomi de anos atas, não o rei, mas o bandoleiro que erguera seu império ali. Não era mais o Yomi que ele conhecia... ou achava que conhecia.
Um som de ar sendo riscado foi a única resposta que ouvira, antes de sua cabeça tombar no chão, ainda tão rápido acontecera e tão de repente, que ela, sozinha e inerte, ainda tentara mover seus lábios num impropério, enquanto rolava no chão, parando quase ao lado dos pés do sentinela que guardava a porta do quarto.
“Você era muito sábio, companheiro. Pena ter se esquecido daquele velho ditado... O silêncio é de ouro.”
Então, ele saiu do quarto, passando por cima do cadáver que inundava o chão com um lago de sangue esverdeado e viscoso. Foi assim que os dois sentinelas viram, em silêncio, embora impressionados e impassíveis, o que provocara aquele inoportuno comentário do conselheiro de guerra.
Yomi estava em vestes que
não eram suas usuais túnicas, não eram roupas de cerimonial,
tampouco. Eram os trajes de batalha, de couro negro, estreitas, fazendo
com que ele ficasse parecendo mais alto ainda, mais pálido e igualmente
fazia surgir um ar de atrevimento em seus gestos. E seus cabelos, estavam
soltos do mesmo modo que sempre, mas pareciam refletir o que havia em seu
coração, e em seu andar, eles ondulavam com selvageria, seus
chifres, muito brancos, muito lisos, reluzindo no meio deles...Saindo assim,
era com se deixasse seus envolvimentos reais para ser apenas um homem em
busca de saciar aquele desejo. Que desejo? Aquele desejo tão antigo
quanto seu ódio, aquele amor que também era um pouco disso,
que também era decepção e alegria. Ele estava descendo
aos jardins do inferno que era o Makai naquele instante, para colher a
sua flor de fogo...
Não houve quem se atrevesse a estar em seu caminho quando Yomi atravessou os corredores, os criados acompanhando a ida de um perfeito bandoleiro, com aquele olhar indeciso de surpresa e medo e admiração. Então, aquele era o discreto Rei Yomi, antes de subir ao trono?... Esta também foi a pergunta que se fizeram os soldados, dispensados, encostados todos nas colunas e muros do pátio da frente, e do general que estava com eles, quando o viram passar. Ao longe, atravessando os muros, indo sozinho encontrar o desconhecido. Estavam tão concentrados em sua bisbilhotice de soldados ociosos e covardes que não perceberam, que quando Yomi passou, antes de sair dos limites do castelo, quando passou ao lado do capitão da guarda de Gandara voltou-lhe brevemente o rosto dizendo:
“Execute-os, os indolentes. Desertores e traidores.” – Ele se referia inquestionavelmente, aos que se recusaram a obedecê-lo e ainda perdiam seu tempo vagabundando tal aqueles pátios pertencessem a eles mesmos.
Yomi lamentou não poder ficar para escutar (e somente escutar...) os gritos de protesto e misericórdia daqueles soldados quando a guarda interna viesse prender a todos, convocando um imediato tribunal marcial. Erguendo ali mesmo, depois que os portões foram cerrados detrás de si, com um pesado baque, um cadafalso e erguido também o machado do carrasco...
******
Uma movimentação estranha se deu nos acampamentos que resguardavam o limite da floresta, um campo estreito como uma garganta e opressivo, claustrofóbico, dada a dificuldade de sair dali se houvesse um ataque. Caso fossem atacados, aqueles soldados morreriam todos. Mukuro não lamentaria por aqueles youkai fracos, que já morriam em simples brigas entre si, quanto mais enfrentando aquela besta vermelha que a aleijara mais ainda. Bando de idiotas... Pena não poder ver, da distância que estava, ali, jogada num catre, sentindo sua carne formigar em torno dos implantes de ligas com que reconstruíram seus ossos quebrados, por baixo da pele, o que fazia os soldados correrem todos para o lado mais alto do acampamento, alguns, subirem nas pedras da encosta que isolava aquela passagem, apontando, gritando uns pelos outro, chamando.
