Meu Destino é Pecar

Astasia
 
 

E eis que a esfinge disse então:

"Decifra-me ou devoro-te."
 
 

Prólogo

Nada acontece. Nem mesmo há a mais leve brisa que sacuda as cortinas desse quarto. Tudo tem cheiro de álcool e parece limpo demais. Nunca me acostumo com tanto silêncio, tanta limpeza, tanta perfeição, como se alguém aqui fosse perfeito ou sequer normal a este ponto... Pensando bem, se eu estivesse nessa cama ao invés da garota, eu também pensaria em me matar. Nada acontece, afinal.

Estou sentado nessa cadeira há horas e não posso sair daqui ou até respirar muito fundo, qualquer coisa que eu faça de errado vai ser o carimbo da minha nova carta de demissão. O trabalho não é difícil, só não posso dormir, e não deixar que ela tente cortar os pulsos de novo. Facílimo. Escutei uma conversa de que no último surto essa garota magra e frágil - ela tem rosto de anjo - precisou de uns cinco enfermeiros para imobilizá-la. Hmmm... Nada acontece. Até se ela espirrasse valeria mais a pena estar aqui olhando para uma jovem que alterna momentos de violência e catatonismo total. Infelizmente agora ela está sedada. Isso vai lhe fazer mal, e eu nem lhe dou a metade do que o médico mandou...

Qual é o nome dela?... Ah, esqueci a ficha na sala de reunião... Que sono. Nada acontece. A tarde está clara, ensolarada, e eu aqui. Se eu pudesse fazer algo de bom por esta moça eu faria: a levaria para o pátio, ver gente e ver que o mundo não é um quarto que cheira a álcool.

Estou a ponto de dormir. Ainda não é a hora das visitas. Talvez eu durma...

Ninguém pode me ver daqui, mesmo que entre no quarto, estou no canto ao lado da porta... Se pelo menos ela não estivesse dopada, eu falaria com ela. Talvez se sinta só, com medo de alguma coisa, por isso quer morrer. Talvez tenha medo de viver... Já vi isso antes.

Meus olhos estão ardendo com a luz forte que entra pela janela aberta. Tudo é tão branco que faz ser insuportável de se olhar a estas horas...

Estas são as últimas horas do meu plantão, estou acordado há mais de 30 horas...

Nada acontece, afinal...

* * * * *

Ou pelo menos assim imagino. A porta ao meu lado range, baixo, e não quero olhar para saber quem é. Não é um servente, nem um médico, ou uma visita... Não sei quem é. Entra devagar, um passo de cada vez, evidentemente sem querer fazer barulho, sem olhar para o lado em que estou. Parece procurar por alguém, é um rapaz, nada mais. Ele pára perto da cama, olhando demoradamente, com olhos muito abertos, para a moça de quem cuido hoje. Estou quase adormecendo... Espero que não seja um tipo de maníaco... Ele não deve ser amigo dela... Não pelo modo que olha, quando contorna a cama. Agora vejo seu rosto claramente, apesar do branco ofuscante das paredes e do meu sono.

Parece estranho... Deve ser a luz. Ele está olhando para a paciente com se nunca houvesse visto alguém assim, olha para seu rosto voltado para o lado, os olhos dela estão abertos e vidrados, ela não dorme realmente há dias... Se não estivesse habituado a estar cercado de loucos nessa ala psiquiátrica, eu também me espantaria. Quem será esse rapaz? Ele não tira o gorro, talvez seja encrenca na certa...

Não está sujo, tampouco mal vestido. Mas me cheira a encrenca. Meu sono passa imediatamente quando ele estende uma mão longa e branca para tentar tocar as bandagens que estão nos pulsos da garota.

Nunca me enganei. Ele é encrenca, na certa.

Nem sequer chega perto de encostar nela, como se temesse fazer isso. Morde os lábios com força, quando o solta, está vermelho. Parece nervoso e faz menção novamente, de toca-la. Mas que droga...

"Deseja alguma coisa?" – Pergunto, não sei se alto demais, ou se agressivo, mas ele parece se assustar ao me ver...

