A Rosa Escarlate
Astásia
 

Capítulo 3 - Flores Venenosas
"Kurama!! Nunca mais suma desta forma!! Não pensa que podem estar procurando por você, se não acreditarem que você morreu??"

Ela estava engraçada, o rosto corado, desfeito das olheiras, mas tão irritada por uma coisa que parecia boba para Kurama. Já estava fora do templo abandonado, depois de Ter acordado e não o vendo em parte alguma do teto. Chamou-o por um tempo considerável até que ele veio, saltando para o chão com a suavidade que demostrou desde o começo, a mesma segurança desde o seu primeiro vôo.

"Eu queria me ver!! Há um lago não muito longe. Eu senti alguma coisa..."

"Como assim?" - Shiori perguntou, segurando seu rosto entre as mãos e verificando se estava tudo bem com ele, se não estava machucado. Curioso como ele estava calmo, ao que indicava, estar sozinho lhe fazia bem. Ou a descoberta de não ser uma aberração o deixou mais seguro de si. Ele... Agora ela notava com clareza... Sorria.

"Eu não sabia como eu era. Eu sou como você! Mas..." - Seu sorriso murchou um pouco, com um suspiro curto. - "... você... Não parece feliz com isso. Eu achei que eu era um monstro."

"Não, não é isso! É que, Kurama, é perigoso que você fique sozinho por aí. Claro que não é um monstro. Eu fiz de tudo para não fazer nada parecido com você com o que a Doutora Genkai queria fazer... Nunca mais vá para tão longe sem me avisar!..." - Ergueu a mão para fazer um carinho leve em seus cabelos vermelhos. Tão macio e morno.- "O que você sentiu? Escutou algo?..."

"Eu não sei. Eu estava sozinho. Foi como eu lhe contei, alguma coisa falou comigo, eu não ouvi, mas senti!! E sei que falou!! No lago!"

Lago... A fronteira estava perto, então, e perto, devia estar também...

"O que você ouviu?"

Kurama a olhou por um bom tempo. Ela sabia como as plantas eram sensíveis umas às outras, percebiam-se, mas Genkai sempre dizia, também, nas vezes em que apareceu em sua estufa, que elas escutavam umas às outras. Como se fossem partes de uma mesma consciência.

Genkai havia criado alguns híbridos, de animais, que, Shiori estremeceu ao se recordar deles, já deviam estar todos mortos, enquanto trabalhou para Yomi, e também híbridos de plantas. Teoricamente, teriam um sistema de vida similar ao dele, mas eram pesadelos tingidos de clorofila, como diria seu falecido marido. Yomi não aprovava seus métodos de trabalho, ele disse a Shiori, nas poucas vezes em que foi a estufa para conversar com ela. Louca, os outros cientistas diziam.

Se Kurama escutou vozes, e se estavam tão próximos do novo lar de Genkai, afinal... Ele talvez escutasse apenas o que os outros de sua espécie diziam. E, conhecendo bem a Doutora Genkai, Shiori não duvidava nada de que era algo de enlouquecer uma mente fraca.

"Eu ouvi... Risos. Choro, risos. Vindos daquela direção. O que isso significa?"

Shiori sentiu a firmeza de seus ombros delicados cederem. Ela se sentiu fraca, engolindo à força seu medo do que ia encontrar. Mas pensar do que estava fugindo, lhe dava muito mais vontade de seguir em frente.

"Sinceramente, eu não sei."
 
 

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Fedor.

Era um cheiro constante, fortalecido pelo fato de ser a única e mais definitiva impressão sobre aquele lugar. Era tão escuro que mal se via o chão, e as outras impressões a respeito do espaço eram reduzidas a meras suposições, principalmente se se pensasse o quê se ocultava nas sombras de escuridão absoluta.

O lugar era o último degrau a que poderia descer aqueles que eram odiados por Mukuro. A primeira vista, era só mais um entre tantos dos escuros corredores no subsolo do velho castelo que servia de prisão aos presos políticos misturados aos loucos e assassinos. Mas quem conseguisse respirar mais fundo o ar viciado e fétido daqueles porões saberia que havia algo mais, o úmido cheiro, quase imperceptível de...sal. Uma presença estranha de uma maresia apodrecida, num mar de treva à vários metros debaixo do nível do solo.

