Gotas de Sentimento

Mica-Chan

A música enchia o ambiente, como se pudesse demonstrar por si só todos os conflitos que passavam pelo coração do jovem. Ele gostaria de saber de quem fora a idéia de permitir que o ser humano crescesse. Tudo é tão mais fácil quando se é criança, todos os sentimentos bem definidos. Amor ou ódio, alegria ou tristeza. Agora tudo estava sempre coexistindo, o que lhe deixava bastante confuso.

Há alguns anos, ele tivera certeza do que sentia. Amava a garota mais do que podia expressar. Mas agora... depois de tantos anos longe, onde tudo o que recebia dela eram palavras em cartas que não o preenchiam, vozes em telefonemas que só serviam para angustiá-lo, presentes que chegavam pelo correio lhe lembrando mais uma vez que ela estava longe, ele não poderia mais afirmar nada.

A falta era imensa, e as poucas vezes que tinha oportunidade de olhar para os belos olhos verdes e tocar os cabelos cor de mel não o satisfaziam. O tempo que separava um período de férias do outro parecia crescer ano a ano. A princípio tudo era mais fácil, a imagem dela e dos dias que passaram juntos ainda estavam vívidos em seu coração e mente. Mas com o passar dos anos, apesar do sentimento continuar batendo com a mesma intensidade no seu coração, a figura do seu rosto começou a embaçar. Não conseguia mais lembrar do que era ouvir a voz dela sussurrando em seu ouvido, ou como era sentir seu corpo tremer ao toque leve e delicado das mãos dela.

Ainda mantinha o hábito de procurar diariamente entre a correspondência por notícias dela. Sabia que a freqüência era menor agora, mas isso não o impedia de esperar com ansiedade. Assim como seu coração costumava falhar uma batida a cada toque do telefone, apenas para decepcionar-se mais uma vez.

Fechou os olhos e suspirou cansado. Desejara por tanto tempo tê-la ao seu lado que já não sabia mais qual era a sensação de ter o coração livre e plenamente feliz. Não houve um único dia no decorrer dos anos que não chorara a ausência dela. Estava tão acostumado à dor, que quando a tinha em sua casa não conseguia relaxar e aproveitar. Ficava esperando o momento em que ela se desvaneceria como a névoa, mostrando-lhe que tudo não passava de mais um sonho entre tantos que já tivera.

Queria relaxar e ser o mesmo que ela conhecera, demonstrar tudo o que sentia, mas estava além das capacidades dele. Sempre fora extremamente fechado e demorara muito tempo para demonstrar o que sentia por ela. A distância que enfrentaram desde o início de tudo não ajudou em nada. Quando precisavam estar juntos, convivendo e quebrando as barreiras que ambos tinham erguido, um país inteiro se colocou entre eles.

Vinham tentando, dia após dia, da melhor forma que conseguiam, mas a verdade é que não era suficiente. Jamais seria. Enquanto estivessem tão longe de nada adiantaria. Ela seria sempre um mistério para ele e vice-versa. A cada nova aparição dela em sua cidade, o seu espanto era maior. Ela estava sempre mais alta, mais bela, mais segura. Os cabelos mais longos a deixavam mais madura e misteriosa. A magia que a cercava também crescia extraordinariamente. Há muito ela não era mais a garotinha por quem tinha se apaixonado. A confiança que ela emanava era contagiante, o sorriso sedutor, os gestos mais femininos e sensuais.

Ele também havia mudado. Não apenas em aparência, apesar de ter crescido bastante, amadurecido e ficado muito mais bonito do que seria capaz de admitir, mas principalmente em seu íntimo. Sempre fora fechado e sério. A timidez era um dos seus atributos mais visíveis, mas com a distância dela, fechara-se ainda mais, dedicando quase todo o seu tempo ao estudo da magia e do treinamento das artes marciais. Sabia que não seria um mago tão poderoso quanto ela o era, mas seus poderes haviam crescido muito, chegando a surpreender ele mesmo as vezes.

Na maior parte do tempo procurava omitir dela o seu crescimento. Ele sabia que não havia motivos para isso, mas nunca conseguira superar ter falhado tão miseravelmente diante de Yue. Agora seu poder era muito maior, mas não queria que ela o soubesse. Esta era uma parte dele que gostava de manter nas sombras. Se lhe perguntassem o porquê dessa atitude irracional, ele não saberia responder. Não havia um porquê, era apenas algo que estava dentro dele. Orgulho, vaidade, egoísmo....ele não sabia. Mas sentia-se bem ao saber que tinha uma parte dele que ela não conhecia e não podia tocar. Porque todo o resto já pertencia a ela. Seu coração, sua mente, seu corpo...

A música tornou-se mais lenta, como lágrimas sendo derramadas em seu coração. Levantou-se e afastou-se da cama, caminhando até a janela aberta. Observou a garota que treinava na beira da piscina. Ela havia se desenvolvido muito também. Ainda não era capaz de mexer com nenhum tipo de magia, e ele acreditava que jamais o seria, mas a sua força física e interior eram extraordinárias. Ela era capaz de competir de igual para igual com ele simplesmente porque não aceitava perder.

Ele lembrava-se de quando retornara à sua casa. Como fora duro o reinício, a distância que ela lhe impôs. Não havia se dado conta do quanto estava acostumado com a atenção de Meiling e os constantes exageros da garota, até perdê-los por completo. Ela o olhava sempre de longe, mal deixando que se aproximasse. A natureza da garota, naturalmente extrovertida e comunicativa, havia sido suprimida quando ao lado dele. Não foram poucas as vezes que se vira encerrado em seu quarto apenas a observando, sem que ela lhe desse chances de se aproximar.

Sabia que a havia magoado. Ela tinha se mostrado forte em sua visita à Tomoeda, mas quando retornara à Hong Kong, ele pôde notar a ferida profunda que provocara na garota. Os olhos o fitavam com dor e suspeita, o corpo ficava tenso sempre que ele se aproximava. Não foi fácil quebrar as defesas com as quais Meiling se auto protegeu. Demorou vários meses de trabalho árduo, insistência contínua, e uma amizade genuína até que o coração dela começou a ser moldado, voltando a olhá-lo com carinho e sem desconfiança.

Ele agradecia por tê-la ao seu lado. Não cria que teria sido capaz de suportar os anos que sucederam sua saída de Tomoeda se não fosse Meiling. Ela era radiante, como o crepúsculo vespertino que recusa-se a partir. Sempre expontânea, sorridente, falando mais do que devia e assim mantendo sua mente longe da melancolia na qual tendia a enclausurar-se.

Pegara por hábito observá-la da janela do seu quarto. Ela parecia tão concentrada enquanto treinava. Há muito deixara a maior parte dos seus adversários para trás. Não havia dúvidas que esmerava-se além do que seria exigido de alguém em sua posição. Ela costumava dizer que se não podia competir com ele com magia, o faria com seu corpo e mente. E tinha que admitir, que adversária fenomenal era ela! Apesar de ainda guardar seu jeito possessivo e ser propensa a arrumar encrencas, lhe agradava tê-la por perto.

Então, subitamente ela parou, virou o corpo e levantou os olhos encontrando os dele. Era o mesmo olhar que conhecera sua vida inteira. Um misto de desafio, fúria e malícia. Ela sorriu para ele, pegou a toalha que lhe era oferecida e desapareceu dentro da casa.

O rapaz permaneceu por algum tempo olhando para a paisagem agora vazia da piscina. Lembrava-se de quando Sakura fora visitá-lo e ficaram sozinhos durante uma noite. Havia sido a primeira vez, e ele sabia que jamais esqueceria aquele dia. A água era tudo o que os dois tinham entre eles, e seus sentimentos eram testemunhados apenas pelo céu negro. Abençoadas trevas salpicadas de pequenas gotas brilhantes que eram refletidas nas águas que os cobria.

A música mudou sua batida, de uma melancolia especiosa, para um ritmo habilmente sensual. A alteração o fez desviar os olhos das águas claras da piscina e os voltarem para o interior do seu quarto. Meiling estava parada ao lado do som, o semblante sério e o olhar altivo. Ele podia sentir a intensidade do olhar da garota. Ela não apenas o fitava, mas invadia sua alma, fazendo com que todas as dúvidas e conflitos que vinha enfrentando, o assolassem com um ímpeto maior do que poderia suportar.

Naquele momento, tudo o que desejou foi nunca ter se envolvido com a magia. Ela era a culpada de tudo o que vinha passando. Ela o havia levado a Tomoeda no princípio de tudo. Queria poder dizer adeus a ela e esquecer que um dia a praticou. Mas nada na vida era tão simples assim. Mesmo que rejeitasse a herança de Clow, sabia que a vida o encaminhava para o lado dela, e de Sakura, e ao torpor que costumava sentir quando via Meiling.

" O que quer Meiling?"

A voz havia saído mais áspera do que planejara, mas conhecendo Meiling, isso não seria um empecilho para a garota.

"Gostou da música?", perguntou com um sorriso maroto.

Ele desviou os olhos para o aparelho de som, tentando imaginar onde ela estaria querendo chegar.

"Sim."

"Só isso? Sim? É tudo o que tem a dizer?" Ela suspirou indignada. "Vai me dizer que ela não o faz sentir nada? Shaoran!!"

"O que você espera que eu diga?"

"Eu quero..." Meiling se aproximou do rapaz, baixando sua voz em um tom "...que você expresse o que ela o faz sentir."

Shaoran sentiu o rosto avermelhando. O que, afinal, ele diria a ela? Que o ritmo lento e sensual da música mexia com ele? Que a voz dela assim rouca e maliciosa o deixava sem ar? Que os olhos luminosos e os cabelos negros presos em dois charmosos coques ao lado da cabeça faziam sua boca secar e seu coração acelerar? Ele nunca poderia dizer em voz alta o que passava em sua mente agora, e o olhar insistente dela esperando uma resposta apenas o deixava mais calado e sem jeito.