Olha para o rumo onde estou. Não consigo olhar para ele, nem ver seu rosto ou expressão, está de costas para a direção do sol. É como se ele fosse um, olhando como estou, sonolento e exausto como estou. Me levanto para ir até ele, mas não posso fazer nada bruscamente. Não sei quem é, ou o que pretende. E se for mais um louco?... Tanto faz, mas sei que é encrenca.

"Você é amigo dela?"

Ele não parece se sentir ameaçado por me ver em pé, está olhando fixamente, agora, para ela. Ainda como se nunca houvesse visto... Alguém que tentou se matar. Ou talvez já tenha visto, por isso seu olhar.

"... Ela está morta?..."

A pergunta me pega de surpresa. Estou tão cansado que não sinto meus passos sobre o chão, mas sinto estranhamente o frio do piso atravessar meus sapatos. Esse rapaz...

"Não. Você veio visitá-la?" – Arrisco, tentando não demonstrar minha perplexidade ao ver que seu rosto é completamente estranho e de expressão que nunca vi. – "Ainda não é hora de visitas."

"Não me importo." – Sua voz não se eleva, não se modifica em tom algum.

"Afinal, você quer alguma coisa? Você é algum parente dela?" – Ele volta seu olhar e sua atenção para mim. Totalmente. Agora sim. Ele é mais estranho e parece mais novo ainda olhando atentamente. Deve ter uns dezessete ou dezoito, quase da minha altura. Muito tamanho e quem sabe nenhum juízo, estando aqui, nesta hora, e eu com este humor tão bom. Tem olhos rasgados e de uma cor estranha, claro demais para ser castanho e amarelado demais para ser verde. Parece ter fugido do colégio. Parece ter fugido da morte em pessoa e ainda está ofegante.

"Não sou nada para ela." – Sua resposta é tão direta e seca que não duvido que esteja mentindo. Esse estranho só diz coisas que não espero ouvir.

"Então o que você quer aqui?" – Vou enxota-lo daqui de qualquer jeito, mas a curiosidade me faz perguntar. Pelo menos aconteceu alguma coisa...

Ele nem mesmo pisca ao me escutar. Volta a olhar para a garota e passa a mão sobre o cabelo dela, sem tocar. O que ele pretende?...

"O que há com ela?" – Pergunta, sua voz um pouco forte demais para a fragilidade de seu rosto, ele tem voz de adulto, mas é claro que não é. De debaixo do gorro, escapam para sobre sua nuca, para sobre a gola da camisa e do casaco, algumas mechas de cabelo claro e encaracolado, que não se acomodam ali.

"Você não vê que ela acabou de tentar se matar?"

Pela reação que tem, a primeira impressão que tive foi certeira: ele nunca viu alguém que tentara se matar antes. Eu já vi muitas coisas, mas desta natureza, é a primeira vez, tento não parecer tão assustado com isso. Age como se sequer em algum momento de sua vida soubesse que as pessoas fazem esse tipo de bobagem. Parece fazer menção de me desmentir, mas somente recua, olhando para mim e para ela, assustado e com os olhos ligeiramente injetados, como se estivesse quase chorando, como se estivesse vendo alguma coisa realmente assustadora... Já vi coisas tão piores que não entendo sua confusão, e entendo menos ainda ele tentar ir embora, tanto que seguro seus ombros talvez com força demais, e ele me empurra, tentando me fazer sair da frente, mas eu não posso simplesmente deixar que qualquer um entre aqui a qualquer hora, faça o que quiser e saia sem dar explicações!... Raios, é o meu trabalho, eu posso perder o emprego neste hospital até se eu olhar de mau jeito para os lados!...

"Espere..."

Ele torna a tentar me tira de seu caminho, e ainda o segurando pelos braços. Conto com a sorte e perco, ele não se intimida comigo, e tem muito mais força do que julguei.

"Onde pensa que vai?" – Estou furioso, porque ele quase consegue escapar pela porta aberta, e ver que não há ninguém para ajudar, nesta maldita ala. Só consigo segura-lo quando já estamos no meio do corredor, longe da moça.– "O que você quer aqui??!"- Aperto seu pulso com tanta força que por um instante temo quebrá-lo, mas ele não solta um único ruído de dor ou muito menos me olha nos olhos.

