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Gaibéus - Alves Redol (excerto)

Se não havia onde fainar ou nas horas de comer, os dois sempre encontravam motivo de conversa - diálogo igual, mas novo a cada hora. Sabiam de cor os projectos de há tanto sonhados. Trabalhavam na mira de os realizar - talvez no ano próximo. Tiravam à barriga o escasso que ganhavam, porque só assim poderiam partir.
Aquela idéia avassalara-os, dominando-lhes a vida. Andavam sempre juntos, como se o sonho estivesse dividido pelos dois e só assim pudesse ser repetido.
Devoravam as horas a falar dele, antevendo ambientes que o João da Loja lhes criara quando contava, aos serões, as suas aventuras por outras terras. Aquele homem, de quem se diziam os maiores crimes, tornara-se no alvo dos seus desígnios e na rota do seu futuro. Os dois companheiros punham-se sempre mais perto a escutá-lo; de quando em quando, trocavam olhares entre si, porque o sonho era de ambos e o desejo de abalar dominava-os a todo o momento.
Aqui nunca mais passariam da mesma piolheira. Trabalhar de dia para comer de noite... e mal. Condenados a uma pena, terem porta por onde se via a liberdade e ficarem entre grades à espera da morte.
- Isso é que não!... - concordavam amboss.
- Não queriam fortuna - se viesse, melhoor -, mas granjear trabalho, pão certo e alguma coisa para a velhice; quando os anos pesam, não há patrão que conheça o servo.
Naquela noite, tinham vindo até à praia, trocando vagas palavras, mais pensativos do que pairadores. As quatro paredes lá da terra não as podiam vender, pois as mães precisariam abrigo. Já ia em cinco anos que aquela idéia os tomara: desde então, nunca se desprendera deles.
Agora tornara-se parte integrante do seu corpo - como se aquele rumo lhes fosse marcado no berço por fatalismo. Nunca lhes dera para se prenderam a um rancho e virem à Lezíria fazer uma temporada larga. Os outros voltavam mirradinhos de febres, a caminho da botica ou do bruxo, e aquela marca nunca mais passava.
Eles esgaravatavam por todos os lados e sempre conseguiam fugir a tais contratos. Neste ano tudo correra pior e não podiam ficar de braços cruzados, metendo a mão no saco das economias para tirar em vez de lhe juntarem alguns cobres, mesmo poucos.
Suplício constante, aquela miragem de partir - suplício e esperança das horas amargas.
O rio fora-os atraindo como a estrada da sua evasão. Tinham caminhado para ali, sem o ouvir, mas sentindo-o chamar. Ficavam agora a dois passos da sua carreira, como se em breve fundeasse o barco que os levaria para as terras do João da Loja.
Ali era o cais de embarque e mais outro companheiro esperava também o momento de abalar. Não tinham malas, nem sacos. Mas partiriam com os anseios, e isso bastava aos emigrantes.
As estrelas no céu prometiam-lhes boa viagem.
E interrogavam-se, mudos.
Reviam todo o sonho acalentado durante cinco anos. Imaginavam as cidades e os campos da nova pátria, onde iriam trabalhar - trabalhar em quê?...
Em tudo o que braços humanos pudessem pegar. Não havia melindres na escolha, nem hesitações. Começariam outra vida, mais dura talvez, mas mãe. Sorria-lhes a casa onde à noite voltavam, felizes da jorna, embora quebrados de fadigas. E os carinhos das companheiras, mulheres estranhas que os seduziam, acalentavam-lhes o corpo e davam-lhes ímpetos para lutar. O trabalho não os arrefentava - nunca se tinham furtado a dar o seu esforço.
Contudo, queriam pão certo - queriam ser homens. Tudo se vestia de cores novas para os receber e acarinhar: as cidades e os campos, as casas entre flores e as companheiras.
Vida de trabalho, sim, mas vida de homem.
