A Rosa Escarlate
Astásia

Capítulo 7 - Hiei Carnivorus

Um grito.

Silencioso.

Profundo.

Eterno.

E cheio de tristeza.

Foi um grito terrível, aquele que sacudiu os pássaros que estavam adormecidos nas copas das altíssimas e esguias árvores ao redor. Foi um grito repleto da mais profunda mágoa, que era tão intensa que era quase palpável, que despertou Kurama de um sono conciliado  por acaso, quando  ele estava alí, sentado entre as enormes raízes de uma árvore secular, no raso das águas, abraçando os próprios joelhos, tentando conter a própria tristeza que agora tomava uma apavorante presença.

Aquilo, ele descobriu, não pertencia a nada que fosse da natureza daquele lugar. Não vinha da sua garganta de híbrido, não era nigen e nem era youkai. Seu ki agitou-se perigosamente. E ele não se incomodou com o tecido de suas roupas, aderindo a sua pele, molhado. Saltou de uma vez para o alto de uma árvore, e logo, mais uma vez, para a outra margem, onde ficou olhando ao redor, toda a floresta, ele poderia ver, sob um luar intenso, era feita de frios e sinistros tons de azul.

Outro grito, mais dolorido e mais baixo. Mas também muito, muito triste. Tinha um tom que poderia dizer sua direção, mas era estranhamente semelhante ao tom do silencioso lamento de Kurama.
 

__________
 

Hsssss...

É escuro. Preciso respirar!! Respirar!! Por que meu peito faz tanto barulho quando respiro?! Está escuro! Que lugar é esse?

É noite, sim, é noite. Mas por que os pássaros voaram? Aquele grito foi meu?

Respire, respire com força! Vamos!

Hsssss....

Maldição, o que eu estou fazendo aqui? O que eu estou fazendo jogado no meio desta terra, no meio de excremento de morcego? Esse lugar fede, não posso respirar!!! Não tenho força alguma nas minhas pernas!...

Eu não devia?... Eu não deveria estar?

Hsssss.........

Eu tive um pesadelo, só pode ser um pesadelo, e eu ainda não acordei, sim, só pode ser. Ou eu estou louco, sim, eu enlouqueci e estou no inferno.

Fiz uma loucura e estou no inferno.

Um inferno que me sufoca!

Hssssss.............

Respirar! Como é que eu posso respirar se aqui fede tanto? Não há ar suficiente...

Eu devo Ter batido com a cabeça, quando saltei... E estou louco por toda a eternidade, deve ser isto... Pelos deuses, de onde vem tanta dor?

E esta terra que está entre os meus dedos, quando os fecho? E o fedor... Não consigo me levantar e sair deste lugar...

Dor. Fraqueza.

É real demais.

Não é um sonho, e eu não estou morto!...

EU QUERO RESPIRAR!!!

Eu não acredito que isto está acontecendo!...
 

___________
 
 

Ele sabia o próprio nome e sabia quem era. Tinha em sua mente todas as imagens de sua vida antes de acordar naquela caverna cheia de insetos e morcegos, forrada das fezes daqueles animais, com todas as saídas das rochas rendadas de raízes das árvores e cipós acima dele, na superfície da terra.

Ele sabia o que significava o cheiro de seiva que se desprendia da sua pele pálida, que brilhava fosca na escuridão violeta. Entendeu de uma única vez que não estava no inferno que imaginava que estivesse, e que não estava morto como desejava, e era uma forte vontade que resistia e estava nele junto com a recordação de seu cruel desespero, em uma última cena antes de fechar os olhos para acordar naquela imundice.

Devia ser o inferno mesmo, ele pensava, querendo convencer a si mesmo do que seus instintos lhe diziam.

Ele não estava no inferno.

E não estava morto.

E com certeza, se não estava louco antes, ficaria agora.
 

__________
 
 

Os gritos baixos eram na verdade longos e altos gemidos de lamento, transformaram-se em um soluçar constante, e um grito de negação vez por outra, até que, finalmente, era o choro sentido de uma criança abandonada.