Essa moça dopada deve ser importante para ele, ou é mesmo o louco que imaginei. Ou talvez o cansaço esteja me fazendo imaginar demais. Posso perfeitamente estar imaginando que ele se mexe de todas as formas para se livrar de mim. Chamo pela segurança e ninguém me ouve, nem mesmo eu. Por que minha voz não chega ao fim do corredor? A enfermeira chefe está lá, os outros estão lá, daqui posso vê-los. Não posso largar seu pulso, tento segura-lo pelo casaco, mas ele se esquiva de mim, tento segura-lo pelo braço de novo, assim vai ser mais fácil. Já lutei com pacientes muito maiores e mais pesados que ele, mas este rapazinho está ganhando de todos os mais violentos.

Ele cede por um momento e consigo derruba-lo no chão liso e frio de ardósia. Mais uma vez eu aposto e perco. Aposto comigo mesmo que posso segura-lo e controlar esta situação estranha sozinho, mas estou enganado. Mas eu nunca perco. Perco agora e isso me deixa inconformado. Paro um instante, tonto com tanta raiva e força que tive de fazer para mantê-lo quieto, e esse segundo é fatal. Sua mão livre vem na minha direção como uma garra. É uma cena terrível, digna de um pesadelo, que aparece na minha frente, vai me degolar, ele não está armado, mas me parece ser um gesto que pode me matar. Mal tenho tempo de soltá-lo e me esquivar. Fico tão assustado que me sinto atacado por uma fera.

Quando me parece óbvio e estúpido o que sinto, o que vejo... O que sinto... Meu medo foi tão súbito que senti até os cinco riscos de garras em meu pescoço, minha mão procura cortes que não estão lá. Ardem, doem, mas não estão lá. Quando torno a olhar, ele já se ergue, somente a dois passos à frente de mim e corre, pelo corredor, para o rumo oposto ao do balcão da enfermeira. Mas ninguém parece nos notar. Chamo novamente por eles, mas nenhum dos meus colegas parece me escutar, continuam tomando café e conversando. Meu Deus, isso tudo parece com um pesadelo mesmo... Devo estar sonhando, é isso. Estou exausto desse plantão de trinta e seis horas e que nunca acaba...

Corro na mesma direção, contando com a sorte que nunca me abandonou, mas parece disposta a isso justamente hoje, em que todos os tipos de coisas estranhas resolveram acontecer desde quando o rapaz do gorro atravessou a porta.

Sei muito bem que para onde ele está correndo não há saída. Tenho certeza que ele é um louco, aqui está cheio deles. Ele corre sem olhar para trás. Não está preocupado comigo, em fugir de mim. Ele está fugindo da garota. Quando ele cruza o canto, vejo seu rosto, seus olhos daquela cor estranha, vidrados e avermelhados de choro. Está fugindo da garota, mas por que? O que ele quer, afinal? Nunca viu um suicida antes? Nunca viu a morte de perto?

Quando consigo chegar ao mesmo lugar, o que me espera é um corredor vazio e cheirando à álcool. Como todo o resto deste hospital. Ele sumiu como uma assombração. Mas eu quase quebrei seu pulso, do modo que o segurei! Eu quase lhe dei uma surra para que não fugisse antes de me explicar o que queria!... Ele nunca deve ter visto a morte de tão perto, mas aquilo que vi quando ele ergue a mão para mim me mostrou que eu também não.

Eu apostei numa sorte que não estava do meu lado.

* * * * *

Não me lembro de Ter voltado para o quarto da paciente, nem sei quanto tempo perdi tentando acha-lo em cada fresta do fundo daquele corredor sem portas e sem saída. Nem sei se o procurei, ou se em algum momento saí daqui, dessa cadeira tão desconfortável, mas que com o sono que estou, é mais acolhedora do que um abraço de mãe. Abro os olhos me assustando com o rangido baixo e lerdo da porta, e com a luz intensa que entra pela janela, mas não como antes, agora a luz é rendada das copas das árvores do jardim de fora.