Ela fez um esforço e chamou por um dos médicos que cuidavam dela depois de seu embate com Yomi... Pura sorte ter um youki tão forte para se recuperar tão rápido... O curandeiro veio, e escorando-se no ombro dele, sentindo os componentes de seus membros metálicos, refeitos, estalarem, as peças deslizarem uma na outra com um estridente que dava nos nervos... Chegando até a entrada de sua tenda, onde foi amparada também pelos soldados que estavam por perto, olhando somente aquela agitação, ela foi informada em termos muito simples do que estava havendo.
“É o fim do mundo, Rainha Mukuro.”
“Como assim???” – Ela alarmou-se, vendo que não só surpresa transparecia na face de sua tropa quanto medo. Desvencilhou-se dos soldados e conseguiu se manter de pé, com dor e custo.
“Os soldados escutaram os rugidos de um monstro, majestade, tão grande que pôde ser visto das encostas, pelos sentinelas, que nos avisaram aqui embaixo. Ele está destruindo a floresta, mas não parece estar vindo neste rumo!”
“Está indo para os abismos que fazem o outro extremo da floresta?”
“Não. Está no mesmo lugar, destruindo as árvores, pelo que os sentinelas viram.”
“Maldita!!!” – Mukuro sussurrou, mordendo a língua para não dizer o nome de Genkai, o que sempre lhe trazia mau agouro, ou pelo menos era a impressão que tinha.
“O que devemos fazer, majestade??”
“Por enquanto nada. Ele não está nos atacando... Não reconhece a espécie dele?” – Voltou-se para o chefe do acampamento, estreitando seu olho humano, o outro ajustando-se a distância.
“De modo algum, majestade!”
“Como eu imaginava...”
“...”
“Genkai fez aquilo de novo!...” – Ela deu alguns passos para a frente, escutando muito ao longe, com seu ouvido biônico, um arrebentar de troncos. – “Mas talvez ela ainda possa ser útil para nós.”
E começou a avaliar o que levara Genkai a ter gerado, com parcos recursos naquele lugar sem nenhuma tecnologia, um ser de destruição tão poderoso, tão grande. Talvez ela também quisesse acabar com o que Shiori, a nigen, havia criado. Motivos? Quê importava? O que lhe importava somente era que estava muito próxima de uma vingança, contra Kurama, a rosa, e Yomi. Ainda que esta viesse por mãos que não fossem as suas.
Quase poderia tentar adivinhar o que Genkai queria agora, mas ela se tornara tão imprevisível, depois de ter enlouquecido, o poder que tinha (ou achava que tinha) subira a sua cabeça, anos atrás, e começara a criar híbridos perigosos como aquele, procurando sempre, e ela o admitira mesmo durante seu julgamento, que procurava a alma que pertencia a eles, perdida em algum limbo inexplicável, apenas a espera de um corpo para continuarem suas vidas a partir do ponto em que pararam. Heresia contra todas as leis dos três mundos. Mukuro tomara imediatamente a decisão de executa-la. E naquele dia...
Pensou em Yomi, em suas palavras duras, em seu olhar cerrado e acusador, se é que poderia conter as duas coisas em si, na dura lição que recebera, de não confiar em si mesma em demasia. Poderia ter tentado mata-lo só por ele atrever-se a dizer o nome de Hiei. Sete meses. Sete meses sem Hiei ao seu lado no seu reinado. Fora ele que não deixara o carrasco matar Genkai e assumira o poder de vida e morte por ela, sendo que a única condição para que ela continuasse viva era nunca sair dos limites do reino de Mukuro, onde ele poderia seguramente saber onde ela estava, graças àquele terceiro olho, o jagan violeta que ele trazia em sua testa... Mas quando ele desaparecera...Ah, mas o que estava acontecendo? O chão estava estremecendo...
Aquele monstro estava emitindo youki, caótico e distorcido, não havia padrão algum, no entanto se ele tinha um youki, era um sinal claro de que Genkai estava usando sangue youkai, talvez o seu mesmo, para originar aquela aberração. E além daquele, havia um traço muito forte de mais outro, fazendo o chão vibrar numa freqüência diferente, porém crescente, apenas ela entre todos aqueles youkai percebia isso, o metal das peças que compunham a parte biônica de seu corpo servia de uma maneira peculiar para lhe indicar isto.