"Ãh...acho que..."

Ela se aproximou ainda mais. "Acha que..."

Ele sentia-se paralisado, coisas demais passando em sua mente ao mesmo tempo para que conseguisse reagir. O olhar de Meiling, as batidas de seu coração, a lembrança de Sakura...

Como se estivesse atendendo ao seu apelo mudo, Meiling sorriu mais uma vez e então se afastou.

"Arh! Será que você nunca irá aprender, Shaoran?"

Ele suspirou aliviado ao afastar-se do contato perturbador da garota. Meiling não mais o agarrava como quando eram crianças. Apesar de tudo, ela gostava de Sakura e não tentaria deliberadamente magoar a garota. No entanto, cada vez mais Shaoran percebia que a prima passara a usar outros métodos e estes eram mais eficazes.

Não havia como negar que ela tornara-se uma moça linda. Aos dezoito anos atraía a atenção de todos ao seu redor, mas parecia inteiramente desinteressada de qualquer envolvimento amoroso, o que não impedia os rapazes de tentarem conquistar o seu coração. Ela não os desencorajava, mas os preteria um após o outro.

Shaoran conhecia a prima e os motivos que a levava a agir assim. Sabia como ela aprendera a usar o olhar, que alterava da malícia ou bondade à ira absoluta, como arma. A arrogância ainda estava muito viva na garota e este era o seu ponto fraco, mas o rosto perfeito costumava ofuscar os seus defeitos. Enquanto isso, ela aumentava o rol de admiradores a lhe cercar, como se todos tivessem um prazer masoquista de receber a atenção da garota apenas para serem descartados logo em seguir. Um a um tentando conquistar aquele coração que já estava preenchido, mas devidamente lacrado, enterrando um sentimento mais forte do que seria capaz de colocar em palavras, para evitar que sofresse a cada vez que olhasse para ele.

O que ele jamais pensou, é que um dia se renderia ao mesmo fascínio que atraíra tantos outros. Estupidamente deixara-se capturar pelo excesso de confiança. Meiling estava com ele todo o tempo, ele a conhecia, tinha ciência de seus jogos e sabia que a garota não pretendia ficar com ninguém. O amor era algo que ela havia descartado anos atrás e mesmo sendo ele a pessoa que ela almejara, acreditara piamente que este era mais um dos motivos que o faria imune. Além disso ele tinha Sakura, e ele amava a namorada. Então, por que a proximidade da prima o deixava tão confuso? Por que ele interpretava o olhar malicioso como um convite?

Era estupidez. Mais uma vez ele se via dividido, como se tudo em sua vida fosse um ciclo e ele se sentia incapaz de tomar alguma decisão definitiva.

"O que aconteceu?"

"Como?"

"Você está aí parado, me olhando há um tempão. Aconteceu alguma coisa?"

Ele corou novamente. Definitivamente, ele nunca iria aprender.

"...Não aconteceu nada. Eu só estava ... distraído."

A garota franziu as sobrancelhas em uma carranca. "Isto não foi nada gentil."

Ele suspirou em desalento, então notou o brilho nos olhos da prima. Ela tinha algo em mente, o que seria?

"Ah, esqueça. Eu vim lhe chamar para ir à piscina comigo."

Os olhos do rapaz abriram-se espantados.

"Piscina? Agora? Você está maluca, Meiling? Você acabou de sair de um treinamento, não é aconselhável ir para a piscina logo em seguida."

"Oh, deixe que de mim cuido eu. Você não vai escapar dessa vez, Shaoran." Ele sentiu o dedo indicador da garota tocar a ponto do seu nariz. "Acho bom que quando eu descer você já tenha se trocado."

Sem lhe dar tempo para protestar, ela já havia virado a volta e saído do quarto.

Grande! Era tudo o que ele precisava. Como se não bastasse o tumulto que se passava em seu íntimo, ainda teria que ir para a piscina com a prima.

Mesmo que estivesse com o pensamento longe enquanto se trocava, acabou demorando menos do que previra, e quando chegou à beira da piscina, Meiling ainda não havia aparecido. Sem muita vontade de entrar sozinho, ficou observando seu reflexo na água. Ele não era infeliz, mas a confusão pela qual passava parecia estampada em seus olhos. Teria Meiling percebido? Seria por isso que ela voltara a provocá-lo ultimamente?

Tocou a água com os dedos, desfazendo a imagem perfeita de seu rosto. Era assim que se sentia. Disforme e incapaz de voltar à calmaria. Queria poder estar com Sakura agora, mas como sempre ela estava longe. Ainda não entendia como podiam continuar juntos depois de sete anos vivendo um relacionamento a distância. A cada dia tornavam-se mais estranhos um ao outro, e no entanto ainda se amavam.

Fechou os olhos sentindo o calor do sol em seu rosto. Até onde esse amor era real? Até onde era saudável? Como saber que não haviam apenas apegado-se a um sentimento que nascera anos atrás e que não poderia subsistir, mas que ambos não se sentiam capazes de romper?

"Shaoran?"

Virou-se na direção da voz e seus olhos pousaram em Meiling. Ela usava um biquini verde água e trazia os cabelos soltos, adornando o corpo até quase a cintura. Era uma bela vista, ele não podia negar.

"Gostou?"

"Muito."

E como poderia não gostar? Ela estava linda! O corpo a mostra lhe parecendo extremamente convidativo.

"Eu demorei uma eternidade até encontrar algo que me agradasse. Parece que todas as lojas resolveram vender modelos iguais e sem nenhum atrativo."

"Como?"

Ela olhou curiosa para a face confusa do rapaz.

"O biquini."

"O que tem ele?"

Meiling franziu as sobrancelhas e colocou as mãos na cintura. "Como assim o que tem ele? Eu lhe perguntei se gostou e você disse que sim! Do que afinal estava falando se não era do biquini?"

Shaoran abriu os olhos em espanto e corou envergonhado. Não era exatamente o biquini que ele tinha reparado quando vira a prima chegar.

Sem saber o que dizer e sentindo-se acuado perante a presença intimidante de Meiling, o rapaz mergulhou na água gelada da piscina, nadando o mais rápido que conseguiu para o lado oposto. Tudo isso estava lhe atormentando. Não conseguia ter mais nem um único minuto de paz sem que as imagens vívidas de Meiling e Sakura aparecessem em sua mente.

O que faria? Gostaria que as braçadas possantes que dava na água pudessem lhe ajudar a encontrar uma solução para o seu dilema. Se cedesse ao seu desejo por Meiling, acabaria por perder Sakura. E se não cedesse... Ouviu o som da água espirrando ao receber o corpo da garota que mergulhava. Os cabelos longos espalhavam-se atraentes na água límpida. Pôde perceber o momento exato em que ela parou e voltou para a beirada da piscina, sentando-se na pedra fria que a circundava.

Por mais que tentasse resistir, os sons produzidos por Meiling o fizeram voltar-se e observá-la. Sentada com a água escorrendo pelo corpo parcamente coberto pelo biquini verde-água, ela parecia a imagem perfeita da tentação. Ele sentiu algo em seu íntimo revolver-se e a garganta tornar-se subitamente seca. Como não ceder, se a simples visão da prima o fazia arder? Como resistir se tinha que conviver dia após dia ao lado da garota, que com seu corpo perfeito, risada cruel e jeito obstinado o enlouqueciam a ponto de esquecer quem era ou como conhecia o resultado dos joguinhos que ela aprimorara com os anos?

Frustrado com a sua total incapacidade de administrar os próprios pensamentos, Shaoran voltou a nadar, descarregando na água a sua fúria e confusão. Não deveria ter aceitado ir até ali. Não estava lhe adiantando absolutamente nada ficar tão perto de Meiling.

Chegou a extremidade da piscina e com um impulso saiu da água, deitando-se sob o sol. Depois de tantos anos fortalecendo sua magia, deveria ser mais capaz de resistir aos impulsos do próprio corpo. Mas não, pelo que notava, o seu corpo pensava sozinho, não se importando a mínima com o seu constrangimento.

De repente sentiu que uma sombra obscureceu o sol que batia forte em seus olhos fechados. Abriu, como por instinto, e fitou o brilho castanho dos olhos de Meiling que pairava com o rosto muito próximo ao seu. Segurou a respiração por alguns instantes, sem saber ao certo o que fazer, mas foi ela quem quebrou a tensão que os rodeava.

"O que está pensando?"

"Como?"

Ela rolou e se deitou ao lado dele, também recebendo o calor bem vindo do sol.

"Você está aí, quieto, fazendo de conta que eu não existo, mas eu sei que está pensando em alguma coisa. O que houve?"

"Nada sério. Eu só pensava sobre o dia a dia."

"Hn! Acha que pode me enganar desse jeito, Shaoran? Eu sei que alguma coisa muito importante se passa aí dentro dessa cabecinha. Você anda mais calado do que de costume, tem me evitado..."

"Eu não tenho te evitado!"

"Ahá!" disse ela com um salto, olhando bem dentro dos olhos do rapaz. "Eu sabia! Eu sabia! Algo o está aborrecendo, e você não está querendo me contar. Mas eu não vou desistir tão fácil. Você vai me contar por bem ou por mal!"

Ele soube no momento em que negara com tanta veemência que havia cometido um deslize. Atiçara o dragão e agora teria que lidar com a curiosidade insaciável de Meiling. Sentou-se e colocou os pés na água, de modo que não precisasse olhar para o rosto inquiridor da garota.

"Meiling, você tem que parar com isso. Tem coisas sobre mim que eu gostaria de manter do jeito que estão, apenas comigo, sem precisar dividir com ninguém."

"Não venha com esta conversa para cima de mim! Alguma coisa está te atormentando e eu te conheço bem, Shaoran, não é de hoje. É a Sakura, não é?"

Ele voltou-se para ela, a surpresa estampada em sua face.