Não sei o que se passa pela minha cabeça, mas quero desesperadamente ver o garoto do gorro entrar aqui novamente, para que eu não tenha de engolir o meu orgulho ferido e admitir que o deixei escapar. É a mãe da garota, a vi quando trouxe a filha para a emergência, anteontem, no começo do meu plantão. É alta, elegante, e não esconde no seu sorriso constrangido, que não tem tanto tempo quanto gostaria para cuidar da filha. Duas mulheres vestidas de preto ficam do lado de fora, comentando, lamentando sinceramente pela paciente.

Hora das visitas. Meu plantão se acabou há exatas duas horas atrás. Posso ir para casa... Mas a mulher alta fica olhando para mim, em vez de se dirigir logo à filha. O efeito dos sedativos dela está passando, ela se mexe na cama, esfrega os olhos, com as mãos enfaixadas...

"O que houve com você, meu jovem?"

"Eu cochilei... Foi um pesadelo, só isso."

"Não. Estou falando do seu pescoço." – Ela passa a mão sobre o seu próprio, engolindo em seco, olhando apreensiva ao me ver descobrir meu jaleco respingado de sangue que ainda está fresco.

"Eu... não sei explicar."

Não lhe faço nenhuma gentileza de explicar o que está havendo, por que também é uma surpresa para mim. Não havia ferimento algum. O visitante do gorro não era um pesadelo. E ele havia me ferido, então? Com as mãos nuas?

Corro para o vestiário, rezando para que o chefe dos enfermeiros não me encontre pelo caminho, o que quase sempre acontece quando algo errado acontece e a culpa é minha. Tenho vontade de pedir para ser internado também, quando tiro o jaleco fora e vejo que estou verdadeiramente ferido, são cortes superficiais, mas são recentes, e , no entanto não sinto tanta dor. Há gente mudando de roupa, indo e vindo, mas não me vêem, estou no fundo do vestiário, onde estão os espelhos. A gola da camiseta está manchada também. Esfrego, tentando me limpar, mas é difícil, pela primeira vez a visão do sangue ameaça me deixar desesperado. Estou tremendo, estou muito cansado...

Vejo-me pálido e de olheiras profundas nesse espelho. Estou arruinado. Não há um único traço de cor na minha boca. Meu cabelo está quase todo solto do elástico...

Dentro do meu armário consigo achar algumas bandagens. Ninguém vai notar, se notar, é impossível que eu explique o que houve, espero que a mãe da garota não comente isso com ninguém. Ela me pareceu distinta, quero acreditar que não vai dizer nada. Não tenho tempo de dar explicações a ela, nem a filho da mãe algum. A gola da camisa limpa que visto agora talvez disfarce o branco quase exagerado da gaze em torno do meu pescoço. Até parece que eu fui eu quem tentou suicídio.

Saio andando rápido, sem falar com ninguém, é um alívio chegar à recepção e finalmente ao jardim. Vou Ter até amanhã para dormir bastante, me encher de café sem açúcar e tentar disfarçar as marcas. São exatos cincos riscos paralelos e com a mesma profundidade de corte. Mas ele estava desarmado. Não acredito que fossem suas unhas apenas que me fizessem este estrago...

Espero que não infeccione, vou tentar cuidar disso quando chegar em casa. Um hospital inteiro e não encontrei um único vidro de mercúrio cromo...

Estou ainda na metade do jardim. A ala pediátrica fica deste lado. Se eu pudesse trabalharia aqui. Mas ver crianças sofrerem me...

"Desgraçado!!" - Me escuto dizer, na mesma hora em que duas freiras passam ao meu lado e se benzem ao me escutar.

Quem eu vejo, sentado na mureta de pedra do jardim da ala pediátrica? O maldito visitante com aquele mesmo gorro de antes, não sei o que ele ainda pretende fazer por aqui, mas como há muito tempo não sentia, desta vez estou com vontade de Ter uma "justa causa" na minha próxima carta de demissão. Vou na sua direção já tirando o casaco e me preparando para o que promete ser minha melhor briga dos últimos seis meses. Ele não está me vendo. Desta vez não vai fugir...