Falta pouco para embarcar, o navio não tarda. Não lho disseram; eles porém adivinhavam-no, pois o rio agita mansamente as águas para embalar o barco.
O companheiro que espera ainda não deu palavra e parece triste. Talvez pense na mulher e nos filhos. Razão tiveram eles para nunca se comprometerem. Depois, sim, quando voltassem...
Se o outro ceifeiro não estivesse para ali tão alheado, iriam perguntar-lhe quais as razões do seu acabrunhamento. Emprestariam ainda a sua fé àquele companheiro abatido e silencioso.
- Eh, camarada!... - disse um deles.
> O outro não se moveu. Olharam-se e ficaram a ouvir os seus sonhos.
- Camarada!... - gritou mais alto.
O brado encheu a noite. O ceifeiro rebelde continuou estendido na areia; por fim voltou a cabeça, contrariado.
- Vossemecê sabe onde vai ter esta água??
A resposta tardou. Quando veio, a voz soou-lhes frouxa ou dorida.
- Vai por aí abaixo...
Logo se esqueceu de que o tinham interrogado. Os rapazes não vieram ainda jogar ao "primeiro da bela mula" e prefere ficar só. Porque viriam aqueles dois companheiros despertá-lo agora? Não lhe agradava moer o tempo em conversas para entreter. Falariam do trabalho e de mulheres, das suas terras e dos seus amigos. Conversas de quem nada tem para dizer e procura palavras fiadas.
- O camarada parece que anda a modos doeentes...
Silêncio.
Um deles chegou-se mais ao ceifeiro rebelde, quase a tocar-lhe:
- Alguma sezãozita por aí a minar...
> - Na!...
A cara do gaibéu agradou-lhe. Era magra e o olhar não o feria.
E continuou, erguendo o busto e fixando-se nos cotovelos:
- Já tenho o coirão curtido.
- Dos anos daqui?...
- Pois! Agora... só alguma para cavalo éé que cá entra.
- Ah!...vossemecê é cá do sítio?
- Não fui parido na borda de nenhuma abeerta, ande lá. Sou daqui perto, nem quase me lembro donde. De Aldeia Galega!...
- Não conheço - interrompeu o outro gaibbéu.
- É para riba?... - interrogou o outro.<
- Na!...
E indicou para o sul num movimento de cabeça.
- Fica ali no mar da Palha.
Os gaibéus quedaram-se contrafeitos, sem perceber e sem perguntar. E volveram os olhos para aquele lado. Um deles inclinou-se para trás, apoiando-se também aos cotovelos.
- Vossemecê sabe onde é que isto vai terr?...
E apontou o rio, a cobrir a praia aos poucos.
- Isso nem se sabe, homem.
- Ao fim do mundo...
- E o mundo é grande...
- Longe?!...
Estavam no porto à espera do barco que os levaria na viagem para a liberdade. Só sabiam que ia partir com mais um companheiro. Assim seria melhor, pois nascera ali perto e podia dizer-lhes tudo o que ansiavam conhecer. 
- Ao fim do mundo - respondeu o ceifeiroo rebelde.
Os gaibéus entreolharam-se confusos. Não se haviam enganado, ainda bem. Daquela praia poderiam abalar para as terras de além, donde o João da Loja voltara rico.
- Contou-me um marinheiro quando embarquei. Esta água vai a Lisboa e depois mar fora. E os mares são muitos e é só um.
Os dois nunca tinham ouvido falar naquele jeito.
Fez-se silêncio. Cada um ficou entregue aos seus pensamentos. O ceifeiro rebelde lembrava-se do marinheiro que lhe dissera dos mares e dos homens do fogo. O marinheiro falara-lhe dos passageiros de primeira e dos de terceira e de muitas coisas da vida que ele não vira ainda - vendo-as todos os dias. Os anos passaram e o marinheiro esquecera. Só a sua camisola azul com fateixa vermelha bordada e as suas palavras se lhe tinham gravado para sempre. Desde então, todos os embarcadiços eram irmãos do marinheiro que lhe falara dos mares.