Meiling notou a mudança sutil no primo, a tensão em seu corpo, a confusão em seus olhos. Shaoran podia ser completamente introspectivo, mal deixando que suas emoções transparecessem, mas não quando se tratava da namorada. Ele nunca conseguira esconder o que se passava em seu íntimo quando o assunto era Sakura. Primeiro o desprezo, depois a admiração, e por fim o amor. E agora.... o que ela enxergava era sofrimento e um profundo conflito.

Sorriu com simpatia e procurou deixar o rapaz menos esquivo. O que não imaginava era que seu sorriso caloroso servia apenas para atormentá-lo ainda mais, com o desejo de tomá-la em seus braços e repeli-la ao mesmo tempo.

"Hei, não precisa ficar assim surpreso. É uma dedução lógica, você não acha? Não pode ser a magia que o preocupa, pois você tem progredido muito, tampouco são os treinos, já que sua técnica de luta é espantosa e eu não conheço ninguém que seja tão bom quanto você. A faculdade...bem, você é certinho demais para ter qualquer complicação com os estudos, e como seus problemas familiares eu conheço todos, a única coisa que resta é a Sakura."

Ela despejara as palavras em uma seqüência ininterrupta, totalmente inconsciente dos olhos dele fixos em seus lábios, no movimento leve de seu peito, nas pequenas gotas d’água sobre a pele, evaporando sob o calor do sol.

"Eu sei que as coisas não estão bem, Shaoran. Não sei de quem é a culpa, ou se há um culpado, mas é evidente que a situação de vocês está te machucando. Pensa que eu não noto o seu olhar triste, os seus suspiros angustiados, as olhadas de relance para o telefone? As vezes penso que se os dias passassem mais rápidos a cada vez que você olha para o calendário esperando o dia que ela virá, nós já estaríamos dois anos à frente."

"Você está exagerando."

"Ah...eu estou? Tem certeza?"

Ele ficou em silêncio por alguns instantes, e quando falou foi com certa convicção, como se pretendesse dissipar todos os fantasmas que o atormentavam e encerrar logo o assunto.

"É natural que eu sinta a falta dela, não é?"

"É claro...", ela pulou novamente na água e parou em frente a ele, segurando as pernas do primo enquanto o fitava ainda sentado na pedra. "...Mas o que está te incomodando não é a distância dela, mas a chegada tão próxima."

"Que tolice, Meiling!" Ele puxou as pernas para fora da água, rompendo o contato com as mãos da garota, que pareciam queimá-lo. "Por que eu ficaria incomodado com a chegada de Sakura? Eu estou há meses sem vê-la e só eu sei a saudade que sinto."

Meiling o fitou, o semblante extremamente sério. Não havia raiva, carinho, cinismo ou malícia, era apenas o rosto bonito completamente relaxado, as feições imperturbáveis.

"Eu não duvido de suas palavras. Sei o quanto gosta da Sakura e sente falta dela, mas também sei que em algum momento no meio do caminho, a idéia de tê-la aqui começou a te assustar. É como se você tivesse medo de constatar que ela o atrapalharia em alguma coisa."

"Isto é absurdo!", ele falou, colocando-se de pé e afastando-se da piscina. Mas lá no seu íntimo o seu inconsciente absorvia as palavras da prima, meditando no que acabara de ouvir.

"Eu não sei o porquê do seu medo, Shaoran. Tudo o que eu sei é o que seus olhos me dizem, o que não é muita coisa, já que você é perito em mascarar seus sentimentos."

"Acredita de verdade no que disse?"

Ele se virou e percebeu que ela estava de pé bem atrás dele, quase se chocando ao seu corpo com a parada brusca. Observou os cabelos longos e molhados grudados à pele clara, os olhos castanhos destituídos do cinismo e arrogância habituais, os lábios rosados semi-abertos como se estivessem a convidá-lo.

Inspirou profundamente tentando controlar o próprio desejo, mas não conseguia sequer desviar os olhos da mulher à sua frente.

"Eu sei que estou certa. Eu só não imagino o que está despertando esse conflito em você."

Os olhos dele percorreram a extensão do corpo feminino, a pele levemente arrepiada da brisa fria que soprava, a despeito do sol que os envolvia. Tocou nos ombros nus de Meiling e o contato singelo o fez estremecer, a pele da mulher provocando um choque agradável em seu corpo.

Deslizou os dedos pelo ombro e pescoço delicado, acariciando gentilmente a face cálida. Seus olhos não se afastaram nem por um instante do brilho sensual dos olhos de Meiling. O caçador e a presa. Quem era quem?

"Realmente não imagina?"

A voz era pouco mais que um sussurro, um fôlego suave, como o ronronar de um felino. Os lábios muito próximos aos dela e seu corpo inteiro ardendo em chamas fúlgidas, clamando para saciar um desejjo que permanecera adormecido por dias incontáveis e que agora mostrava-se fora de qualquer controle que um dia pudera ter exercido sobre ele.

Pôde sentir Meiling estremecer levemente sob o toque de seus dedos, a respiração morna como uma carícia. Deus, como a queria! Mesmo sem tocá-la, sua mente imaginava o gosto doce dos lábios macios, fazendo com que seus próprios lábios tremessem em antecipação. O sangue corria desvairado por seu corpo, e não soube explicar como ou quando aconteceu, mas subitamente se viu sentindo a extensão do corpo colado ao seu. Os seios macios roçando seu peito, as coxas femininas tocando as suas em um contraste ante a delicadeza dela e os seus músculos firmes, os quadris sensualmente pousados sobre os seus, fazendo-o mais consciente de sua excitação crescente.

Ela estava ofegante, o leve subir e descer do peito em busca de ar tornava-se cada vez mais sensual. A pequena distância que separava seus lábios era tudo o que os mantinha lúcidos, mas a cada segundo a sanidade dava lugar ao desejo incontrolável que se apossara do casal, como um cavalo selvagem que se recusava a ser domesticado.

"Sr. Shaoran?"

A voz parecia vir de muito longe, e a mente do jovem, inflamada pelo desejo, demorou a captar a origem e sentido das palavras.

"Sr. Shaoran?"

Ele virou-se, deparando-se com o semblante inexpressivo de Wei.

"Telefone para o senhor....do Japão."

Se a terra tivesse desaparecido de seus pés, ele não teria se sentido mais perdido. Olhou para o empregado e amigo, a confusão evidente em seu rosto. Voltou-se então para a prima que já afastara-se à uma distância decente e segura.

Inspirou profundamente e deixou o ar escapar de seus pulmões com muita calma, proporcionando ao seu corpo um tempo considerável para acalmar-se.

Quando pegou o telefone que lhe era estendido, as suas mãos tremiam, e com um olhar de relance para Meiling, encaminhou-se para dentro da casa.

"Alô?"

"Shaoran? Sou eu, Sakura."

A voz animada e inocente da namorada o fez deter-se em meio a um passo, o rosto ficando subitamente vermelho. Sabia que era tolice, afinal, ela estava à quilômetros de distância, mas para ele, a vergonha era mesma que sentiria se ela estivesse ali, à sua frente. A confiança era tudo o que os dois tinham, e agora...

Meiling observou Shaoran afastar-se com o telefone grudado ao ouvido como se fosse sua tábua de salvação. Fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás, tentando recuperar o equilíbrio sobre seu corpo e suas emoções.

O que acontecera ali, afinal? Não haviam feito nada realmente, mas a eletricidade que os dois corpos trocaram fora a mais intensa que já provara em sua vida. Ainda podia ouvir os dois corações batendo em uníssono, e isto a assustou.

Olhou mais uma vez para a direção que Shaoran seguira, encontrando apenas a estrutura imponente da casa. O que faria agora?

~*~*~*~*~*~*~*~

Ele terminou de cortar as fatias de atum e pegou o robalo que havia separado. Cozinhar para a família era sempre uma tarefa trabalhosa, já que todos tinham um gosto muito diferente e era difícil encontrar um prato que agradasse a grande maioria.

A verdade é que ele não se sentia muito disposto a esta reunião familiar. Desde o evento na piscina que não via Meiling e isso já fazia quase uma semana. Não era do feitio dela desaparecer assim. E agora, revê-la na frente de todos...estava se sentindo um pouco intimidado.

Havia tentado dissuadir a mãe da idéia, mas desde que suas irmãs partiram a mãe tinha estado muito só. É claro que ela não se manifestava a este respeito, jamais admitiria que se sentia solitária na imensa casa habitada apenas por ela e Shaoran. Mas ele conhecia a mãe. A estrutura familiar sempre fora a sua força e lutara bravamente na criação das quatro filhas e do único filho. Ele percebia o quão calada ele tornara-se após a saída das irmãs e o conseqüente silêncio da casa.

Shaoran era bastante consciente da sua condição. Amava a mãe e se davam muito bem, mas a distância natural inerente à cultura chinesa sempre estaria presente. Se ele ao menos fosse expansivo como as irmãs, saberia lidar melhor com a situação, mas ele era o extremo oposto. É claro que a mãe compreendia sua introspecção e, pensava ele, até mesmo admirava, mas o falatório contínuo das filhas e a completa falta de um espírito contemplativo nas garotas, já fazia parte da casa Li, e o retorno à época em que os filhos ainda não haviam nascido, onde ali viviam apenas ela, o marido e uma família muito mais atenta aos costumes milenares do que se encontrava nos dias atuais, era algo que parecia difícil se acostumar.

Então ele cedera. Seria bom para a mãe rever Fenmei e o genro. E sua irmã estaria trazendo Qing e Tyan-yu, que com a energia que possuíam, eram a luz para sua mãe que se sentia imensamente orgulhosa dos netos.

Fuutie, Shiefa e Fanrei não poderiam vir, cada qual envolvida em seus próprios problemas, suas próprias famílias. Mas Meiling e os pais não deixariam de comparecer. Na verdade, Ieran estava mais próxima de seus tios do que jamais estivera, e ele se agradava disso. Sabia que não poderia ficar ao lado dela para sempre, e ficava feliz em ver que com o casamento das filhas sua mãe voltara a firmar os laços com os outros membros da família que lhe eram tão caros.