Está de cabeça baixa, e de vez em quando passa umas das mãos pelo rosto. Está chorando. Por que diabos está chorando? Quase me matou, poderia Ter feito isso se quisesse. Me ferve o sangue pensar que ele vai fugir de mim depois de quase fazer isso... Estou há alguns passos dele e vou chamá-lo, mas não estamos sozinhos. Crianças passam correndo, ao lado de uma freira, e uma pára para falar com ele. Pelo uniforme que elas vestem, devem ser de algum colégio. Crianças são curiosas, mas esta não parece estar apenas curiosa, tanto que lhe fala como se o conhecesse, ou, o mais estranho, soubesse o que ele faz ali, e eu tenho certeza que eles nunca se viram antes.

Ela está sorrindo para ele e falando. Lhe estende uma das mãos pequenas, com alguma coisa vermelha na palma. Eles são irmãos? Não... A freira a está chamando de novo. Ela sorri e diz alguma coisa que o faz sorrir também. Então, eu o escuto dizer-lhe, enquanto ela se afasta olhando para trás:

"Quando vamos nos ver?"

"Eu não sei! Depende de você..." – A resposta é a mais inesperada. Essa conversa não tem sentido algum, a menina deve Ter uns seis anos, mas quando responde com estas palavras, parece até Ter quatro vezes mais.

Estou ficando maluco. Escondo-me perto das árvores para saber o que ele vai fazer agora. Ainda quero esmurrar esse rostinho de anjo que ele tem, mas também estou curioso demais para fazer isso agora. Não vejo o que a menina lhe entregou, ele coloca cuidadosamente no bolso, e esfrega os olhos, sorrindo e não mais chorando, mas não é suficiente para me convencer de nada. Vale a pena estar curioso. Afinal, esse garoto poderia ter me feito perder o emprego...

* * * * *

Estou seguindo-o bem de perto, e ele não me notou. Vejo-o tomar o elevador, e eu o sigo até mesmo aqui. Nada de estranho e isso me preocupa. Talvez o problema esteja comigo... Voltamos ao quarto da mesma moça de antes, que agora está sentada na beirada da cama, olhando para o vazio, apática como era, quando não estava em surto.

Ele hesita. A mãe dela está se despedindo, está de pé ao lado da cama, ajeitando com capricho seus cachos, são cabelos pretos e muito compridos. Estão entretidos demais para me notar olhando pela fresta da porta. Melhor assim.

O rapaz entra e ela lhe pergunta quem é ele. Ele não responde. Mas ao ouvir sua voz a moça parece estremecer... Não sei, nada disso me parece algo além de encrenca. Sei que nada tenho a ver com o que acontece com a vida pessoal dos pacientes, mas desta vez eu sinto que devo me preocupar, que talvez isso seja da minha conta, sim. A mulher pergunta se ele esteve no colégio junto com a filha dela. Ele não responde com palavras, mas desta vez com um sorriso. Ainda está com os olhos avermelhados e aquele mesmo mal disfarçado ar confuso de antes. Seu sorriso é carregado de mágoa, quase amargo, e ele se senta numa cadeira, trocando um fixo olhar com a moça que nunca vi reagir deste modo a ninguém...

Mete a mão no mesmo bolso de seu casaco e tira alguma coisa de lá.

Estende para ela, e como eu nunca havia tido notícia antes, a paciente sorri. Estica sua mão frágil e enfaixada, com o dorso cheio das marcas arroxeadas do soro e segura. É um sorriso pálido e triste, e seus olhos azuis são embaçados ainda, mas somente com isso, com um doce?... Somente com um doce ele a fez reagir?...

O médico que cuida dela vai querer se matar se souber disso. Mas da minha boca é que ele não há de saber... Estou surpreso com o que vejo, quase assustado, se não fosse demais ter de admitir que mais uma vez eu aposto e perco. Recuo para ir embora. Já vi demais, mais até do que esperava. E escuto mais: a mãe da moça e exclamações de pura alegria.

Eu devia me alegrar, normalmente isso acontece. Mas isso só me deixa mais inquieto.

* * * * *

Resolvo averiguar tudo isso de perto. A hora das visitas não vai durar para sempre. A visita dessa criatura dura menos ainda. Não sei o que aconteceu por lá depois do que vi, não sabia se tinha estômago de ver mais coisas estranhas e inexplicáveis. Já basta o que eu tenho de estranho, ardido e inexplicável no meu pescoço.