Naquela parte mais escura e lúgubre, estava o motivo, mais que justo, de toda a desolação, de Ter sido espalhado pelo chão, pelas paredes e até pelo teto, uma camada de sal grosso, puro, cimentando tudo, tornando as superfícies lisas e cortantes como gumes afiados, tornando impossível caminhar alí e tocar as paredes sem tomar golpes nas pontas dos cristais. Aquele foi o meio que Mukuro achou de tornar qualquer porção de terra alí absolutamente estéril, impraticável para qualquer tipo de planta, acrescentadas às dificuldades o fato de não Ter quase luz alguma alí, e nenhuma solar. Mukuro sabia que nenhuma planta, as principais armas de Genkai, brotariam na sua cela de prisão. Não, Genkai não era sua prisioneira, a cientista que criou monstros aterrorizantes somente fora capturada dentro de suas fronteiras, quando tentou fugir dos soldados de Yomi, e o Rei de Gandara permitira a Mukuro fazer dela o que quiser, contanto que não mais pusesse os pés no outro reino.

A Rainha, por motivos que escapavam qualquer compreensão, não a matou, como teria sido o natural, um julgamento justo por seus crimes hediondos, pelas desgraças que literalmente semeou no Makai. E o pior, pensavam sempre os que a conheceram em seus tempos de brilhantismo, inclusive Shiori, era que nem sequer havia um motivo para o que ela fêz...

As plantas eram suas armas, Genkai era uma youkai que aparentemente tinha habilidades muito grandes em ciência, podia criar seus híbridos com o mínimo de recursos, o máximo de precariedade, conseguia parodiar toda a Criação, com o que criava. Ela não era tão velha, sendo youkai, parecia bem mais jovem do que era de fato, mas isso não traía a sabedoria que tinha dentro de si, de seus olhos ferozes, Genkai se mostrava tão perigosa quanto sua plantas, que ela sempre amou mais que a qualquer criatura, em qualquer um dos mundos, em qualquer tempo, e demostrava esse amor claramente, enquanto alimentava seus pequenos abortos da natureza, chamando-os docemente de ...

"... Ooooh, minhas queridas, minhas doces crianças, assim, assim... Comportadas, agora...!"

Seus dedos longos se faziam ver na escuridão que refletia violeta nas superfícies de sal das paredes. Ela alimentava as criaturinhas grotescas e quase negras que se mexiam, quase desprendendo-se das raízes fincadas no sal para avançar sobre os insetos que lhes eram oferecidos...

Guardas que passavam às vezes pelos corredores achavam que Genkai, Doutora Genkai, estava louca, pelo atroz isolamento que a prisão lhe impunha, pelos anos de sua vida que dedicou a ciência, primeiro, pelo progresso, depois, pela destruição de Gandara. Diziam que ela ria sozinha, com os fantasmas de sua loucura. Diziam que ela chorava como uma criança quando uma semente não brotava. Diziam que ela mesma era um híbrido, de algum criador mais louco do que ela se tornara, que a abandonara para morrer, e por isso talvez ela sentisse qualquer tipo de planta, talvez por isso realmente ela as escutasse, e pudesse criá-las quase do nada, como fêz mais uma vez, na escuridão de sua cela.

Enfim, depois de meses tendo sua cela lavada diariamente com herbicida, depois de sua última fuga, eles se contentaram de deixá-la em paz, no cubículo escuro, sem nada daquilo que é essencial à vida de qualquer vegetal... Mas se Genkai fosse um híbrido como diziam que era, teria sido a primeira a morrer, então, mas ela não morreu, e daí, só se poderia concluir... que ela não devia ser uma planta comum, portanto... Como não eram comuns aquelas estranhas formas de vida que brotavam nas rachaduras do sal, mas alimentando-se da mortal umidade presente nele, fatal para qualquer planta normal, mas aquelas nem precisavam de luz para sobreviver alí. Precariamente, Genkai havia feito de novo, criado híbridos dos insetos, usando o pouco que tinha disponível, aliando seu organismo habituado a falta de luz e ao sal ao organismo denso de uma espéciue de limo negro que nascera sobre um tecido úmido, um velho pano de chão largado no canto de sua cela.