Despejou com cuidado o molho sobre as verduras e o peixe, e pensou em Sakura. A situação vinha se tornando cada vez mais insustentável para ele. A falta que ela lhe fazia doía tanto quanto uma ferida que se recusava a curar-se.

Desde o telefonema que o pegara em um momento tão impróprio, ele se via pensando nela com uma insistência quase incômoda. A sua mente já havia reconstituído aquela cena inúmeras vezes, sempre se repreendendo por ter-se deixado dominar por seus instintos. Esse não era ele, e dar-se conta de que estava perdendo o domínio sobre o próprio corpo, o estava assustando.

Ainda sentia a vergonha inflamar-lhe quando se recordava daquele dia. O que teria feito se Sakura não tivesse telefonado? E a voz animada da namorada, as palavras envoltas em seu tom terno e carinhoso, apenas o faziam sentir-se mais miserável e indigno.

Nunca pensara que recordar-se de Sakura pudesse ser espinhoso, mas o fato é que a simples lembrança do rosto meigo e bonito o colocava em conflito com seu próprio ser egoísta e traiçoeiro. Como podia estar fazendo isto a ela? Quem lhe dera o direito de desejar outra mulher?

Sentiu o rosto avermelhar diante do rumo dos seus pensamentos. Dentre os hipócritas ele era o maior. Envergonhava-se pelo que sentia e ansiava com todas as suas forças poder sufocar estes pensamentos ultrajantes. Ele pertencia à Sakura, ele a amava, devia à ela a pureza de seus pensamentos. Mas como uma criança rebelde, cada vez que seu coração o fazia lembrar-se da namorada, a mente o levava para caminhos opostos e era o rosto de Meiling que via, era o corpo da prima que ansiava, e isto o estava enlouquecendo.

"Se colocar mais saquê neste frango, acabaremos todos embriagados sem precisarmos tocar nos copos."

Ele sentiu um súbito arrepio na espinha, a tensão sexual vibrando em seu corpo ao som da voz sussurrada em seu ouvido. Ele a havia sentido chegar, é claro. Sabia que se aproximava, mas isto não impediu seu corpo de reagir traiçoeiro à essência feminina tão próxima a ele.

"Está insinuando que não sei preparar o prato?" A voz saiu gelada, quase inexpressiva. A vontade que tinha era de gritar, implorar para que ela saísse de perto dele, a proximidade o deixando atordoado e descuidado. Mas segurou seus impulsos e procurou não demonstrar suas emoções. Que ele sofresse sozinho com os conflitos em seu íntimo.

"Oh, não," ela disse em meio a uma risada. "Estou apenas lhe dando a minha opinião pessoal. Mas se a sua intenção é nos deixar ‘altos’..."

Para o seu alívio, ela se afastou e recostou-se no armário da cozinha, dando-lhe espaço para colocar sua agitação em total controle novamente. Gastou alguns segundos no processo de desviar as atenções do seu corpo e mente da presença da garota, então, quando se sentiu pronto, virou-se e fitou-a.

"O que faz aqui tão cedo, Meiling? Minha mãe nem chegou em casa ainda."

"Eu vim na frente", respondeu despreocupada, dando tanta atenção a ele quanto daria a qualquer um. "Como eu sei que a tia tem estado com mais tempo livro desde que a última das quatro se casou, resolvi trazer um presente para alegrá-la e ajudá-la a ocupar o tempo. Então saí mais cedo de casa, mas acabei demorando menos do que imaginava."

Shaoran aquiesceu em silêncio, satisfeito por Meiling manter-se distante. As vezes se perguntava se a prima estava agindo de forma voluntária com ele, ou se o mantinha em suas rédeas estreitas inconscientemente.

"Quer ajuda?"

"Não aqui, mas se quiser arrumar a mesa...."

Meiling concordou com um sorriso e ele voltou sua atenção para o jantar.
 
 

O deslizar suave da porta que o separava dos membros femininos da família, foi como uma lâmina sobre seu pescoço. Era o final perfeito para uma noite desastrosa.

A princípio tudo começara bem. Sua mãe chegara a tempo de impedir que seu desejo pela prima falasse mais alto que a razão, e desde que Ieran colocara os pés na casa, Meiling dedicara toda atenção à tia. Quase em seguida chegaram Fenmei, o marido e as crianças. Os pais de Meiling só chegaram no horário estabelecido, o que lhe deu tempo suficiente para terminar o jantar, tomar banho e recepcioná-los com dignidade.

O jantar fora maravilhoso...para os outros. Todos conversaram animados, riram das travessuras dos pequenos e elogiaram inúmeras vezes sua comida. Mas ele não conseguira relaxar um único minuto durante toda a noite. Comera a própria comida por respeito aos demais à mesa, pois não conseguira sentir o sabor de nenhum dos alimentos.

Sua mãe colocara Meiling sentada à sua frente, e ele, por mais que tentasse tirar os olhos da garota, vira-se invariavelmente atraído à ela como abelha ao mel.

Meiling estava adorável, a pele clara levemente rosada devido ao saquê, os olhos brilhando desafiadores, como se o instigassem a perder o pouco controle que ainda tinha sobre si.

Ela conversara a noite toda, rira, totalmente inconsciente do revolver furioso de suas entranhas a cada sorriso, a cada balançar dos cabelos negros, a cada toque em seus dedos ao encher o seu copo de mais saquê. Precisara policiar-se durante todo o jantar, procurando afastar sua mente daquela cena, da sensação absurda de que estavam sós ao redor daquela mesa.

O perfume que ela exalava penetrava em seu íntimo, entorpecendo ainda mais seu raciocínio. As outras vozes não significavam nada, tudo o que importava era o roçar casual da pele de Meiling de encontro à sua.

Respondera as perguntas que lhe fizeram como um autônomo, com o corpo presente mas a alma à quilômetros de distância, entrelaçada à pele macia e o aroma suave da prima.

Agradecera aos céus quando decidiram encerrar a refeição. Foi então que Meiling anunciara o presente à Ieran. Segundo ela, não conseguira encontrar algo do seu gosto e que estivesse à altura da tia, por isso resolvera lhe fazer uma surpresa. Expulsara os homens da sala e aninhara-se com Ieran, a mãe e Fenmei no salão principal.

Shaoran ficara confuso por alguns instantes. Meiling não mencionara nada a respeito durante a conversa que tiveram antes do jantar. E a sentença definitiva de que ele deveria manter-se afastado da sala onde se reuniram as mulheres, instigara sua curiosidade.

O tio e o cunhado foram à outra parte do casarão, absortos na tradicional conversa sobre a economia e situação da família diante dos problemas que vinham turvando a paz de Hong Kong nos últimos anos. E ele decidira esquecer a tudo e a todos, recuperar a sua harmonia e sentir-se em comunhão consigo mesmo.

Então a música começou, lenta e melódica, e, talvez por isso, extremamente sensual. Toda a sua determinação em abandonar aquele plano e vagar pelo desconhecido que o cercava, foi ruindo como um castelo de cartas.

Ainda tentou, em uma sôfrega necessidade de manter-se dono de si mesmo, afastar a música para um compartimento bem afastado de sua mente. Observou uma pequena flor amarela que começava a desabrochar e obrigou seus sentidos a unirem-se com ela, sentir a seiva que corria pela planta, ouvir o mais tênue som que a flor delicada emitia ao abandonar seu invólucro seguro e lançar-se ao mundo.

Seu coração batia devagar, quase em sincronia com a natureza que o cercava, os ouvidos fechados a qualquer som que não os emitidos pela flor amarela, a mente vagando no vazio, livre de imagens e tormentos...Então o sorriso felino invadiu sua mente, trazendo-o de volta do Vazio. A flor emudeceu, a música recomeçou alta e fremente, sua wa agitou-se, perdendo toda a harmonia.

Amaldiçoou a si mesmo por se permitir ser atormentado pela visão da prima. E agora a curiosidade voltou com todo o seu ímpeto, o sangue correndo veloz por seu corpo, o peito arfando ante a expectativa de descobrir o que estaria se passando por trás daquelas portas cerradas.

Afastou-se do jardim onde fora buscar alívio para sua mente confusa, e caminhou até o pequeno nicho localizado no canto esquerdo da sala. Tomara uma decisão movido pelo instinto, o que não era comum a ele. Abaixou-se silencioso e, tocando no nicho quase secreto, abriu um pequeno vão na porta, de modo que seus olhos pudessem visualizar o que se passava na sala proibida.

A música parou e ele pôde ver Meiling surgir no meio da sala, uma capa rosa escuro cobrindo todo o corpo. Ela caminhou até o som e inseriu um CD que ele não conhecia, e voltou para a posição anterior. A atenção das três mulheres voltada para ela. Então a música recomeçou. O som era limpo e a melodia clara. Feminilidade, era o que gritava a mente de Shaoran ao ouvir o ritmo desconhecido.

A capa deslizou para o chão, revelando o corpo bem feito de Meiling, parcamente coberto por vestimentas árabes de tecido diáfano e sensual. Shaoran sentiu uma pontada em sua virilha e desejou jamais ter se postado ali para observar. Mas agora não seria mais capaz de abandonar a visão da prima executando a dança da fertilidade com extrema maestria.

Ela e a música pareciam extensão de um mesmo ser, o corpo contorcendo-se em movimentos sensuais, a técnica perfeita, mas a energia que fluía do interior de Meiling muito mais atraente do que a perfeição dos movimentos.

Os olhos dele passearam pelos braços bem desenhados, os seios cheios, o ventre liso e macio, os quadris arredondados, a coxa sedutora, os movimentos lânguidos e voluptuosos. Sentiu o corpo todo estremecer em um espasmo de prazer, e novamente se amaldiçoou por permitir-se ceder ao desejo.