Não era natural que isso acontecesse... O youki de Kurama, aquela rosa que entrevira na escuridão da prisão não reagia assim, havia traços dele somo um rastro que poderia seguir mata adentro, mas não estava forte a ponto de percebê-lo vivamente. Talvez ele estivesse morto, pois estava quase desaparecendo... O youki de Yomi, quando a derrubou, também não. Só havia uma forma daquela energia que fazia os metais de seu corpo vibrarem...
“Mas ele está morto!!!!!!”
******
Sim, ele estava morto, ao mesmo tempo que não estava. Estava morta a sua vida de antes, mas não as lembranças que tinha dela, de cada instante que lhe pertencera então, e agora não mais. Não sentia-se outro, no entanto, sentia-se diferente,sem saída alguma...
“Está aí... Ainda está aí, Hiei!” – Kurama disse movendo os lábios sem som. – “Não corra!...”
Não correr. Hiei nunca fugira, recuara, mesmo quando estivera frente a frente com a maior de todas as tentações, ele não se entregara a nada sem lutar, sem resistir, sem dignidade. Aquela fera olhava-o nos olhos, tentando prever seus movimentos, acompanhando até seu respirar tenso. A seda de suas roupas não o aquecia do frio que subia por dentro dele. Mas as pontas de seus dedos sujas do sangue da gazela estavam tão quentes... Não correr. Mas Kurama estava movendo-se devagar, erguendo o chicote de novo, um vento que desgraçadamente levava seu cheiro permeado de adrenalina soprou no sentido contrário e a fera virava-se a tempo de encara-lo também, dispensando momentaneamente Hiei, porém, não só voltou-se contra Kurama quanto errou de parti-lo em dois, se ele não se esquivasse, se não saltasse para o lado, correndo de novo, desistindo de espalhar as sementes que falharam anteriormente. A fera continuou a golpear, inconformada, errando sempre por muito pouco e cada vez menos , escavando em cada investida de suas garras, alternadamente, valas fundas e estreitas e paralelas, sinais de onde suas unhas riscavam a terra, e reduzindo as beiradas da túnica de Kurama a tiras, e por mais que tentasse continuar a lutar, não conseguia, exausto daquilo, e por fim deixando-se cair sobre os joelhos, olhando por cima de seu ombro, como o monstro parecia rejubilar-se em não ter pressa de chegar-se a ele. O chicote mais uma vez desfeito e sem energia para reconstruí-lo, depois do derradeiro golpe, estava enegrecido em torno de sue braço, e se desfazia em um pó denso e negro, tão fétido quanto o esqueleto com restos de carne que estava pronto para devora-lo, faminto de sua carne e de seu youki, pronto a crescer mais ainda depois disso...
Kurama pensou em tudo o que vira até alí, certo de que teria seu fim, todavia, lamentando muito mais por Hiei estar vendo aquilo, por com certeza ele não conseguir se defender sozinho... Algumas rosas desabrocham para morrer em seguida. Outras, como ele se via então... morreriam assim, em botão. Lembrou-se de sua mãe. Gratidão, ressentimento, ele não sabia nomear o que passava em sua cabeça. Mas quando se lembrou, quase escutando aquela risada desvairada, de Genkai, só o que havia era raiva...
Ele se sentiu tão pequeno, sob a sombra do monstro que eclipsava o dia escuro sobre suas cabeças, e sentia-se pesado demais para erguer-se do chão, cada instante que sentia aquele youki como a devorar antecipadamente o seu era como sentir que sua pele, tão vermelha, neste momento, estivesse mesmo em chamas...
Ardia, quente como em brasa, pedia a tudo, ao nada, que algo, alguma força superior, se houvesse, que cuidasse de Hiei agora quer ele havia fraquejado. Tão quente... estava sentindo-se em fogo. Fogo. Havia fogo sobre a terra! Tudo o que via, ainda que fechando seus olhos estava em fogo, escarlate como ele vira suas mãos, encarnado como eram os olhos do menino que ele beijara debaixo da tempestade. Havia fogo em tudo ao redor deles, fogo verdadeiro, a fera estava vendo, sentindo, que ao redor deles se formava um redemoinho de fogo, que serpentava baixo sobre o solo sem mata, calcinando a terra e queimando os galhos que se misturaram a ela na destruição que se dera.