Isso a fêz triunfar em silêncio, rir desvairadamente de quem julgava poder controlá-la.

Agora, tinha com quem conversar na solidão de sua cela.

Os animais repugnantes que usou não sabiam falar, mas a planta que deixou para brotar, e devia faltar pouco, pelo tempo que calculava pelos turnos de vigia, essa saberia, não ousava duvidar de seus talentos, Genkai sabia, em sua experiência, em sua idade dedicada a isso, que faltava pouco para que aquela plantinha linda e mortífera florescesse... mas também não podia ser ansiosa, sabia ser paciente. Esperaria mais o tempo que fosse por suas ambições...

Mas, se não estivesse tão acostumada a sensações assim... teria se assustado com o que percebeu, distante.

Era quase a sensação de saber que uma criança escuta uma conversa atrás de uma porta...
 
 

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"O que há lá??... É uma prisão?..." - Havia medo na voz aveludada de Kurama. Não sabendo o exato motivo de Ter medo, talvez pela aparência assustadora do antigo e esguio castelo, Shiori poderia jurar que as memórias que ele tinha de lugares como aquele não deviam ser das melhores...

"Depósito de pessoas, na verdade." - ela respondeu, escorando-se no tronco da árvore, sentindo-se muito cansada. Ao menos não era inverno. E era pura sorte, ou destino, que tudo estivesse tão esmo na floresta, de perigos, até...

"Mas se essa Doutora Genkai está presa lá... Qual foi o crime dela? Não temos nada a ver com ela, temos?" - Incrível como ele estava cada vez mais distante daquela inquietante fragilidade de seus primeiros dias. Alí, entre as sombras das árvores que cercavam o castelo, Kurama nada mais era do que um jovem de expressão curiosa e muito séria, crítica, até. Não era engano achar que de fato havia crescido desde que saíra de seu sonho verde. Já não passava tanto tempo nas copas das árvores, a não ser quando achavam algum viajante pelas trilhas, e quando isso acontecia, eles se escondiam.

E cada vez mais se aproximavam da fronteira...

"Difícil dizer..."

"Eu achei que você havia me feito sozinha, ou quase..."

"E fiz, mas ela viu o começo do projeto. E tem condições de saber dizer quando você vai desabrochar, se é que isto vai acontecer, e o que vai acontecer quando a hora chegar..."

"Eu não quero morrer assim... Muitos de nós já morreram. Todos morreram."

"O que você disse? Você falou..." - Shiori colocou as mãos sobre seus ombros. -" ...que acha que vai morrer quando acontecer? Pelos deuses! Eu nem sei se isso vai acontecer com você! Eu não o criei para morrer em seguida!!"

"Você me trata como se eu fosse só seu. Como se eu fosse a plantinha que você pôs em um vaso e regou para que só você a visse. Eu não entendo o seu medo, mamãe..."

Ah... Era bem o que faltava! Se antes Kurama era uma criança dentro daquelas formas, então agora, com as lembranças... Ele devia estar cada vez mais parecido com o que era de fato, e com certeza, não era uma criança.

"Eu tenho retalhos de uma vida que não é minha dentro de mim! Eu não conheço nada daquilo! Eu não vi nada daquilo! Eu acho... que posso Ter esse desejo... de viver mais. Isso não deve ser errado. Mas também não é certo você querer que eu viva para ser só seu, só seu filho!!" - Disparou, saltando para trás, sendo, enquanto fazia isso, nada mais que um borrão verde escuro, misturado ao verde da mata. Pela primeira vez, ele sentia raiva. E só ele sabia como sentia aquele vazio, que em sua mente se fazia, comparado àquela vida que lhe deram. Queria, na verdade, ficar sozinho, ficar quieto na terra e tentar enraizar de novo, ou pelo menos, acalmar uma apreensão crescente, que só aumentava a cada dia. - "Você age comigo como se esmagasse uma borboleta antes de ela abrir suas asas!!"