Era óbvio que Meiling não dançava para ele. Shaoran sequer deveria estar ali! A dança era o presente da prima à sua mãe, e sabendo o efeito que causaria ela ordenara que os homens se retirassem. Mas ele tentara seus limites, curvara-se à fraqueza e agora seu corpo ansiava por sentir a maciez da prima, deslizar as mãos por sobre a pele alva, acariciar os seios túmidos, mordiscar-lhe a coxa e sentir-lhe o perfume.

A música chegou ao fim e as mulheres aplaudiram extasiadas. Ele deslizou a porta, mantendo-se separado das mulheres e ainda incógnito. Olhou para a própria excitação e corou envergonhado. Invadira a intimidade de Meiling, não era correto o que sentia. A dança não fora executada para ele, não com o objetivo de excitá-lo.

Respirou fundo e decidiu afastar-se. Precisava colocar os pensamentos em ordem, e novamente dominar o corpo.

Saiu para o jardim, contemplando o verde meticulosamente cultivado. Sempre fora agradável sair para o ar fresco e acolhedor do jardim que sua mãe vinha preservando ano após ano. Era ali que ele sempre se refugiava quando precisava pensar, decidir, ou simplesmente entrar em contato consigo mesmo. O seu paraíso particular, onde nada nem ninguém o alcançavam. Era apenas o céu, o verde e ele.

Ficou ali parado durante vários minutos, sentindo a energia do lugar, o vento frio que começou a bater, o clarão contínuo anunciando uma tempestade iminente. Quando ela chegou não precisou dizer palavra alguma, ele a sentiu com tanta intensidade quanto se ela o tivesse tocado. Cada passo que a aproximava dele, era como uma onda revolta em um mar turbulento, lhe tirando a razão.

Precisou de uma força que não pensara possuir, para resistir ao desejo de virar-se e tocá-la, a imagem sensual da prima dançando na sala ainda brincando em sua mente, zombeteira, como se incitando-o a testar seus próprios limites.

O toque quente dos dedos delicados em sua nuca não foram inesperados, mas provocaram um arrepio por todo o seu corpo. Sentiu a respiração alterar-se, e procurou se concentrar em mantê-la em um padrão normal, de modo que não fosse traído pelo próprio corpo.

Ela ficou ali, no mais completo silêncio, apenas brincando com a base de seus cabelos, arranhando as unhas bem feitas na pele sensível de sua nuca, inconsciente do efeito que o gesto provocava em seu íntimo.

Fechou os olhos, deixando uma agradável moleza percorrer seu corpo enquanto o vento açoitava seu rosto, fazendo-o sentir-se em um sonho que não ousava tornar real.

"No que está pensando?"

A voz, quase um sussurro reverencial, o fez abrir os olhos, cada vez mais consciente do calor que emanava do outro corpo tão próximo ao seu. Virou-se e fitou os grandes olhos castanhos que brilhavam sedutores, sem qualquer traço de malícia ou ironia.

"Em você", foi a resposta franca.

As gemas escuras abriram-se em espanto. Ele estava certo que por isso a prima não esperava. Ele mesmo não sabia com havia falado.

"Em mim?", falou, a voz traindo a surpresa. "Aqui, no seu santuário? Isto é bom ou ruim?"

Shaoran pôde notar a súbita mudança. Antes ela era uma gatinha manhosa, as unhas o arranhando em busca de atenção, estimulando-o, provocando-o. E agora o retraimento, o ar brincalhão, o eterno jogo. E assim como acontecia com todos aqueles em quem ela aplicava seus joguinhos de sedução, ele sentiu o corpo inflamar. Segurou o pulso que antes o acariciava e olhou-a sério.

Meiling sustentou o olhar, o coração aos pulos. A face, antes zombeteira, agora o fitava com um misto de ansiedade, fascinação e, por que não dizer, expectativa. O cabelo negro caía liso e maleável sobre os ombros nus, como se dançasse sobre a pele pálida e levemente arrepiada do frio.

Os olhos dela deixaram os dele e se dirigiram ao pulso ainda preso com firmeza pela mão de Shaoran, como se esperasse que ele a soltasse. Mas ao contrário do que ela esperava, ele pressionou ainda mais os dedos ao redor da pele macia e a puxou para perto do próprio corpo.

"Shaoran o que..."

Antes que pudesse completar o pensamento, os lábios dele cobriram os dela em um beijo exigente e profundo. Não era mais a hora de refletir, ele vinha fazendo isso há mais tempo do que podia lembrar e agora tudo o que queria era a boca de Meiling, a pele macia da prima deslizando sobre a dele, a eletricidade e vida que dela emanavam penetrando em seus poros, escorrendo por seu corpo, satisfazendo seu desejo.

Ele não deu à ela tempo para reagir ou mesmo pensar. Invadiu a boca de Meling com movimentos ágeis de sua língua, saboreando cada segundo do beijo que ansiara por tanto tempo.

Pôde sentir a resistência inicial na prima, o corpo tenso encostado ao dele, a boca movendo-se quase com autonomia. Até que começou a ceder, o corpo arqueando-se para senti-lo mais perto, as mãos deslizando entre os seus cabelos.

Shaoran soltou o pulso que até então mantinha firme entre os dedos, e acariciou o braço delicado, mas forte. Queria afastar-se e olhá-la nos olhos, mas as mãos de Meiling começaram a brincar com seu corpo, provocando-o e incitando-o a continuar.

Os músculos de seu estômago retraíram-se ao sentir as mãos da prima sob a sua camisa, as unhas arranhando-o sensualmente enquanto os lábios quentes mordiscavam o lóbulo de sua orelha. Ele sentiu-se estremecer e um calor agradável percorreu seu corpo. Era irônico como nestas horas toda a vergonha e razão desapareciam, os instintos mais básicos controlando seus atos, gestos e vontades. Mesmo que sua mente insistisse em gritar-lhe a amoralidade do que faziam, seu corpo e seu desejo obstinadamente rejeitavam os apelos vãos do que restava de sua lucidez.

Livrou-se da própria camisa permitindo que a língua dela percorresse seu corpo seminu de Meiling, a pele levemente arrepiada do vento frio aquecendo-se ao toque lascivo de seus dedos.

Assim como ela brincava com seu corpo, ele começou a mordiscar os ombros da prima, beijando o colo alvo em busca dos seios macios, os quais cobriu com sua mão, livrando-a da peça ínfima e diáfana que cobriam sua nudez. Ela, por sua vez, deslizou as mãos com agilidade para a cintura de Shaoran, apreciando por um momento o tórax bem trabalhado e a cintura fina, para então abrir o zíper da calça que em vão tentava conter a excitação do rapaz.

O ronronar suave do zíper sendo aberto foi abafado por um gemido dela ao sentir as mãos de Shaoran subitamente em sua coxa, massageando-a com sensualidade e provocando um prazer que quase a levou ao delírio.

A calça escorregou livremente até o chão, no mesmo ritmo que a água desabava do céu carregado de nuvens espessas. Ele soltou por um instante as coxas sedosas e olhou para a água que caía torrencialmente sobre eles, nem de longe amainando o incêndio que ali se instalara.

Como em um pedido mudo, Meiling segurou os cabelos do primo e o trouxe para mais perto de si e Shaoran a beijou mais uma vez, apreciando o gosto doce da prima misturado com a água da chuva.

Como deixara as coisas chegarem àquele ponto? Agora não haveria mais volta, ele não conseguiria mais parar, não importava o quanto algo em seu íntimo lhe avisasse que não deveria agir dessa forma. O corpo de Meiling clamava o seu, a respiração ofegante de ambos soando como um pedido mudo de consumação.

Era tempo demais, ele a queria tempo demais e só agora dava-se conta disso. As mãos dela alcançaram suas partes íntimas fazendo-o encolher-se diante do súbito prazer. O que importava o mundo lá fora? Agora eram apenas os dois, e talvez sempre tenha sido. Fora ela a ser os seus olhos quando não pudera ver, era ela quem cruzaria o Oceano para que ele não se afogasse, fora ela quem abrira sua boca quando não pôde respirar.

Gemeu mais uma vez, totalmente inconsciente de seus atos, o corpo estremecendo vez após vez ao toque das mãos dela. Um prazer genuíno e há muito esperado. Então ela parou e o fitou, os olhos muito limpos lhe dizendo claramente que queria tudo ou nada, para ela não havia alternativas.

Ele abaixou-se lentamente enquanto lambia as gotas d’água que insistiam em correr na pele alva, fazendo-a arquejar de prazer, a língua percorrendo um caminho seguro e definitivo ao seu destino.

Parou no ventre liso e delicado, enquanto dois dedos a penetravam, numa antecipação de seu próprio ser. Ele sentiu o corpo de Meiling se retraindo e os grandes olhos se abrindo em choque.

"Meiling, você..."

Ela o calou com os lábios, recusando-se a interromper o momento com qualquer palavra. Onde estavam não precisavam de palavras, convenções ou regras. Seus corpos falavam por eles, e ambas sabiam já terem ultrapassado o ponto sem volta.

Shaoran afastou-se dos lábios da prima no mesmo instante que retirava seus dedos ante os espasmos de Meiling, colocando-os na própria boca. Fechou os olhos enquanto sentia a essência da garota em sua língua, saboreando cada parte do corpo da prima. Então, sem realmente pensar, puxou Meiling para o seu colo e a penetrou, lenta e delicadamente, permitindo-se sentir cada espaço que agora ocupava, e dando à prima a chance de alcançar o mesmo gozo que ele experimentava.

Podia sentir as pernas amolecendo enquanto o corpo estremecia em espasmos simultâneos aos de Meiling. A garota não sabia ao certo se gritava, chorava ou ria, decidindo-se por cravar os dentes nos ombros firmes do rapaz, enquanto se segurava a ele com mais força, dançando em um ritmo que apenas ambos conheciam.