E amava-os.
- Todo o mundo...
- É grande e pequeno. Já andei por ele dentro e nem sei bem. Às vezes, parece-me grande - maior que o Inverno. Noutras não passa de um palmo mal medido.
Aquele companheiro andara por terras distantes e bem o tinha marcado na cara. Conhecia-se logo que era homem diferente deles e até dos rabezanos. Sempre metido consigo... E sabia belas coisas do mar e dos marinheiros.
- Foi às Áfricas?!...
O outro afirmou com a cabeça. E pareceu-lhes que ficara triste.
- Às Áfricas e ao Brasil.
Ficou então com vontade de lhes contar tudo. Saberia dizer-lhes coisas novas sobre a rota do seu sonho.
- Eu e mais este andamos com vontade de lá deitar. Aquilo deve ser outra coisa... Outra gente...
O silêncio do ceifeiro rebelde fê-lo calar. Mas a emoção que lhe embargava a voz e lhe agitava o corpo pôde mais do que o enleio.
- Há cinco anos que andamos com esta ferrada. E isto vai!... Trabalhamos para estoirar, até de noite, se preciso for...
Comunicado pelo mesmo deslumbramento, o gaibéu mais atarracado prosseguiu:
- O cinto aperta-se nos furos que forem precisos. Mas ganhar a cinco e a seis toda a vida, não, não pode ser.
- Não é lá grande coisa, não!
Esperavam mais palavras do outro. O que dissera não passava de um lamento e eles desejavam que lhes falassem das cidades e dos campos, das mulheres e das casas rodeadas de flores.
A noite parecia ainda mais serena. As estrelas no céu prometiam-lhes boa viagem. O rio subia mais e temia-se de vir até ali.
- Aquilo é outra coisa, camarada...
Diziam as palavras que gostariam de ouvir ao outro. Mas ele ficara mudo e parecia-lhes mais triste.
- Terras de trabalho, está certo. Também um homem, ao menos, tem côdea e amealha alguma coisita.
O outro continuava abstracto.
- Pouco, é claro!... - emendou, vencido pelo silêncio do companheiro, que não repetia as histórias do João da Loja.
- Pouco... ou nada - respondeu por fim.<
A sua voz parecia magoada.
- O camarada está de brincadeira, pela certa - retorquiu um deles, de sorriso forçado, pondo-lhe a mão no ombro.
- Antes estivesse... Antes estivesse!... Também já fui como vossemecês. Pensei das Áfricas e do Brasil um pão mais farto. Trabalhei para amealhar, roubando à barriga e aos braços. E parti... E tudo me saiu África... mas de condenado.
Agora só a sua voz se ouvia na praia.
- No barco tudo me parecia um sonho. Iam comigo condenados e eu não sabia ainda que era condenado também.
- Condenados?...
- Ladrões e assassinos. Gente que depois por lá encontrei marcada com números e letras. Metiam-me medo e todos se afastavam deles quando saíam do porão. Mais tarde, quase senti inveja. Eu não reparara que ia na terceira e a bordo havia mais classes. Mas em nenhuma viajava tanta esperança como naquela. A todos parecia que a desgraça ficara no cais com os outros que não embarcaram. Vida nova!... Ali não entrava a tristeza. Nem os condenados iam tristes.
Os rapazes, se ali estivessem, perguntariam novas do pai do Cadete. Ele também lá fora como ladrão e era bom. E olhariam aquele ceifeiro com olhos diferentes dos gaibéus.
-Andei por lá à cata de trabalho... e nada. Pedi para descarregador e julgaram-me doido. "Você é branco, homem. Descarga é serviço de negro". Eu era branco e não podia trabalhar no cais. O homem que me falou assim voltou-se para outro e disse-lhe em voz alta, com modos de zangado: "Isto devia ser proibido. É por isso que os negros já não tem respeito à gente." E falou em prestígio... ou coisa assim parecida. Vossemecês sabem o que isso é?!...