Kurama não conseguia fixar a vista além das formas terríveis que se contorciam para ver de todos os lados o que estava acontecendo, e vinha aquela pata em garra em sua direção, os tentáculos se abrindo pelas brechas dos músculos sem pele do híbrido, prometendo um abraço fatal em torno dele, um quente e apertado abraço em que sua carne iria e desfazer como ele vira acontecer com as árvores, com as outras plantas. O fogo que corria sobre a terra se fechava em torno do híbrido gigantesco, separando-o dele, mas mesmo quando Kurama ainda tentava fazer um doloroso esforço para afastar-se mais daquela coisa, ela caíra sobre ele, tombando para a frente, invencível, espalmando uma das patas sobre ele, soltando um grito de triunfo cheio de um fedor insuportável, que o obrigou a suportar uma náusea violenta, e aquela besta em carne viva usou os dedos, suas longas unhas para fazer de sua mão uma prisão inescapável para Kurama.
Sentindo-se preso entre a terra e aquela mão deformada, ele rolou, suas costas se esfregaram dolorosamente nas terra e nos restos de raízes e lama que estavam nela, e virou o rosto para o lado, num último olhar na direção de Hiei, um olhar marejado de lágrimas de dor, a secreção que gotejava do dorso espinhoso da criatura caía em sua pele, sobre a pele exposta pelos rasgos da túnica, e ela o queimava, e onde deslizava por sua pele, deixava um lastro negro e profundamente machucado.
Fixou a vista com esforço, aquele fogo que era impossível saber de onde vinha consumia as extremidades dos espinhos que desciam pelos calcanhares da besta, mas não estava somente fazendo isso, o fogo estava ficando mais denso como se estivesse se concentrando, e nessa densidade, escurecia, e em breve, muito breve, Kurama via, maravilhado na dor e na iminência da morte, que o fogo tornava-se negro, e quando isto acontecia, ele também podia ver, mais com sua intuição, e notar pela forma que o mostro ficava subitamente imóvel, de dor e desespero, que o fogo estava já queimando sua carne, chegando aos seus grandes ossos e seu sangue escuro e grosso espalhava-se pelo chão, queimando também. No meio daquele redemoinho de fogo, havia somente Hiei, sua túnica negra era exatamente da cor que fogo tornara-se, e seus olhos estavam tão vermelhos quanto somente Kurama vira que eram.
Ele tinha um braço erguido na frente do corpo, e todo o fogo o envolvia, em negro, sua pele escurecida e negra como seus cabelos, como uma imagem esculpida com delicadeza em ébano, seu youki mais forte do que Kurama sentira quando lutaram naquela noite da tempestade, flamejando em negro, todo em negro, como um sonho que nunca Kurama poderia esquecer, afinal tornado realidade, com um algo tão familiar, e tão apavorante... O jagan, seu terceiro olho, violeta, tão brilhante quanto seus olhos...
Só que nem tudo era sua surpresa, de ver Hiei abrir-se, soltar o youki destruidor que dormia dentro dele, depois de descobrir que aquela não era a vida de que ele se recordava. Sentiu algo se insinuar, rasgando primeiramente o tecido das mangas de sua túnica, e soltando um grito, em que não disse nome algum, não quis dizer nada além de seu horror frente à morte que viria, viu que os tentáculos vinham em sua direção, em cheio sobre sua cabeça, errando por pouco tocar seus cabelos, e mais daquela secreção escura gotejava sobre suas pernas e braços, eu ma delas, correu fina e insuportável por seu rosto.
Neste instante, seu grito não havia se extinguido, ainda estava vivo em sua garganta, e tornou-se em verdade o grito da criatura, muito mais alto, quando tirou o braço em chamas de cima dele, seus espinhos entortando-se em finas espirais amolecidas antes de se desfazerem nas chamas negras, sacudido no ar, acima das copas das árvores. Kurama continuou no mesmo lugar, tão somente erguido nos cotovelos, não apercebendo-se paralisado de medo, mergulhado numa recordação que voltava viva como se estivesse acontecendo agora, aquele fogo todo ao redor dele, envolvendo-o, o cheiro de carne queimada. Um cheiro que parecia ser o da sua carne queimando, e não a da fera, como se ele mesmo fosse a fera que devesse morrer, que em um vagalhão de fogo negro, que vinha de ao redor de Hiei, era toda envolvida, encoberta, dilacerada em mil partes em chamas, que voaram pelos lados, pedaços transformados em carvão, de sua carne indo pelo céu em todas as direções, quando o Dragão Negro o envolveu, o atravessou, indo rumo ao céu.