E quando enfim o momento passou, ele a deitou no verde que se estendia por todo o chão do jardim, o som furioso dos trovões ribombando em seus ouvidos, a luz dos relâmpagos espocando em seus olhos, permitindo-lhes enxergar o corpo nu um do outro. Então eles iniciaram mais uma vez, alcançando o prazer sublime uma vez após a outra até que seus corpos não mais conseguissem se mover.

Por fim ele rolou para o chão ao lado dela, permitindo que a chuva cada vez mais forte caísse em seu rosto. O aroma de terra molhada invadiu seus sentidos, fazendo-o lembrar-se de uma viagem que fizera à Inglaterra há alguns anos, quando a vida era mais simples e correta. Agora, quem era ele?

Virou-se para a prima e a viu estendida sob o céu turbulento, as feições relaxadas e os olhos fechados. Ela era muito bonita, mas não fora a beleza de Meiling que o atraíra. Era todo um conjunto, toda uma gama de experiências vivenciadas pelos dois e que acabaram por construir entre eles algo mais forte do que aceitavam admitir.

Pensou em Sakura que chegaria em breve. Como poderia olhar para ela novamente? Como pudera deixar seu corpo tomar as rédeas de sua vida? Sentiu-se um ser desprezível, indigno do amor sublime da garota.

Fechou os olhos com raiva, apertando o maxilar. Como chegara até ali? Por que isso? Não era justo com ela, ele ou Meiling. Era obrigação dele resistir. E Meiling...Deus, o que faria agora? Jamais pensara que Meiling...

Levantou-se num rompante e sentiu a rajada de vento abraça-lo, o frio súbito desnudando-lhe a alma. Como um prazer tão intenso poderia se transformar em uma angústia tão profunda? Sentia como se todo o seu corpo tivesse se transformado em vidro e quebrado em mil caquinhos, todos afiados mas inúteis.

Olhou para a própria nudez e se envergonhou. Não da falta das roupas, mas da falta de caráter. Sakura não merecia isso. Ele lhe prometera apoio incondicional, confiança irrestrita e amor eterno, e agora...

Caminhou alguns passos em direção ao outro lado do jardim, os pés descalços sentindo a terra molhada sob eles. Deveria falar com Meiling, ela esperava isso dele. Mas seu corpo recusava-se a mexer, os olhos negavam-se a fitá-la. Sentia-se envergonhado, sujo, traiçoeiro. Seu coração pulsava como louco, a cabeça latejava ante a idéia de obrigar-se a olhar para a prima, explicar-se com ela. A alma sangrava por saber que teria que conviver consigo mesmo por todos os dias de sua vida.

"Não faça isso."

Ele voltou levemente a cabeça ao ouvir a voz de Meiling abafada pela chuva, sem no entanto olhá-la de frente.

"Isso o quê?"

"Não me exclua."

Ele inspirou profundamente, a chuva fria fustigando a carne quente de seu corpo. Devia voltar e aconchegar Meiling. Essa seria a atitude digna e honrada. Mas neste momento não conseguia deixar a honra dirigi-lo. Sentia um vazio em seu íntimo como se um inverno longo e rigoroso tivesse se instalado e ele não conseguisse visualizar a chegada da primavera.

"Eu preciso ficar sozinho....para pensar."

Não havia qualquer inflexão em sua voz. Sem dor, amargura, frieza, desespero ou felicidade, os sentimentos perfeitamente mascarados no tom impessoal e cansado.

Meiling o viu afastar-se enquanto lágrimas silenciosas rolavam por sua face, misturando-se às gotas frias da chuva que lambiam sua pele, mais uma vez traída pelo próprio coração.

Shaoran banhou-se e vestiu-se como um completo autônomo, a cabeça girando como a roda de um moinho, movimentando as águas que afastariam dele a felicidade. Ainda tentava compreender onde caíra. Jamais duvidara de seu amor por Sakura, a simples menção do nome da namorada sempre fizera seu coração sorrir. Então por que sentira-se atraído por Meiling? Não fazia sentido.

Como em um turbilhão contínuo, as imagens dos anos que sucederam sua saída de Tomoeda vieram à sua mente. Meiling estava sempre lá, assim como Sakura. Imagens desconexas, mas que diziam tanto sobre ele. E por que não conseguia entender a mensagem que seu inconsciente tentava mostrar-lhe? Ele sabia que havia algo, alguma coisa em especial que mudara tudo, mas por algum motivo estava deixando escapar.

Balançou a cabeça irritado. Isso não estava servindo para nada, a não ser aumentar o seu complexo de culpa. Chegou a pensar que teria sido melhor se não tivesse sentido tanto prazer com Meiling, mas era tolice, como todo o resto que cruzava sua mente agora.

Com Sakura fora tão especial, a descoberta de um novo mundo para ambos, calmo e florido, mas profundamente intenso. A natural timidez dos dois, as barreiras quebradas pouco a pouco, a intimidade crescendo juntamente com o amor e a confiança.

Já com Meiling sentira-se como na boca de um vulcão pronto a explodir. Os poucos momentos de descontração eram o olho do furacão, preparando-o para a próxima investida da tempestade. Prazer, eletricidade e desejo incontrolável.

Mais uma vez levou as mãos às têmporas, tentando aliviar uma dor persistente, que, ele sabia, não o deixaria, pois nascia de sua alma e a menos que conseguisse compreender, o rasgaria por inteiro até consumi-lo.

Recordou-se de uma música antiga "Let’s make a night to remember". Sem dúvida essa noite seria lembrada, só não estava certo ainda de como seria essa lembrança.

Ainda sem conseguir organizar seus pensamentos, Shaoran caminhou até a janela e a abriu, permitindo que o frio inundasse o quarto e ele conseguisse observar a chuva que continuava a cair. Pensou em Meiling que deixara no jardim e sentiu um aperto no coração. Mas não se sentia capaz de falar com ela agora, não saberia o que dizer.

Apagou as luzes e sentou no meio do quarto, na clássica posição de lótus. Por hora tudo o que queria era afastar-se, refugiar-se no Vazio e ali buscar a paz para o seu espírito e a resposta para o seu dilema.

Inspirou e expirou profundamente algumas vezes, liberando a mente de qualquer sensação, obrigando seu inconsciente a florescer e passear por seu próprio corpo, anulando o consciente que encontrava-se esgotado. As imagens sucessivas continuavam a atormentá-lo e ele abriu os olhos para ver a chuva. Tão calma e agressiva simultaneamente, assim como seus sentimentos.

Afastou sua mente dessa visão. Não era a chuva que buscava, tampouco o correr enlouquecedor do sangue em seu corpo, ou a tensão acumulada em seus músculos. Não buscava o amor, o desejo, o carinho ou o desprezo. Queria o Vazio que lhe traria lucidez e clareza.

Assim se afastou ainda mais do que lhe cercava, a mente relaxando pouco a pouco, encontrando o seu próprio lugar de descanso para só depois resolver seu problema.

Quando os primeiros raios de sol ameaçaram aparecer no horizonte, ele acreditou ter alcançado seu objetivo. Lentamente abandonou o Vazio no qual se abrigara nas últimas horas e encarou o dia que se iniciava.

Colou-se de pé, agora certo de que a atitude tomar. Mas a certeza não diminuía o impacto e dor que sentiria ao fazer o que precisava ser feito.

Dirigiu-se ao quarto onde a prima costumava ficar quando dormia em sua casa e a encontrou sentada, olhando o nascer do sol. Os olhos estavam inchados e vermelhos e a pele extremamente pálida. Vestia um pijama leve, cor clara e os cabelos longos estavam presos em uma única trança. Era incrível como podia parecer tão bonita mesmo após passar uma noite em claro. E era óbvio que chorara, muito, mas nem isto estragara a perfeição do rosto de traços decididos.

"Meiling?"

Ele a chamara da porta, incerto se deveria entrar ou não. Parecia ridículo, após terem dividido o que tinham de mais íntimo, agora tinha receio de adentrar no quarto da prima, coisa que jamais tivera.

Apesar dele tê-la chamado em um tom bastante claro, a garota não se virou, continuando a fitar o brilho cada vez maior do astro.

"Meiling, precisamos conversar."

Nada, nem uma palavra, mesmo ele tendo certeza que ela o ouvira. Por fim entrou no quarto e se aproximou. Podia sentir o corpo retesado da prima e a postura altiva. Gostaria de saber por onde começar, mas a verdade é que palavra alguma poderia apagar o que fizera, ou reescrever sua história.
 
 

A cidade despontou dentre as nuvens, minúscula e repleta de magia, tão diferente da agitação frenética que a dominava quando vista em terra.

A viagem fora tranqüila e o tempo perfeito auxiliou no pouso do avião. Shaoran decidira parar em Tokyo antes de se dirigir à Tomoeda. Precisava dos momentos que passaria sozinho com o Japão, permitindo que todas as experiências vivenciadas neste país entranhassem em seu espírito.

Aspirou o ar da capital japonesa, seu cérebro automaticamente separando os diversos cheiros e catalogando-os, num exercício que acostumara a praticar há muito tempo como forma de relaxamento.

Observou os passageiros dirigindo-se ao portão de desembarque e sorriu. Não estava realmente com pressa. Alegrava-o estar de volta e queria aproveitar cada minuto, deliciar-se com cada paisagem, cada gesto, cada manifestação do espírito japonês.

Por fim chegou a sua vez. Pegou a bagagem e dirigiu-se ao portão de desembarque. Não tinha planos imediatos, a conversa com Sakura seria longa e decisiva, por isso deixou-se levar pelo momento, imerso em recordações felizes, proibindo a si mesmo de tentar reanalisar o drama que vivia.

Ao cruzar o portão, sentiu o coração congelar, os olhos arregalados em espanto. Recostada em um dos bancos de espera, estava Sakura. Linda em um conjunto cinza claro, os olhos muito verdes e expressivos. Os cabelos estavam novamente curtos, o que não diminuía em nada sua beleza.

Assim que o viu ela sorriu. Ele continuava em choque. Como ela sabia que ele viria? Ele não avisara ninguém.