Sei que ele vai fazer para sair o mesmo caminho que usou para entrar. Parece estar fingindo essa normalidade o tempo todo, uma tensão, coisas que só vi nos piores casos de loucura, quando os pacientes conseguiam parecer extremamente normais, mas sempre como se... A respiração estivesse em suspenso. Vamos ver se desta vez a sorte está do meu lado. A não ser que aconteça o mesmo absurdo de quando nos encontramos a primeira vez, de ninguém tê-lo visto ou me escutado, ele só vai poder sair pela recepção e pelo jardim. Espero por ele no jardim, longe das vistas do meu chefe e dos curiosos. Quando ele passar por aqui...

Aqui está... Não se passaram quinze minutos e o rapaz do gorro vem, olhando sempre para o chão, nem parece o mesmo que fez uma paciente que era quase um vegetal ter a primeira reação tranqüila, entre todas as que estão registradas na ficha.

Não lhe dou tempo de fugir de mim, nem de gritar, e mesmo que grite, a estas horas ninguém vai escutar. Está anoitecendo, ainda não é hora da troca dos turnos. O jardim está vazio, e o sol é impiedoso, ainda está forte, mas desta vez já faz tudo ficar com aquele amarelo intenso e cor de mostarda, que arde nos meus olhos. Seguro-o com toda a força que consigo, pela nuca, agarrando ao mesmo tempo, a gola do casaco e da camisa. Ele é mais leve que eu, por que eu não consegui detê-lo antes??? Está assustado e tenta se livrar de novo, mas antes de poder fazer qualquer coisa o arrasto para entre as árvores e o jogo contra uma delas, assim talvez ele fique tonto.

"Agora, comporte-se e me diga o que você estava fazendo lá...!"

Ele bate com as costas e acho que com a cabeça também. Parece desorientado no começo. Entre as árvores é escuro e úmido, me sinto estranho aqui... Ele levanta os olhos e não parece muito feliz em me ver. Não responde.

"Quem diabos é você?"

Ele baixa os olhos na mesma hora e tenta se levantar, se segurando no tronco da árvore. Algumas folhas secas estalam debaixo de meus pés, e o barulho parece ser o único, absurdamente alto. Dou-me conta de que de repente, é tudo o que eu escuto. Perto desse garoto tudo é um silêncio terrível e apavorante, para não dizer opressor.

"Por que você finge que não me ouve?" – Sua indiferença é pior do que um tapa na cara. É insuportável. Agarro seu colarinho e quando o sacudo, bato com suas costas no tronco, tentando arrancar uma reação dele, tudo o que faz é fechar os olhos. Tenho vontade de mata-lo. É uma vontade como nenhuma outra. Ele não pede que eu o largue, nem diz nada, tudo o que eu tenho de resposta à minha violência é isso:

"O que você quer de mim?" – Ele pergunta, enquanto continua tentando me afastar de si, suas mãos se segurando firmes nas minhas roupas, tentando me fazer sair de perto dele. Cada vez mais ele me irrita. Nunca o vi em toda a minha vida, mas já posso dizer que eu o odeio. Odeio esses olhos de fera, odeio esse rosto bonito, odeio cada um desses cachos louros que escapam do seu gorro, e principalmente, odeio a sua indiferença quanto a mim. Odeio-o e tenho vontade de faze-lo sofrer para que não tenha de ter somente esse silêncio que me esmaga ao redor de nós. – "Não tenho nada que você possa querer...!"

Eu o solto e ele continua no mesmo lugar, de cabeça baixa, sem olhar. Meu coração bate tão forte, de tanta raiva e cansaço, que parece que vai saltar pela minha boca. O que eu quero dele?

Seguro seu queixo com força e é quase um tapa, é uma violência, que deixa marcas dos meus dedos na sua pele branca. Por um momento, quando ele me encara, com olhos rasos, finalmente mostrando que aquele sorriso que vi no quarto era uma ilusão, minha vontade de fazer dele picadinho desaparece e fica apenas uma coisa que faz com que eu tenha raiva dos meus pensamentos também. Mas lembro de todo o resto, tudo que havia acontecido antes e aponto para meu pescoço enfaixado.