Kurama, ouvindo tudo isso, seguia os ruídos. Incrível ninguém Ter escutado na casa. Talvez fosse algo que somente a mata escutasse e ele também, por ser, afinal, parte dela, enfim, não podia negar sua natureza de rosa… Talvez, podia concluir, sua mãe e a louca Genkai, tenham escutado, e foram mais sensatas que ele, e ficara, em um lugar seguro.

Kurama sentia uma quase irreprimível vontade de chorar, e acompanhar com sinceridade aquele soluçar, no entanto, maior era o desejo de consolar a dor de quem sofria tanto, e portanto, saltava quase perdendo o equilíbrio, de árvore em árvore, como uma mera mancha verde-escura. E ia também com inocência, com a ingenuidade que pedia quando parecia que era o morto Youko que guiava seus sentidos, com a doce esperança de achar lá, no seu destino, um híbrido como ele, uma flor como ele.

Porém, se conseguisse ao menos fazer aquela criança parar de chorar...

Olhou para baixo, quando já estava um pouco longe do calmo rio. Uma fresta negra entre as raízes e samambaias. Kurama estreitou seus olhos, que eram fosfóreos na noite, e desceu, num flutuar sobrenatural, para o chão. Seu Ki ainda agitado, afastou as plantas menores, e ele abaixou-se para olhar, e o fedor gasosos dos animais mortos e fezes dos morcegos e ratos o engasgou, e lhe deu um bom motivo de ser impaciente com as raízes, e as arrebentou com as mãos, livrando o caminho, para poder ouvir, então, claramente, o choro.

Ele viu e não acreditou.

Parecia todo seu desespero feito matéria, no corpo pequeno e esguio, que, sentado sobre as pernas, curvava-se todo em si, sua pele brilhando fosca, lisa, no meio de toda a sujeira. Mãos pequenas tentavam arrancar seus próprios cabelos, e fechavam-se na terra ao redor, tomando-a aos punhados, para largá-los e esmurrar o chão, com uma força que só se justificava pelo tamanho de sua tristeza.

Era um pranto de luto. Uma criança de cabelos negros, repletos de chamas azuis em seus reflexos, lamentava por Ter perdido algo... De onde estava, Kurama não podia distinguir seu rosto e nem seu sexo, mas... fosse o que fosse, não conseguia desfazer o súbito sentimento, uma vontade imensa de envolver aqueles ombros frágeis e estreitos e levar a criança para fora da caverna...

Quem seria o louco que a colocara lá? Aquela criança violentada...

Ela estava lá para morrer?...

...Ou para nascer?
 

__________
 
 

Estava se sentindo realmente imundo quando voltou para as margens cheias de raízes do rio. Agora, depois de se livrar de toda a sujeira que o cobrira, e dos arranhões que pegara quando lutara com aquela criaturinha que era bem mais forte e selvagem do que esperava.

Ainda não sabia que tipo de youkai era aquele, mas sabia que não era um nigen, pois na sua testa havia um terceiro olho atento e faiscante, violeta como a noite.

Kurama olhou para o lado, quando esticava sua roupa recem-lavada sobre os galhos, para Ter certeza de que a coisinha pequena e suja estava no mesmo lugar, sentada num tronco caído, que bem podia servir de ponte entre as margens estreitas, curvado em si, com a cabeça entre as mãos, uma imagem de desolação.

Kurama olhou para suas próprias mãos, quase rindo. Foi engraçado lembrar como foi difícil arrastá-lo para fora da caverna, deitá-lo numa queda desastrada no meio das folhas, quando o menino parou de lutar e ficou olhando o vazio, num tipo de apatia estranha, pelo menos, não chorava mais.

(Ele havia visto um bulbo negro perto de onde o menino estava, no meio das rochas sujas da caverna...)

Subiu para o tronco e foi andando, equilibrando-se nele pé ante pé, os braços ligeiramente abertos; feito de pérola, eternamente cheio daquela suavidade e deslumbre, uma aparição de cabelos em chamas, incandescentes, e no meio deles, as linhas de azul-violeta contornado em branco, que partiam de seus olhos. Seu corpo simplesmente não tinha segredo algum, vestido assim em nada. E simplesmente também, não teve qualquer lembrança de qualquer das maldades do mundo, e das maldades que ainda viviam nas suas lembranças de Kurama, o Youko.

