NÃO PENSE!
Umi no Kitsune
 

O corpo fraco era tomado de leves espasmos de dor. A pele alva estava quase que inteiramente tingida de sangue. Estava inconsciente, mas os olhos mantinham-se semi-abertos e remexiam-se em caos, demonstrando que interiormente, um pesadelo horrendo acontecia. Era a morte que se aproximava, mas nunca completava seu destino, apenas ameaçava.

Os negros cabelos caiam-lhe sobre a face, escondendo parte das expressões de pavor que se formavam. Algo se mexeu. Uma planta, raízes... espinhos. Eles trilhavam um labirinto de músculos rasgados dentro da pele. Mas nenhum grito se escutava... apenas a respiração pesada e ofegante de um louco, de um horrorizado, de alguém amaldiçoado pelo próprio destino, já inconsciente diante de seu dono.

Sim, agora aquele corpo machucado não passava de um objeto, não era demônio, humano ou espírito, era apenas mais uma carcaça que, infelizmente, não morreu na hora e no lugar certo. Como a tortura é maravilhosa! Ele bem sabe disso... o prazer que ela proporciona, a sensação de poder, de posse, de invulnerabilidade... a certeza de que se é um deus. Agora experimentara o outro sabor da tortura, pois estava mordendo não mais a polpa da fruta e sim... seu caule. Podre, amargo, interminável gosto de derrota, vergonha e clamor pela morte. Por que a demora, minha velha senhora? Por que não vai logo buscá-lo? Todos sabemos que é isso mesmo que anseia: abraçar seu mais novo filho!

Mas a morte sabe que é poderosa, sabe que um filho que clama tão fervorosamente não pode ser deixado de lado... Mas ela também é sádica! E adora observar, como platéia atenta e silenciosa, a dor e loucura que fazem em seu futuro filhote. Ela gosta... costuma justificar, dando a razão de que desse modo sua entrada, e única entrada, torna-se triunfal! Digna de uma senhora com séculos e séculos de experiência, que só ela poderia ter... e só ele poderia proporcionar-lhe...

Youko Kurama. Não tão velho como nossa amiga morte, um bebê perto dela, mas entre nós, velho o bastante para fazer a tortura ideal, a entrada triunfal de sua colega de serviço. Ele faz o trabalho sujo e ela artefinaliza. Um acordo informal onde os dois saem ganhando. Você deve estar se perguntando quem é a vítima... Apesar do extremo mau gosto ainda quer saber, quer continuar? Vejo que você é bem diferente do que eu esperava. Vejamos, já apresentei o estado físico dele... deplorável, não? Repare nas marcas em seu peito: as plantas de Kurama “passeando” livremente por entre ele. Realmente o youko não pensou em poupá-lo... Sabe, gosto desse lado perverso dele, ele o demonstra raríssimas vezes, isso na forma de youko. Como humano essas tiradas de sadismo são mais raras ainda... acho que você deve saber disso melhor do que eu, afinal você o conheceu antes de mim. Você sabe coisas do passado dele que eu simplesmente não faço a mínima idéia... ele nunca gostou de falar de si mesmo, ainda mais de seu passado como youko, como o vemos agora. Essa figura imponente e fria esconde mais segredos que se possa imaginar.

Quê? Você acha que eu estou te enrolando? Pois é, estou. Gosto de manter esse clima de suspense... suspense real, não aquelas coisas infantis da televisão, com aquela musiquinha chata de fundo. E você tem toda a razão: estou brincando com você, com sua curiosidade. Assim como Kurama brinca com o corpo daquele pobre coitado... O cheiro que chega dele enerva, não? Me dá até dor de cabeça... se o youko não estivesse cuidando dele eu já teria acabado com esse cheiro infernal! Mas Kurama prefere vê-lo sofrer lentamente... hehe, ele não tem jeito mesmo. Mas dou razão a ele. Faz tempo que ele não faz isso, não tortura, vai fazer bem para a auto-estima dele, pelo menos é o que eu espero.