Kurama continuou alí, vendo sem enxergar, aterrorizado, vendo somente o fogo que crescia, incontrolável, quentíssimo, estourando o crânio do gigante, fazendo seus ossos surgirem, brancos e em seguida negros, e suas órbitas expostas, olhando para baixo, sempre para baixo, para ele, para Kurama, e para Hiei, fazendo-o até o último instante, antes de elas explodirem numa geléia esbranquiçada e escorrerem por sua cabeça carbonizada, desfeita aos farelos, na explosão final.
E enquanto tudo acabava, Hiei mantinha aquela mão erguida, o punho cerrado, como fazia ao tentar se defender, mas então conscientemente, ele próprio sem acreditar que poderia lançar aquela descarga de youki sem a necessidade de um condutor. Estava sem reconhecer-se, vendo sua pele tão negra, regressando lentamente a cor pálida de antes, seu jagan que se fechava, no gesto de ele baixar sua guarda, vendo que tudo se acabara num campo de destruição e morte. Era uma grande vala de cremar os mortos de batalha, mas havia somente uma criatura morta,e havia o cheiro dela, carne queimada, nauseante e penetrante, terrível, pelo ar.
O que foi que eu fiz? Eu consegui! Ele estava certo, estava aqui o tempo todo!, pensou, saltando, seu corpo todo cansado, como se não fosse ter equilíbrio nem para suportar-se sozinho, indo para perto de Kurama, que estava do outro lado do trecho de terra calcinada onde o gigante estava de pé momentos antes. A fumaça desfazia-se lentamente, o Dragão Negro que subira aos céus, perdendo-se entre as nuvens, havia feito a chuva se desfazer, e agora o céu se abria em um rasgo cada vez mais largo de azul, as nuvens se espalhando, no vento fresco que dissipava o fedor, e o sol brilhava, inclinado, as sombras longuíssimas, do dia que se acabava... Por que Kurama não se movia? Ele não havia sido tocado pelo monstro, não estava tão ferido e...
Chegando mais perto, passando por cima de um pedaço de tronco que terminava de queimar, Hiei viu, com seus grandes olhos de menino, que os ferimentos não eram fatais, ou pelo menos não o eram para um ser como Kurama, aquela rosa largada no chão, ao lado de seu corpo ainda gotas ácidas da secreção da pele da besta, e fundos furos na terra e na lama, marcas de suas garras. Hiei voltou a se sentir assim... indefeso, quando viu que ele estava com os olhos abertos, olhando para o céu, vidrados, e estava todo pálido novamente, mas estava não com aquela adorável cor de pérola, aquela cor que reluzia na escuridão. Sua pele estava branca demais, azulada, e suas mãos não voltaram ao normal. Estavam vermelhas, clareando aos poucos na pele que subia por seus braços, mas não gradual como já começava a habituar-se a ver. Estava se desfazendo em espirais, a cor desvanecia em espirais muito finas. E os cabelos de Kurama estavam espalhados, sujos de terra, e não mais tinham aquele viço de antes.
Hiei colocou-se de joelhos ao lado dele, olhando-o com muita atenção, vendo que ele chorava, que de seus olhos muito abertos, muito verdes e sem brilho no meio daquelas estranhas faixas violeta, deles corriam finas e abundantes lágrimas, que desapareciam no meio dos cabelos. Ele respirava tão devagar que de longe quase imaginou se Kurama não estava morto.
Pensou nas vezes que Kurama havia salvado sua vida... Mas.. desde quando ele se importara com sua vida? Nunca tivera um pensamento de gratidão, e muito menos por uma criatura que não era youkai e nem ningen, que nem sequer era feita mesmo de carne, mas Hiei teve uma pontada de dor em sua consciência, e tocou-o, colocou a mão pequena e hesitante de leve sobre seu ombro desnudo, revelado pelo tecido rasgado, um dos poucos lugares que via que não estava ferido, e Kurama pestanejou e retraiu-se, voltando o rosto para o outro lado.
“Fale alguma coisa...”
“...” – Ele não respondeu nada. Queria enrolar-se para o lado, ficar sobre a terra, e começou a esfregar seus pés descalços naquele chão feio e revolvido.