Quando chegou bem perto, pulou para o rio, até ficar bem a frente dele, com a água, agora, chegando-lhe a cintura.

"Você..."- Seu início foi hesitante. Não sabia se queria mesmo que o híbrido de cabelos negros falasse ou se somente olhasse para ele, erguesse seu rosto transtornado e sério, para que ele se fizesse presente na penumbra da noite alta.

"Você sabe o seu nome?... Você tem alguma lembrança?"- Kurama esperou mas não ouviu nenhuma resposta. Olhou para os joelhos machucados e a pele antes tão lisa, manchada agora.- "Você sabe onde está?"

Ele descobrira que não era uma criança, aquela criatura perturbada, quando ela levantou o rosto, os olhos muito abertos e vidrados.

O luar o iluminou e Kurama estremeceu. Tinha um rosto tão sério e tão doce ao mesmo tempo. Era um adolescente como ele, embora menor, quase mal chegava na altura de seus olhos. Um menino de impressionantes cabelos espetados e muito lisos, com aquela estrela de tufos brancos, na testa, que parecia queimar junto com as labaredas negras. E os olhos... vermelhos? Sim, vermelhos como... rosas. Somente uma coisa chamou mais a atenção de Kurama do que seus olhos. Foram seus lábios pequenos, rosados. Não sabia ao certo o que fazer ou como chamar o que pretendia, se era a palavra certa, mas aqueles lábios o chamavam, embora da apatia do menino.

Olhar aquela boca enchia-o de um ansiar tenso, vindo do nada, mas que o esquentou por dentro, e por fora; seu ventre ardeu, e o frio das águas não acalmou o calor de seu corpo. Excitação. Mais intensa agora que qualquer lembrança sem nome do Youko, mais forte que seu sonho de prazer e dor. Era isso que o youkai de chifres brancos sentia quando o via naquela recordação? Por que pensar nele agora? O que ele tinha a ver com sua ânsia por tocar aquele menino?

Mesmo imóvel, ele parecia acompanhar sus gestos, principalmente quando Kurama sacudiu a cabeça, saindo do transe de contemplar aqueles lábios, o hálito adocicado que percebia nos lábios do menino que, ele vira, chorava, soluçava, mas não derramava lágrimas.

Kurama, confuso, encheu de água as mãos juntas em concha e derramou sobre os joelhos esfolados dele, da criaturinha pálida, sobre suas coxas esguias, passando sem querer, sem pensar, as palmas sobre elas, mesmo depois de livres da sujeira, mas muito mais lentamente do que fosse um gesto casual. Não desligava seu olhar dos olhos vermelhos do menino, esperando por alguma reação, mas não houve. Segurou-lhe, então, as mãos, olhando como as unhas dele se retraíam como as suas próprias, como de feras, e lavou-as da lama, da terra que, entre os dedinhos bonitos, colava-se aos machucados; umedeceu os dedos para limpar seu rosto sério.

Kurama desviou os olhos, enfim, de seu corpo, quando tornou a vê-lo tão pálido. Fosse o que fosse aquele menino, não fazia mais nenhuma diferença, estava constrangido só em tê-lo perto de si.

"Eu vou levar você para a minha mãe."

Silêncio.

Nenhuma resposta.

Kurama percebeu o Ki contido por vontade própria, do menino.

Tão frágil. Imaginou, tentou ao menos, imaginar qual seria o gosto de provar de seus lábios pequenos. Ele nem devia saber o que estava acontecendo, seria errado fazer-lhe aquilo, mas ninguém precisava saber. E que mal estaria fazendo, se tudo o que Kurama desejava era saber se a realidade se comparava em mínimo a lembrança do Youko, se era apenas aquilo que era capaz de amainar a onda de calor que invadia seu sangue quando se permitia olhar para aquela corpo inocentemente vulnerável, azulado e fantasmagórico sob o luar.

Aproximou seu rosto do dele, tentando não rir de alegre antecipação e demorou a encontrar o ângulo certo, e ainda estava desajeitado. Segurou-o pela nuca e hesitou muito, chegou-se mais, até ficar entre as coxas dele, e sentir seu respirar calmíssimo e o seu próprio, descompassado. Levou a outra mão e acariciou o lábio do menino, fazendo-os entreabrirem-se, para provar melhor, mais profundamente, da carne intocada, deliciando mais sua excitação em ver a cor mais secreta do corpo daquele híbrido recem nascido.