A garota se aproximou, o sorriso ainda nos lábios.

"Eu senti a sua falta."

"Eu...", pôde sentir as faces avermelhando-se, as palavras fugindo de sua mente. "Eu também."

"Sentiu sua falta?"

Ele sorriu diante do comentário bem humorado. "Não, senti a sua."

O rosto de Sakura se iluminou e ela abraçou Shaoran com carinho. Fazia meses que não se viam, e não importava o motivo, era maravilhoso senti-lo junto dela, os braços envolvendo-a, o coração pulsando sob sua cabeça pousada no peito do namorado.

Ele afastou uma mecha do cabelo de Sakura, pensando em como todos os seus planos caíram por terra tão rápido. Não esperava encontrá-la no aeroporto, e agora não sabia como agir. Olhou nos olhos da namorada procurando em vão por palavras que pudessem expressar o que sentia.

"O que houve, Shaoran?"

"O que a faz pensar que houve algo?"

"Você não viria ao Japão sem avisar se não tivesse acontecido alguma coisa."

Ele pensou por um momento antes de falar, e quando o fez, sua resposta foi outra pergunta.

"Como sabia que eu estava chegando? Pensei que o futuro fosse uma cortina que você havia decidido manter cerrada."

Sakura afastou-se um pouco e fitou o namorado. O semblante agora já não mostrava mais a alegria de revê-lo, mas uma preocupação sincera.

"Eu não estava vasculhando o futuro, Shaoran. Eu decidi não me aventurar no avanço temporal para não me sentir tentada a interferir no destino das pessoas, e minha determinação continua de pé. Mas desta vez foi diferente. Eu apenas...senti que você se aproximava. Não sei explicar, mas soube exatamente o momento que você chegou. E eu...não sei, mas...há alguma coisa errada, eu sinto."

Shaoran assentiu, entendendo o que se passava com Sakura. Apesar da namorada ter se recusado a conhecer o futuro, aquilo que lhe dizia respeito a rondava, de uma forma ou de outra. A ligação que existia entre os dois era bastante forte e era até natural que o sentisse chegando. No entanto, a certeza que ela ostentava de que algo errado se passava com ele o deixava sem muitas alternativas. Sabia que aquela sensação não a abandonaria enquanto não conversassem seriamente. Mas ele gostaria de poder postergar o momento. Não o faria, é claro, mas tudo em seu ser gritava pedindo que adiasse esta conversa.

"Sakura..."

Os olhos dela o fitaram em expectativa.

"Eu...nós precisamos conversar."

"Sim...", respondeu incerta, mas seu coração quase parou em seu peito. Nos últimos dias vinha sentindo uma profunda angústia toda vez que pensava no namorado, mas ele sempre se mostrava o mesmo quando conversavam pelo telefone. Tentara abandonar os pensamentos ruins e vinha alcançando êxito. Até esta manhã.

Como um choque percorrendo seu corpo, a convicção de que Shaoran havia deixado a China para vir até ela a invadiu. Nem mesmo tentara negar o absurdo que era este pensamento. Ela já tinha um domínio quase completo de seus próprios poderes, e sabia reconhecer o que cada pequena mudança ao seu derredor significava. Shaoran estava vindo, e tinha algo muito sério para dizer.

Ela não tentara descobrir o que poderia ser tão importante para ele abandonar tudo e vir até ela de repente. Apenas fizera o que julgara correto: fora até o aeroporto e o aguardara. Mas agora que se encontrava face a face com o namorado, a questão tornou-se urgente e enquanto não soubesse o que atormentava Shaoran, não conseguiria descansar.

O casal saiu em silêncio do aeroporto, as mãos unidas, o espírito agitado, e ambos os pensamentos voltados a um único ponto: o motivo da visita repentina de Shaoran.

Caminharam por algum tempo imersos em seus próprios pensamentos, uma nuvem pesada sobrecarregando seus corações . Sakura parou, não agüentando mais a incerteza que os rondava. Olhou nos olhos do rapaz e o que viu a encheu de uma angústia ainda maior. Aquele olhos refletiam a dor, angústia e vergonha que pesavam sobre a alma de Shaoran.

"Shaoran..."

A voz, repleta de preocupação de Sakura, fez com que o rapaz desejasse desaparecer. Os olhos dela esquadrinhavam os seus, fazendo-o baixá-los envergonhado. Era como se Sakura pudesse desnudar sua alma, e a inocência que via no olhar da garota, apenas o lembrava de sua própria perfídia.

"O que está acontecendo?"

"Sakura, eu..."

Ele calou-se mais uma vez. Como falar? Como dizer a uma pessoa doce e gentil como Sakura, a traição que lhe fizera? Como rasgar sua alma e derramá-la diante da pessoa que só lhe trouxera felicidade, sabendo que suas palavras a devastariam muito mais do que uma estocada de sua espada?

"Eu..."

Ela o olhou com ternura. Falar dos próprios sentimentos nunca fora algo fácil para Shaoran. E ela tinha certeza que o problema que ele carregava como um fardo pesado, que turvava o coração normalmente tranqüilo do rapaz, e era algo sobre o relacionamento dos dois.

Sakura ainda podia lembrar-se perfeitamente de como fora difícil para ele dizer que a amava. Os rodeios, as oportunidades perdidas...e ela também não facilitara para ele. Mas a verdade é que Sakura era terrivelmente distraída no que dizia respeito aos sentimentos dos outros para com ela, e se agora era capaz de perceber a angústia do namorado, era porque o conhecia há muito tempo. E, confessava, porque o domínio da magia abrira seus olhos para muitas coisas.

Pôde perceber os olhos dele se fechando, em busca de coragem. Gostaria de falar algo que facilitasse para Shaoran abrir seu coração, mas decidiu permanecer em silêncio. Se o interrompesse agora, talvez ele não continuasse, por isso preferiu segurar a própria ansiedade e dar tempo para o rapaz encontrar forças em si mesmo e expor sua aflição.

"Sakura...você sabe o quanto é importante para mim?"

"Sim, eu sei", respondeu com um sorriso.

"E sabe também..." ele estava vacilante, ainda com medo de falar o que realmente o preocupava. "..que eu jamais iria querer magoá-la, ou fazê-la sofrer, não é?"

"Sim, Shaoran, eu sei exatamente como você se sente."

"Não, Sakura, você não tem como saber."

"O que quer dizer com isso?" Uma interrogação desconfiada passou pelo rosto da jovem.

Ele respirou fundo mais uma vez, criando coragem para falar. Ela merecia a verdade...toda a verdade.

"Não foi fácil para mim assumir meu sentimentos por você. Foram meses de negação, enquanto minha alma ardia ao simples brilho no seu olhar. Até que não tive mais como fugir de uma realidade que estava estampada diante dos meus olhos, e só eu não conseguia vê-la: eu a amava. E mesmo assim, mesmo conhecendo o sentimento que eu abrigava em meu peito, eu demorei a declará-lo."

Ele sorriu, melancólico, antes de continuar.

"Acho que só o fiz porque estava partindo. Sabe, neste ponto eu sou extremamente covarde. Não há medo maior que o de expor o que se passa dentro de nós."

Sakura olhava-o com atenção, tentando captar onde exatamente ele estaria querendo chegar.

"Depois...depois do que aconteceu com a Carta, do medo insano de não mais sentir por você todo o amor que transbordava em mim, eu tive a certeza de que era você a mulher que eu estava destinado a amar, e lutaria por este sentimento pela eternidade se fosse preciso."

Shaoran ouvia as própria palavras, sabendo a verdade contida em cada uma delas. Mas mesmo assim...

"O que não imaginava, Sakura, é que a distância acabaria por nos atingir."

Ele observou a reação de Sakura às suas palavras. A namorada empalidecera e o corpo retesara. Ah...sim, fora um choque para ela. Mesmo que a verdade estivesse estampada diante deles todo o tempo, nenhum dos dois jamais quisera admiti-la.

"Eu jamais deixei de amá-la, Sakrua, mas...mas..."

Ela pôde perceber as pequenas lágrimas que brotavam dos olhos de Shaoran, rolando por sua face assim como rolavam em seu coração. Tudo era tão claro agora. Como eles puderam não ter visto isto antes?

"Enquanto estivemos longe um do outro, eu..eu..."

"Você se apaixonou por outra pessoa, Shaoran?"

Os olhos dele abriram-se em espanto.

"Sim...eu imaginava", disse ela com um sorriso melancólico.

"Mas...o que a fez pensar que...", perguntou ele, confuso.

Sakura virou as costas para ele, tentando controlar o tremor na própria voz, dominar as emoções que revolviam furiosamente em seu íntimo.

"Eu não sei como, eu apenas...soube."

Ele sentiu uma pontada em seu coração. A verdade é que essa seria uma ferida sempre aberta. Jamais deixaria de amar Sakura, mas todo o seu ser gritava por Meiling. Mas a dor impregnada nas palavras da namorada o atormentava. Voltaria a ver o sorriso de Sakura? Voltaria a receber o olhar carinhoso da garota a quem cedera a alma, apenas para depois tomá-la de volta? A idéia de uma vida sem a presença de Sakura o aterrorizou.

"Sakura, eu...não queria...nunca quis. Eu nunca menti à você. Todo o amor que eu sentia, continua intocado, eu só...quando eu notei, outra pessoa já havia penetrado em meu ser e eu não consegui lutar contra."

Ele fez uma pequena pausa e tocou nos ombros da namorada, fazendo-a voltar-se para ele. Enxergou a dor, a tristeza e o brilho de fúria em seus olhos.

"Quem é ela, Shaoran?"

"Isso realmente importa?"

"Sim, importa."

Ele hesitou um instante, dizendo por fim o nome de Meiling. Sakura abriu os olhos em espanto.

"Meiling? Eu não...nunca pensei...eu achava que ela..."