"Que tal começando a explicar o que é isso?"

Nada. Ele volta a ficar calado, olhando com curiosidade para as bandagens. O que há com ele agora? Nunca viu gaze e esparadrapo juntos?...

"Você não queria me largar." - Ele diz simplesmente, como se fosse uma coisa tão evidente que eu devesse me sentir um idiota ao perguntar.

"E por isso você quase me degola?!" – Agarro sua mão e começo a olhar de perto suas unhas. Elas são curtas e lisas, e nem um pouco amoladas. Sua mão está gelada. – "Desgraçado, como você fez aquilo?" – Digo, apontando para seus dedos, largando sua mão e começo a procurar por alguma coisa nos bolsos de seu casaco que justificassem esses ferimentos em mim. – "Por que você fez isso?"

"..." – Ele não levanta os olhos. Fica no mesmo lugar. Depois que nada encontro nos seus bolsos além de um papel com o endereço do hospital, ele diz: - "Eu não achei que fosse ter de fazer isso com você. Mas você não queria me largar."

Agarro seu colarinho de novo e o sacudo, enquanto pergunto o que ele queria, afinal, naquele quarto, justamente com aquela paciente. Ele faz força para se livrar de mim. Talvez me ataque de novo. Mas acho que não... Pergunto mil vezes seguidas como ele fez aquilo. Pergunto quem ele é e o que quer... Tenho subitamente tanto a perguntar que ele não saberia responder.

"Eu só queria vê-la."

"Por que? Você mesmo disse que não era nada para ela!"

"Tire suas mãos de mim..."

"Como você fez aquilo? Ela estava há meses sem dizer nada, sem reagir a quase nada!"

"Me solte!!"

"O que você veio fazer aqui?"

Ele não responde. Paramos por um instante, ofegando, forçando um contra o outro, eu para mantê-lo nas minhas mãos e ele tentando sair delas. Estou perplexo comigo mesmo. Aquele silêncio está subindo ao meu redor como um muro, mas desta vez eu percebo que não vem de fora, não vem dele, vem...

"O que está fazendo?!" – Pergunto, ele finalmente se desespera, reage de repente, seu rosto fica vermelho e transtornado. Desajeitadamente me empurra, mas consigo amassa-lo contra o tronco da árvore.

O barulho das cigarras parece fazer parte do mundo novamente.

O que eu faço? Simplesmente nada.

Seu gorro está quase escapando todo, de tanto que lutamos, e ele está cansado disso tudo tanto quanto eu estou. Seu rosto arredondado ainda está vermelho, e não apenas isso, seus cachos que tanto me irritam caem, em pequenas porções, sobre ele. É um cabelo muito bonito. Por que o está escondendo? Está se escondendo, ou se escondendo de alguém?

Tanto faz. Tenho um desejo cruel e infantil de vê-lo perturbado e sem saber o que fazer. De repente acho que isso é exatamente o que preciso para me sentir vingado, do meu orgulho ferido, pela sua indiferença e por seu silêncio.

Minha mão vai certeira para seu gorro e puxa.

Não sei que tipo de maldade eu poderia ter lhe feito para que ele reaja como reage. Ele tem cabelos louros e escuros, que tem cachos densos e graúdos. Por um momento acho que fui longe demais, mas quando olho pro gorro na minha mão e para ele novamente, não entendo mais nada. Estou cercado de malucos, é pior do que fazer plantão em ala psiquiátrica.

Ele coloca as duas mãos sobre a cabeça e tenta desesperadamente cobrir sua cabeça, como se tivesse uma vergonha insuportável de seu cabelo. Mas não tenta tirar o gorro de mim, pegá-lo de volta. Somente me olha com aquela surpresa magoada, e seus olhos ficam avermelhados de um choro a que ele não se deixa ceder.

Tenho vontade de pedir desculpas, mas vou morder minha língua até o fim do mundo para não ter de fazer isso. Não vou pedir desculpas por nada do que tenha dito ou feito a ele. A qualquer um, mas não a ele.