- Ná! Nunca ouvi falar...
- Pois disse aquilo muita vez e deu-me dinheiro. Andei assim uns dias, até que um tal Santos & Pinto me arranjou para o mato, para capatazes de pretos. Vida má, a de preto!
- O Sr. João da Loja, um homem lá da nossa terra e que se governou bem pelas Áfricas, ri-se sempre quando fala dos pretos. Diz que preto é burro.
- E é mesmo. E burro que não dá coices, nem é teimoso. Aquilo não me servia. Algum dinheiro que sobejava fui deixando ficar na conta. Quando julguei que chegava para a passagem e para farpela mais limpa, despedi-me. "Que ficasse, pois qualquer dia me dariam mais alguma coisa, quando apanhassem o café." Aquilo não me grudava.
- Fez mal...
- Nem mal, nem bem.
- O Sr. João da Loja assim é que chegou a sócio do patrão.
- Eu só podia ser sócio de negro. Fizeram-me umas contas que não percebi e fiquei mais seis meses. E lá vim.
- Fez mal.
- E reparei então que a terceira era a classe onde viajava menos esperança. E reparei que havia outra que era a segunda. E ainda outra, a primeira.
Lembrou-se, de novo, da camisola azul de fateixa vermelha e das palavras do marinheiro. Os outros não o olhavam já, nem o ouviam. Ouviam-se a si próprios. No céu, umas estrelas desejavam boa viagem e outras estavam abatidas, como o companheiro que lhes falara das Áfricas e do Brasil.
Nunca tivessem vindo à praia para ver o rio que corria para o mar - para todos os mares do mundo. Agora, dentro deles, a ânsia de partir fizera-se mais débil. Antes daquele encontro tinham de um lado a incerteza do trabalho e do pão e do outro as terras de além, com cidades e campos férteis, mulheres bonitas e casas rodeadas de flores.
Tudo agora se tornava incerteza, porque as cidades imaginadas tinham desaparecido com o vendaval e as casas eram gêmeas das que as mães habitavam. Mas logo, mais poderoso, o sonho voltava e as palavras do companheiro ficavam sem sentido. O João da Loja fizera um arranjinho e quantos outros?... Eles não exigiam fortuna, com mil diabos! Trabalho certo, pão mais basto e alguma coisa para a velhice. E lá porque aquele voltara como fora, não ia daí dizer-se que para todos a vida seria igual.
- Brasil e Áfricas... Disse-me o marinheiro. A África e o Brasil estão com a gente. Todo o mundo pode ser África e Brasil.
Estendeu-se na areia e abriu os braços, cerrando os olhos. Ficou a ver o passado e a pensar no futuro. Ele já não depunha as suas ambições em terras de longe. O futuro vivia dentro dele e dos outros homens.
Os dois gaibéus queriam agora partir, agora mesmo, se fosse possível. Aquele companheiro era louco, não dizia coisa com coisa. Dali não se podia ir por aquele rio para toda a parte do mundo, nem as Áfricas e o Brasil estavam dentro dos homens. Bem tolos foram em escutar aquela história de louco, julgando que lhe diria as mesmas coisas do João da Loja.
As estrelas acenavam-lhes boa viagem. O barco não tardaria, mas não passava à praia, donde viam as luzes da outra margem. Um ano mais e a vida começaria então. Aquilo assim não era viver.
Vida nova em terras novas.
E ergueram-se. O outro ceifeiro continuava estendido na areia, de olhos cerrados, e não os sentiu partir. Não respondeu, pelo menos, à saudação que lhe dirigiram.
Caminhavam lado a lado, silenciosos, pensando no seu sonho - o sonho pertencia-lhes.
E riram quando um deles lembrou as palavras do companheiro louco:
- As Áfricas e o Brasil estão com a gente. Todo o mundo pode ser África e Brasil.
As suas gargalhadas ecoaram na noite.

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