"Eu jamais pensei em me apaixonar por Meiling. Tampouco ela tentava me conquistar, mesmo nunca tendo esquecido o que sentia por mim. Acho que... ela a considera demais, Sakura. A verdade é que Meiling a ama como a uma irmã, e jamais faria algo deliberadamente para magoá-la."

"Eu sei disso, Shaoran, e talvez por isso é que doa tanto."

Não havia raiva na voz dela, e mesmo os olhos haviam substituído a ira por compreensão e aceitação.

"Foi algo inevitável. Acho que desde o início fui eu quem me coloquei no meio de vocês."

"Não." Ele pegou as mãos de Sakura entre as dele. "Você foi um sopro de alegria em nossas vidas, Sakura. Antes de conhecê-la eu não sabia o que era a verdadeira amizade e o significado do companheirismo. Eu era um rapaz arrogante e egoísta que só enxergava o meu objetivo e que passaria por cima de quem fosse necessário para alcançá-lo. Você me ensinou a maior de todas as lições: a amar. E mesmo que passem mil anos, eu jamais irei esquecê-la, Sakura."

Não mais conseguindo segurar as lágrimas, a garota se permitiu chorar, esvaziando seu coração de todo o sofrimento e angústia que a corroíam. Em um impulso abraçou Shaoran, escondendo o rosto nos ombros largos do rapaz.

Ele sentiu o corpo de Sakura estremecendo nos seus braços, as lágrimas molhando sua camisa. O que fariam agora?

Acariciou o cabelo da garota em busca de conforto para ambos. Como fora se permitir chegar a esta situação?

Permaneceram abraçados, no mais completo silêncio, por um longo tempo. Os únicos sons eram dos soluços abafados de Sakura. Então a garota afastou-se delicadamente dos braços de Shaoran e, colocando-se na ponta dos pés, depositou um beijo suave sobre os lábios dele.

"Eu sempre o amarei, Shaoran. Mas você fez a coisa certa. A sua felicidade não está ao meu lado. Você e Meiling nasceram para estarem juntos. Ela o entende, o aceita e morreria por você se assim você quisesse."

"Sakura..."

Ela sorriu delicadamente.

"O que tivemos foi especial e eu jamais esquecerei. Nenhum de nós esquecerá. O amor é algo que não se perde, e o nosso estará sempre vivo em nossos corações e nossas lembranças. Mas nossa separação era inevitável."

Ele abaixou a cabeça, consciente de que fora ele quem provocara tudo isso.

"Não, Shaoran, você não é culpado. A vida queria você e Meiling juntos. Eu o conheço, sei que não faria nada que me magoasse. Mas esta é a sua felicidade e não deve se culpar por estar correndo em busca dela."

"Mas você..."

"Um dia eu encontrei você, e você encantou minha vida." Ela sorriu com alegria, pela primeira vez. "Assim como você encontrou Meiling, eu também acharei alguém especial, eu tenho certeza disso."
 
 

Shaoran deslizou levemente a porta da biblioteca, encontrando Meiling concentrada nos estudos, os fones de ouvido não impedindo totalmente os sons da melodia lenta que ela ouvia, de espalhar-se pelo ambiente. Os cabelos negros, presos em uma longa trança, caíam graciosos sobre a mesa repleta de livros.

Ele a observou por alguns instantes, sem se fazer anunciar. Então, com passos macios se aproximou da prima, ainda alheia à presença de Shaoran. Tocou com delicadeza o ombro da garota e ela se voltou com um salto, assustada.

"Shaoran!"

"Desculpe, não queria assustá-la", respondeu sério.

"Não, imagina, eu é que estava no mundo da lua." Meiling desligou a música, retirou os fones e olhou séria nos olhos do rapaz, uma seriedade que ele não estava acostumado a ver naqueles olhos castanhos. Raiva, explosões de sentimentos, alegria, medo...mas não seriedade. "Pensei que você tivesse ido ver Sakura."

"Eu fui."

Ele queria dizer mais, abrir realmente seu coração, mas não conseguia. Mais uma vez se viu prisioneiro de sua própria introspecção.

"Mas..."

"O que está estudando?", cortou ele. Sabia o que ela perguntaria. Meiling iria querer saber qual o motivo que o levara a ir até o Japão e voltar tão logo tenha chegado lá. A verdade é que ele esperara passar mais tempo no outro país, mas as coisas não saíram exatamente como ele planejara, apesar de que o resultado o agradou mais do que poderia supor.

"O de sempre." Os olhos continuavam sérios, muito diretos olhando-o com uma interrogação estampada na face. "Eu sempre me pergunto qual a necessidade de tanto estudo. Eu me contentaria com algo bem mais simples."

"O que quer dizer?"

Ela suspirou e colocou-se de pé, olhando de frente, o rosto muito próximo ao dele.

"Você havia me dito que estava confuso, não conseguia entender o que realmente estava sentindo. Então foi para o Japão sem me dizer nada e falou com Sakura. Devo entender que encontrou o que procurava?"

Shaoran sentiu o corpo gelar diante da pergunta direta da prima.

"Meiling, eu..."

Os olhos dela baixaram ao ouvir o tom da voz de Shaoran. Ele pôde enxergar a dor naqueles olhos, o leve tremor no corpo pequeno e delicado, e sentiu o ar esvaindo de seu corpo. Por que não podia dizer simplesmente o que sentia?

"Eu entendo," ela disse, dando as costas para ele e começando a caminhar em direção à porta. "Você sempre irá amá-la, não é?" Suspirou, resignada, tão diferente de seu comportamento usual. "Eu não sei se me alegro por tê-lo sentido pelo menos uma vez, ou se me odeio por ter agora a lembrança de como é tê-lo comigo e saber que é algo que nunca mais voltarei a provar."

"Meiling, espere." Ele a alcançou e segurou o pulso delicado, fazendo-a voltar-se para ele. "Eu preciso dizer uma coisa antes que você saia."

"Não acho que ainda haja alguma coisa a ser dita, Shaoran."

"Sim, há, Meiling."

Ele fez uma longa pausa, os olhos fixos nos dela, ambos carregando emoções há muito escondidas e que enfim começavam a aflorar à superfície.

"Eu...eu não havia me dado conta do que sentia até poucos dias atrás."

Ele fez mais uma pausa e ela aguardou em silêncio o que estava por vir.

"Você está certa quando diz que eu jamais deixarei de amar Sakura, mas...o que eu sinto por você, Meiling, é..."

"Desejo, Shaoran. Você ama Sakura, mas me deseja. É isso, não é?" Ela riu, amarga. "No final, a errada fui eu. Eu sempre soube do que você sentia por ela, não deveria ter permitido que fôssemos tão longe. Mas eu o queria tanto, por tanto tempo, que simplesmente fechei a minha mente a qualquer outra hipótese além da que meus olhos mostravam. Você estava diante de mim e me queria, mesmo que eu não tivesse feito nada para isso. Eu queria acreditar que alguma coisa havia mudado, que algo havia nascido em seu coração. Mas não, fui eu o tempo todo. Eu queria enxergar o seu amor, e no entanto o que eu via era o reflexo dos meus sentimentos. E eu quase...quase...estraguei tudo entre você e Sakura."

Ela falava em uma seqüência, não permitindo que ele a interrompesse.

"Desculpe, Shaoran. Eu não quis, em momento algum, dificultar a sua relação com a Sakura. Eu amo a Sakura e não quero vê-la triste. Eu...eu..."

Lágrimas escorriam abundantemente pelo rosto delicado de Meiling, e Shaoran tocou suavemente a face molhada, enxugando as lágrimas quentes. Então, sem que ela esperasse, aproximou seu rosto e a beijou com ternura, deixando-a sentir toda a sorte de emoções que existiam dentro dele.

"Meiling, você não fez nada de errado. Meu amor por Sakura, assim como o seu por ela, sempre existirá. Sakura é uma pessoa especial demais para ser esquecida ou abandonada, mas a mulher que eu quero ao meu lado, com quem desejo dividir minha vida, meu coração, minha alegria, é você, hoje e sempre."

Os olhos da garota abriram-se em espanto, os lábios parcialmente abertos, sem que nenhuma palavra saísse por entre eles.

Ele sorriu e acariciou a face angelical, retirando um fio rebelde que escapava da trança.

"Eu posso não ter sido a melhor pessoa do mundo nestes últimos dias, mas...eu realmente a amo, Meiling, de todo meu coração. Eu sei que agi errado, mas eu precisava resolver minha situação com Sakura primeiro. Não seria justo com ela e nem conosco se eu tivesse agido diferente."

"Shaoran, o que você está me dizendo é que..."

"Sakura e eu terminamos."

" E ela? Como ela reagiu?"

Uma estranha melancolia feriu a face de Shaoran, então ele sorriu mais uma vez.

"Como apenas ela poderia reagir. Como um anjo inocente que nos abençoou e amou ainda mais."

Meiling sorriu, pensando na amiga. Sakura sempre seria Sakura, uma menina adorável que abdicaria do que fosse preciso desde que pudesse levar à alguém a completa felicidade.

Sentiu os braços de Shaoran envolvendo-a, e recostou a cabeça no peito do rapaz. Ainda era difícil acreditar que ele estava ali, com ela, dizendo que a amava depois de tantos anos.

Shaoran apoiou o queixo na cabeça de Meiling, aconchegando-a mais em seus braços. Nem em seus mais loucos sonhos teria imaginado que encontraria a felicidade ao lado da garota com quem crescera e que o atormentara com sua paixão infantil. Mas agora não conseguia imaginar lugar melhor para estar do que nos braços daquela que o amara por toda a vida e que finalmente o fizera compreender que sempre tivera tudo o que quisera bem perto, mas que fora incapaz de enxergar por tanto tempo, que quase a perdera.

Pensou em Sakura e no último abraço que lhe dera antes que entrasse no avião que o traria de volta à Hong Kong, e sorriu. Sakura seria sempre Sakura, a garota que o ensinara a amar, a viver, e a encontrar dentro de si o verdadeiro Shaoran Li.

FIM.

29/01/01

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