Ele estremece violentamente, tentando conter as ondas que caem sobre seu rosto, seus ombros, em cachos... Assim, ele parece mesmo um anjo, apesar desses olhos de animal. Abaixa-se devagar, como se perdesse a força, a vontade. Pára sentado aos pés da árvore, evitando meu olhar, somente tentando cobrir o cabelo, e de repente diz, com a voz de adulto que ele tem, carregada de vergonha:

"Por favor, não diga a ninguém...!"

Engulo em seco.

"Dizer o quê?"

Ele soluça. Será que o sacudi demais? Falei muito alto? Será que o machuquei muito quando o joguei de encontro à arvore?... Como saber? Ele não olha para mim! Só fica dizendo a mesma coisa, pedindo que eu não conte, se pelo menos me dissesse o quê... Jogo o gorro em seu colo e ele o ignora. Pergunto se ele está bem e ele não responde. Estou muito, muito cansado disso tudo. Faço outras perguntas, e ele torna a me ignorar. Eu o arranquei por um único instante daquela indiferença, agora, aquele muro está se levantando de novo ao meu redor! Detesto que me ignorem, detesto que ele me ignore, ando na sua frente, me abaixo para olhar bem no seu rosto afogueado e ele continua agindo como se eu não estivesse aqui. Empurro a sola do seu pé com a ponta do meu sapato e ele somente se encolhe. Muito bem... O que eu faço com você? Mato e depois vou embora, ou vou embora e volto mais tarde pra te esfolar vivo? Tanto faz. Não sou nada para esse garoto e saber disso desse modo me deixa louco.

Ele tem reações estranhas, mas não é louco, nem é nenhum maníaco, muito menos faz isso para me provocar, pessoalmente falando. Nunca vi nada igual. Simplesmente não parece conhecer muito além de emoções que eu não entendo, e nem quero entender.

Tapo os ouvidos, porque tudo o que escuto agora é aquele silêncio palpitando em mim, como antes, como no corredor. Isso sim, eu deveria pensar, é fruto do meu cansaço, todavia, não enxergo mais a coisa mais clara, eu o seguro e o levanto do chão, e ele vem, sem resistência, quase tranqüilo, e o ponho de pé na minha frente e levanto minha mão para ele, sabendo com muita satisfação, que o que vou fazer só há de doer nele.

Vou ter muito prazer de deixar uma mancha bem escura nesse rostinho bonito e impassível... Vamos ver até quando você vai continuar me tratando como se eu fosse um nada...!

Vou dar um soco no seu rosto. Quero e acredito que preciso fazer isso. Meu pescoço não pára de doer, não me interessa mais como ele fez isso, mas estou com vontade de me vingar de tudo o que acho que ele me fez nesse instante.

Não vai doer em mim... Somente nele...! Por que ele não tenta escapar? É claro que sabe o que eu vou fazer... Aperta os olhos e espera.

Meu Deus...

O que estou fazendo?

Não vou perder o emprego por sua causa, seu maldito garoto maluco... E nem vou sujar minhas mãos com você... É isso o que você quer. Quase me matou no corredor da enfermaria. Vou bater em você, e quando eu achar que estou ganhando e estiver acreditando que sou o dono da situação, você vai mostrar do que é feito. É muito mais traiçoeiro do que essa cara de anjo quer mostrar. Muito mais inteligente...

Quando já desisto, alguém me empurra para longe dele, me puxa pelo meu cabelo, que está amarrado, perguntando o que estou fazendo. Quando paro, é um sujeito que veio visitar a garota dos pulsos cortados ontem, à mesma hora... Oh, droga!... Reconheço-o pela sua seriedade excessiva para a idade, ele me empurra, mas não me agride. Quando tento falar qualquer coisa, olho para o garoto que quase espanquei e vi que ele sumiu. Minhas palavras se acabam na hora. Fico calado, sem saber o que dizer.

Se ele queria se livrar de mim, conseguiu...

O gorro também não está mais no chão.

Acho que, querendo ou não, agora eu devo ter uma longa conversa com o diretor do hospital...
 
 

CONTINUA


Capítulo 1
Meu Destino é Pecar
Fanfic

Hosted by www.Geocities.ws

1