“Por favor, rosa... Fale alguma coisa...” – Hiei sentia uma preocupação que não deveria ser particular a ele. O que teria acontecido a ningen que cuidava de Kurama? Talvez ela pudesse saber o que estava acontecendo agora... Hiei tentou tocá-lo mais uma vez, segura-lo pelos braços para levanta-lo, sair daquele cenário de pesadelo, e fêz força para que suas mãos não escorregassem como peso de Kurama. Ele estava completamente gelado, frio como um cadáver.
Em vez de dar-lhe alguma palavra, Kurama o empurrou, mas não querendo machuca-lo, e sim não desejando ser tocado por ele como se esta fosse uma seríssima ameaça a sua vida. Hiei ficou sentado sobre os tornozelos, atônito com aquilo. Aquela flor que lhe falava sempre com tanta doçura irradiava tanto medo que até seu perfume de rosa vinha completamente diferente, embora estivesse muito diferente do que uma lembrança apagada da noite anterior lhe dissesse.
Sentado de costas para Hiei, ele parecia ter enlouquecido com aquilo tudo, e cavava a terra com as mãos feridas, alheio a dor, esfregava os pés na terra, querendo enterra-los, desejando fazer exatamente isso, e quando reconheceu este gesto, Hiei puxou-o com toda a força que tinha, e mesmo menor que Kurama, conseguiu arrasta-lo para longe daquele buraco que ele queria fazer...
“Pelos deuses, o que pensa que está fazendo????” – Gritou, horrorizado com aquilo, como se significasse que estaria a ser próximo. Hiei estava ficando mesmo assustado, como nem quando tinha sua antiga vida dava-se ao luxo de estar.
“...” – Kurama estava chorando com ambas as mãos sobre o rosto, seus ombros sacudidos violentamente.
“Estava tentando criar raízes?? Era isso o que estava tentando fazer??” – Aquele gesto banal de ver Kurama tentando enterrar os pés na terra era-lhe chocante, tanta abominação quanto presenciar uma tentativa de suicídio. E o mais incrível era que nem Hiei mesmo sabia por que se espantara tanto com aquilo... Por que se importava?...
“...”
“Você está com medo? É isso??” – Perguntou, insistindo várias vezes, tentando fazer Kurama olha-lo de frente, fazendo força ao segurar seus pulsos para mantê-lo no lugar, sem cobrir o rosto. Estava soluçando muito, tremendo por inteiro, parecia não reconhecer Hiei, ou não mais confiar nele, como desde o princípio confiara.
Por fim, Kurama fez que sim.
Estava com medo.
Mais um espanto.
Hiei nunca julgara-o capaz de ter medo.
“Do que você tem medo?...” – Sussurrou, sua voz forte demais para seu tamanho soou de repente muito doce, seu rostinho sujo, perplexo, pareciam trazer de volta a mente de Kurama uma, aquela velha certeza de que ele, Hiei, não lhe faria mal algum.
Hiei soltou seus pulsos.
Era inútil conte-lo, ele tinha mais força, mesmo que seu youki estivesse tão fraco.
Kurama continuou chorando, desolado, na sua frente, desfeito e ferido, por dentro e por fora.
De repente ele esticou um braço trêmulo na direção de Hiei, que sem saber o que fazer, achegou-se a ele, reconhecendo aqueles braços, seu coração batendo rápido, irregular.
Abraçados como crianças perdidas na floresta, afinal Kurama respondeu, controlando seu arquejar:
“Eu não gosto do fogo!...”
Ele disse-o tão baixo que Hiei não o escutou de fato. Hiei sentiu aquelas palavras, da mesma forma que Kurama sentia as suas. E dito isto, Kurama sacudiu-se com muito mais força, num pranto convulso e alto. E dizia baixinho, abraçando Hiei com toda sua força, junto a si, que tinha medo do fogo...
E Hiei somente deixou-se abraçar, enquanto anoitecia, escutando aquele choro sentido, e de certa forma acompanhando-o nele, pois ele também trazia seus segredos daquela vida que não lhe pertencia mais... E se Kurama era vermelho como uma rosa, e não se poderia explicar isso, ele também era negro como um pesadelo, e também não saberia explica-lo.
Afinal, pensando bem, eles eram apenas crianças agora.
Continua