Ainda não contei onde estamos... Aqui não é escuro, não é fechado, não dá impressão alguma de ser um lugar de torturas... mas é. Apenas a umidade, sempre presente nas prisões, mas característica marcante de qualquer floresta entre as preferidas de Kurama. Acho que podemos dizer que o ambiente foi feito para total conforto de Kurama e total desconforto de... Não descobriu? Certo... acho que já posso dar umas pistas mais consistentes. Esse pobre coitado ama Kurama. E quem não ama Kurama, você me pergunta. É... são raras as pessoas que não amam esse youko prateado de coração frio. Não ajudei muito pelo visto. Mas agora não importa... o espetáculo irá recomeçar, quer assistir a forma mais bela de Youko Kurama em ação comigo? Venha, pode sentar-se aqui do meu lado, daqui a visão é mais privilegiada...

- Acorde... vamos, não me deixe aqui sozinho...- Kurama fala calma e languidamente.- Por favor, ainda quero escutar o som da sua voz, quero ver o brilho ferino dos seus olhos...

O rapaz acorda e pela expressão de medo em sua face, parece que ele prefere voltar ao pesadelo que estava tendo do que enfrentar a dura realidade.

- Você! O que quer de mim? O que mais quer de mim???

Um grito de dor ecoa entre as altas árvores, era a planta que saia de seu “passeio” pelo corpo do prisioneiro.

- Quero de você o que queria de mim... não é muita coisa, relaxe...

- Você não era assim, eu não reconheço mais você!

- Ora, por favor! Você é que está totalmente irreconhecível!

Kurama brinca com a planta ensangüentada, fazendo-lhe carinho e lambendo as pontas dos dedos sujas de sangue.

- Foi ele! Esse maldito fez sua cabeça, Kurama! Não era pra ser assim...
 
 

Ótimo! Agora eu sou o culpado de tudo! Não imaginava que ele pudesse ser um bebê chorão... Que situação mais deplorável... Como você mesmo pôde comprovar, Kurama está numa fase “déjà vu” marcante. O nosso prisioneiro está errado, ele não está irreconhecível... apenas está sendo o que sempre foi, mas luta em esconder. Sabia que ia sobrar pra mim! Claro que eu tenho culpa, senão não estaria aqui. Mas eu não tenho nada a ver com esse estado do Kurama, juro! Foi esse fracote que começou com tudo! Quando tudo começou? Você está com pressa, hein? Mas serei benevolente, já que é meu convidado... Como? Acha que chegou até aqui por conta própria? Hehe, não... fui eu que usei meu ki e persuadi sua mente fraca a te trazer até aqui. Por que você? Faz muitas perguntas, está começando a me irritar! Deixe-me falar com calma... é uma oportunidade única para você, aproveite, pois vou fazê-lo esquecer de tudo depois! Acho que você vê mais chances de descobrir quem é o pobre coitado assistindo ao espetáculo do que me escutando, né? Que assim seja...

Ah! Quanto tudo começou, não é mesmo? Bem lembrado... foi no início do Torneio das Trevas. Nenhum de nós podia imaginar o que ia acontecer depois... Hei, não tome conclusões apressadas! Você se preocupa em descobrir quem ele é, mas você também não sabe quem sou eu! Tome cuidado para não trocar as pessoas... afinal eu estou bem vivo do seu lado, né? Hummm, Kurama está olhando para cá... vamos, não tenha vergonha, cumprimente-o! Viu, quase imperceptível, mas ele acenou com os olhos... lindos olhos!
 

- Por que não me mata? Eu já não presto para nada, você não vai conseguir mais nada comigo neste estado!

Kurama ri. Sua risada não é forçada nem histérica, apenas normal e gostosa, como aquela que você dá quando escuta uma piada realmente boa e fica pensando como alguém perde tempo inventando essas maluquices...

- Não... se tem tanto fôlego para gritar desse jeito...