Dizendo isso, ele sumiu, num farfalhar de folhas e num vago arrebentar de galhos, em meio a profusão de copas das árvores, em um salto forte para cima.

"Não, Kurama!!!..."

Ficou um momento parada. Respirou fundo e deu de ombros. Pois bem. Ele não era nenhuma criança, e se fosse um mínimo parecido com quem lhe deu aquelas recordações, então, era mais perigoso do qualquer criatura que cruzasse seu caminho. E se ele estava furioso pelas atitudes de Shiori, nada mais justo...

"Ele tem toda razão. Ele não é minha plantinha..."
 
 

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"Você age como se não quisesse que eu crescesse... Não entendo." - Dizia e repetia só consigo, estreitando o abraço com suas próprias pernas, no alto dos galhos. Claro que não tivera coragem de ir muito longe, só o bastante para perder Shiori de vista, mas suficiente para saber onde ela estava.

Coisa boba, concluiu, achando-se um idiota por preocupar-se com ela, sua mãe sozinha, numa floresta repleta de perigos, mas eles não encontraram nada e nem ninguém no caminho. Um aperto de culpa o fêz pular para o chão. Sabia que precisava dela, não para sobreviver, mas para Ter algo mais que seus fantasmas como companhias. Precisava dela e reconhecia isso com vergonha, por ser sua mãe. Não por mais nada. Sentias falta do que não sabia que precisava, mas era ótimo, admitia finalmente, Ter com quem falar no silêncio das noites tempestuosas de Gandara. E se ela estivesse em perigo... É, a pergunta ficou pertinente, como iria protegê-la, se nem sabia se tinha um Youki?...

Se sentia tolhido de algo muito seu... Como uma plantinha num vaso.

Não sabia de onde aquilo havia saído para o meio de suas palavras iradas. Shiori não lhe dizia tudo. E a recordação da palavra que ela parecia insistir em colocar dentro de cada conversa... Desabrochar... Já lhe causava um calafrio de terror.

Kurama não sabia onde e nem como aprendera tão bem a odiar sentir-se preso, preso a não saber qual seria seu futuro... ou seu fim. Talvez fizesse parte da natureza, do que era, do que foi, o primeiro Kurama, o Youko.

Já se decidia de voltar atrás de suas palavras duras, Shiori sempre quisera-o bem. Ainda haveria de estar no mesmo lugar, esperando pelo amanhecer para tentar falar com alguém naquele castelo escuro que lhe deu arrepios, naquele castelo abandonado e negro, onde a maldade e a loucura gritavam silenciosamente seu nome...

Ele se virou subitamente na direção em que escutou.

A certeza voltou, forte como antes, forte como nunca. Alguém ia morrer.

Abraçou-se, sentindo a si mesmo pelo tecido da túnica, seus braços. Num suspiro, tentou ter certeza do que seus sentidos lhe disseram. Estavam errados. Não era chamado pelo nome, mas pelo que era, um híbrido: uma rosa, uma planta demoníaca de um mundo estranho, uma parte da extensa e misteriosa mata que o cercava.

Acima de sua cabeça, um céu alaranjado, recortado de nuvens negras e raios inesperados lhe dizia com um dialeto elemental, que o chamado não vinha de parte alguma.

Tornou a fechar os olhos, tentando controlar sua energia como quando erguia-se do solo.

O chamado estava por toda parte, mais intenso naquela direção. Risos inumanos ecoando no palpitar da mata, clamando uma resposta de seu youki aprisionado, tão devastador naquele que o gerou. Sim, Kurama, o Youko, ele tinha em suas lembranças a certeza de que o Youko percebia a mata ao redor. E a morte, da mesma forma que ele percebia que alguém ia morrer. E eram coisas tão próximas. E Kurama, a rosa carmesim, ele teve vergonha de não poder tocar naquilo que o Youko lhe deixara: a energia tremenda de poder fazer dos vegetais uma parte de si.

Um pássaro agitou suas asas e Kurama sabia exatamente quantas vezes as folhas perto dele estalaram.

Era isso.

Estava vindo.

Seu youki, despertando.

E agora, ele sabia o que fazer.



Capítulo 4
A Rosa Escarlate
 
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