Beijou de leve, e aprofundou-se, apesar da inércia dele, para no final, com uma surpresa inocente, concluir:

"Você é doce... Você é uma flor!"

Kurama passou a própria língua sobre os lábios, experimentando, mal sorrindo, corando, travesso. A água que o cobria pela metade do corpo estava fria, mais ainda pelo chuvisco que começava a cair, mais ou menos intensamente, no entanto, não esfriava o calor que, sentia exatamente aonde, se instalava entre suas coxas, subia por seu ventre, e fazia Kurama se envergonhar cada vez mais de Ter roubado aquele beijo.

O menino se mexeu. Baixou a cabeça. Kurama poderia Ter jurado, até o fim, que seu rostinho sério estava ruborizado, e que ele voltava a chorar, e, os deuses o perdoassem, pois talvez até jurasse por isso em falso, aquele menino youkai chorou uma pérola que caiu para se perder nas águas.
 

__________
 
 

"Ela vai saber cuidar de você, até que voc6e saiba quem você é, ou pelo menos, quem foi!"

A rosa falava. Parecia um garoto de cabelos vermelhos, mas por que raios não conseguia parar de pensar nele como se ele fosse uma flor? Com aquele cabelo, parecia mesmo uma rosa em chamas. E era tão bonito que poderia confundí-lo com uma fêmea youkai, mas ele tinha formas, seu corpo não negava o que era realmente. E era tão gentil com ele... Por que tocava seus lábios o tempo todo, com seus dedos frios, sorrindo daquele jeito?

Caíra em si novamente quando já era levado, no meio de uma chuva que lentamente se tornava mais forte, assim como seu corpo. A rosa em forma de gente estava levando-o ao seu lado, abraçando seus ombros menores, cheio de delicadeza; gotas de chuva deslizavam com uma sensação incomum por sua nudez.

"Você está me entendendo? Ela me ajudou a saber quem eu sou... Eu acho. Não fique com medo!..."- A rosa sorriu, quando o menino encolheu-se a ele, e a rosa notou como sua carne era intensamente quente.-"... É apenas chuva! E se você for mesmo uma flor, vai precisar de água para crescer...!

Kurama estava feliz. Teria dado outro beijos naqueles lábios macios, se não notasse que finalmente ele estava menos alheio a tudo, e olhava-o com um espanto atípico.

Pararam na frente de uma cabana de pedra, e telhado coberto de trepadeiras. Havia luz de lampiões, pela janela, pela porta aberta.

"Me espere aqui."- Kurama o colocou encostado numa árvore e se inclinou, abaixando-se, num impulso que não quis controlar, sobre ele, que não soube o que esperar e nem como reagir, e esperou, somente, imóvel, silencioso, e a rosa o beijou de novo, agora, demorando-se mais, e sem atrapalhar-se tanto, em cheio em seu lábio inferior, sugando de leve.

Fechou os olhos também e estremeceu.

O que estava acontecendo, raios?? Experimentou a doçura dos lábios de uma rosa... havia aquele sabor de flor alí, e na língua que explorou sua boca, com desenvoltura e prazer.

Prazer.

Era a primeira vez que sentia algo assim, e chamou de prazer a sensação que correu por seu corpo, como fogo em uma trilha de pólvora. Cada vez mais intenso, cada vez mais próximo de explodir. Sentia isso em si, e na rosa que envolvia-o para de repente ela se afastar, sorrindo, e correr, quase voando de tão ligeira, para a escuridão de dentro da casa.

"Mamãe!! Mamãe!! Genkai!!"

Sim, uma explosão. Mas não em seu corpo. No céu. Ao mesmo tempo que entendia imediatamente o que estava fazendo naquela floresta, um relâmpago estridente partia o tronco de uma árvore qualquer, e iluminava seu ódio, em que a lâmina de uma espada fincada no chão de frente para a porta rebrilhou na escuridão.



Capítulo 8
A Rosa Escarlate
 
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