O youko tira uma rosa do cabelo prateado e agacha-se até alcançar a altura dos olhos do prisioneiro. Eu adoro essa parte! Veja como ele corre a rosa pelas feridas no tronco do outro... a expressão enrugada de dor quando um espinho passa displicentemente por um dos vários cortes...

- Você ainda tem muita vida para ser desperdiçada com uma simples morte súbita...

Um toque leve no chão, um arbusto de folhas roxas e crespas cresce numa velocidade espantosa... esse golpe é novo! Pelo menos eu nunca vi, você já? Também não? Gosto quando Kurama inventa essas coisas, cada planta... uma folha é arrancada e amassada entre os dedos longos, depois... Kurama a come??? Que será que essa raposa inventou agora?

- Quer um pouco? É muito gostosa...- uma folha é estendida- Vamos, pode experimentar...

Ele está comendo... que idiota! Não se passa nem alguns segundos que ele engole a folha e sangue começa a sair por sua boca. O cara tosse, se engasga com o próprio sangue e tenta em vão cuspir na direção de Kurama.

- Que feio! Quem te ensinou boas maneiras?

- Como você não...

- Eu não disse que o gosto era bom? Pena que esse tipo de planta só pode ser degustada quando se come a vacina antes! Ela tem uma seiva que é um verdadeiro veneno... não para todos os órgãos do sistema digestivo, mas apenas para o estômago. A seiva entra em conflito com os ácidos do estômago destruindo-o, mas não sem antes provocar o vômito... claro.
 

Não é possível! Ele tá brincando em serviço! ...tenho que admitir que essa é uma característica típica de Shuuichi: dar tempo ao inimigo... Outra coisa que você ainda não sabe e que talvez te ajude... Esse homem é atormentado, não só porque ele ama Kurama e não é correspondido, mas porque Kurama escolheu ficar comigo ao invés dele. Sim... sinta inveja, pobre mortal... Kurama me ama e eu sei disso! Sei que ele é meu! Também é meio óbvio, né? Caso o contrário não estaríamos aqui. Aliás, aquele coitado só está sendo torturado porque Kurama acha que ele pode me fazer algum mal depois... se vingar talvez, não sei... “livrar-se da concorrência” se é que me entende. Como é? Claro que eu acho isso totalmente desnecessário! Acha que tenho medo de um verme podre que nem ele? Por mim esse coitado podia continuar vivendo que não ia ser empecilho nenhum! Nunca foi... Ora, pare de falar besteiras! Vamos ver o que está acontecendo:

- O que foi?- Kurama segura o queixo do rapaz- Não quer mais me olhar nos olhos? Não quer mais me beijar? Não quer mais morrer?

- Eu já estou morto, não? Quanto tempo mais será que meu corpo vai agüentar? É apenas questão de tempo...

- EU controlo o seu tempo!!!

Kurama estende o braço e de sua mão cresce galhos de madeira escura e áspera, não é mais preciso se utilizar de plantas com espinhos... a pele dele já está tão fina que até um simples passar de dedos a rasga. E é isso que o youko faz, seus dedos são os galhos secos e deformados que saem de sua mão. Kurama acaricia todo o corpo do prisioneiro. Seus “dedos” começam timidamente pelas pernas, vão subindo pelo tronco até envolver toda a cabeça escondendo a expressão de terror e abafando um grito. Ele fica um instante assim: com a cabeça coberta pelos galhos retorcidos, fios de sangue escorrendo entre as pequenas frestas, até os gritos cessarem.

- Hn. Sei que ainda está vivo...

Os dedos se fecham mais e os gritos recomeçam...

- Seus gritos são música para os meus ouvidos!!!- lentamente, Kurama afrouxa os galhos envolta do rapaz- Não... não morra ainda...- sua voz era de um tom baixo e sarcástico- ...quero você pra mim... só mais um pouco!

- Miserável... você não consegue, não é?

- Do que está falando?

- Não consegue... não consegue me matar!

- Você está delirando...

- Ele dominou a sua mente... mas não o seu coração...
 

De novo essa história? Ele não desiste? O que você está olhando? Hei, eu não fiz nada, já disse! Que insistência... Não me olhe assim, não tenho culpa se Kurama me escolheu! Você parece não acreditar em nada do que eu falo, e eu não gosto disso. Mas eu gosto de te deixar confuso... sabia que eu já lutei com Kurama? Eu acho que a melhor maneira de avaliar o estilo de luta de alguém é lutando com essa pessoa. Então estou capacitado a dizer que Kurama luta muito bem! Ele tem um jeito único... é perfeito em seus movimentos e... sim, você acertou: ele me derrotou. Apesar de nunca ter admitido isso a ninguém, nem a ele.

Mas só isso não basta para te deixar confuso, né? Acho que com essa informação você já deve ter quase certeza de quem eu sou... Mas eu disse que ia te deixar confuso, e vou! Aquele cara ali também lutou com Kurama... é, meu caro... e como pode-se ver, ele também perdeu. Perdeu a luta pra Kurama e perdeu Kurama pra mim. Mas preste atenção: eu não disse quando aconteceram as lutas. Qual ocorreu primeiro... quem perdeu primeiro. Você é quem tem que descobrir ou, se não conseguir, Kurama é quem vai lhe dizer. Vamos, não se preocupe, ainda temos algum tempo antes de eu apagar sua memória...

- Claro... no meu coração ninguém manda...- Kurama falava com ironia- Mas você está certo...

Uma grande flor se abre embaixo do torturado. Com pétalas macias e perfume delicado, a flor o embala como a um bebê e o levanta até deixá-lo próximo de Kurama.

- Pobrezinho... está tão machucado! Prometo que não vou mais te ferir, tá?- a raposa brincava, falando como se fosse a mãe dele- ...pelo menos fisicamente...

- Não acredito... em uma única palavra sua...

- Pode acreditar! Não sou eu quem vai te matar e sim... você mesmo.

Acho que seu tempo está acabando... Kurama vem vindo em nossa direção. Já sabe quem sou eu? Ou quem é ele? Hn. Não precisa me dizer. Acho que vou ter que te deixar agora, Kurama precisa de mim.

- Itoshii... estou com saudades...

- Estou indo raposa.

- Vai deixar seu convidado sozinho?

- Não acho boa idéia ele participar do que está para acontecer agora...

- Tem razão, detesto ter que dividi-lo com outro...
 

Kurama toma Hiei nos braços e os dois se beijam fervorosamente. O koorime de fogo com o youko prateado... Um se entrega ao outro com o máximo de prazer que lhes é permitido: infinito! Próximo a eles, abraçado pelas pétalas da linda flor criada por Kurama, Karasu grita e se desespera. Mas... coitado! Ele não pode se mexer. Com os braços e pernas quebrados é muito difícil que consiga escapar dali. Pequenos raios de sol começam a iluminar a flor, em pouco tempo ela e Karasu são banhados pela luz quente. As grandes pétalas então, sofrem um fenômeno. Os finos pêlos, que antes a deixavam macia, se juntam formando cones pontiagudos... espinhos! Espinhos nas pétalas da linda flor! Espinhos do tamanho de uma mão! Karasu olha com espanto os espinhos a sua volta, nenhum deles chegava a machucá-lo. Ele olha de novo para Kurama e Hiei e decide-se. Por fim, chegou a minha vez... vou abraçar meu filho! Ele me quer e demonstra isso jogando o corpo ferido contra os espinhos. Cortando profundamente a própria carne... e caindo inerte no meio das pétalas. Venha meu pequeno...

- Acabou.

- Eu não sei o que dizer de mim mesmo- Kurama toma a forma de Shuuichi- Mas não podia deixar de vingar-me!

- Está tudo bem... sabia que ia culpar-se depois, mas tente não pensar mais nisso. Já foi feito e você tirou um peso de seus ombros.

- É... e ele?

- Ah! Não se preocupe, ele já sabe o que o espera.- o Jagan se abre e...
 

Fim
 

Esta fic é dedicada a Oraide de Paula Adurens.



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