Ainda Mais Alguns Poemas

"No mais mesmo da mesmice, vem a novidade" - Guimarães Rosa

 

Nova Canção do Exílio - Ferreira Gullar

Minha amada tem palmeiras
Onde cantam passarinhos
e as aves que ali gorjeiam
em seus seios fazem ninhos
Ao brincarmos sós à noite
nem me dou conta de mim:
seu corpo branco na noite
luze mais do que o jasmim


Minha amada tem palmeiras
tem regatos tem cascata
e as aves que ali gorjeiam
são como flautas de prata
Não permita Deus que eu viva
perdido noutros caminhos
sem gozar das alegrias
que se escondem em seus carinhos
sem me perder nas palmeiras
onde cantam os passarinhos.

 

Todas as Cartas de Amor são Ridículas - Álvaro de Campos

Todas as cartas de amor são 
Ridículas. 
Não seriam cartas de amor se não fossem 
Ridículas. 
Também escrevi em meu tempo cartas de amor, 
Como as outras, 
Ridículas. 

As cartas de amor, se há amor, 
Têm de ser 
Ridículas. 

Mas, afinal, 
Só as criaturas que nunca escreveram 
Cartas de amor 
É que são 
Ridículas. 

Quem me dera no tempo em que escrevia 
Sem dar por isso 
Cartas de amor 
Ridículas. 

A verdade é que hoje 
As minhas memórias 
Dessas cartas de amor 
É que são 
Ridículas. 

(Todas as palavras esdrúxulas, 
Como os sentimentos esdrúxulos, 
São naturalmente 
Ridículas.)

 

Amei-te e por te amar - F. Pessoa (2-12-1913)

Amei-te e por te amar 
Só a ti eu não via... 
Eras o céu e o mar, 
Eras a noite e o dia... 
Só quando te perdi 
É que eu te conheci... 

Quando te tinha diante 
Do meu olhar submerso 
Não eras minha amante... 
Eras o Universo... 
Agora que te não tenho, 
És só do teu tamanho. 

Estavas-me longe na alma, 
Por isso eu não te via... 
Presença em mim tão calma, 
Que eu a não sentia. 
Só quando meu ser te perdeu 
Vi que não eras eu. 

Não sei o que eras. Creio 
Que o meu modo de olhar, 
Meu sentir meu anseio 
Meu jeito de pensar... 
Eras minha alma, fora 
Do Lugar e da Hora... 

Hoje eu busco-te e choro 
Por te poder achar 
Não sequer te memoro 
Como te tive a amar... 
Nem foste um sonho meu... 
Porque te choro eu? 

Não sei... Perdi-te, e és hoje 
Real no [...] real... 
Como a hora que foge, 
Foges e tudo é igual 
A si-próprio e é tão triste 
O que vejo que existe. 

Em que és [...J fictício, 
Em que tempo parado 
Foste o (...) cilício 
Que quando em fé fechado 
Não sentia e hoje sinto 
Que acordo e não me minto... 

[...] tuas mãos, contudo, 
Sinto nas minhas mãos, 
Nosso olhar fixo e mudo 
Quantos momentos vãos 
Pra além de nós viveu 
Nem nosso, teu ou meu... 

Quantas vezes sentimos 
Alma nosso contacto 
Quantas vezes seguimos 
Pelo caminho abstracto 
Que vai entre alma e alma... 
Horas de inquieta calma! 

E hoje pergunto em mim 
Quem foi que amei, beijei 
Com quem perdi o fim 
Aos sonhos que sonhei... 
Procuro-te e nem vejo 
O meu próprio desejo... 

Que foi real em nós? 
Que houve em nós de sonho? 
De que Nós fomos de que voz 
O duplo eco risonho 
Que unidade tivemos? 
O que foi que perdemos? 

Nós não sonhámos. Eras 
Real e eu era real. 
Tuas mãos - tão sinceras... 
Meu gesto - tão leal... 
Tu e eu lado a lado... 
Isto... e isto acabado... 

Como houve em nós amor 
E deixou de o haver? 
Sei que hoje é vaga dor 
O que era então prazer... 
Mas não sei que passou 
Por nós e acordou... 

Amámo-nos deveras? 
Amamo-nos ainda? 
Se penso vejo que eras 
A mesma que és... E finda 
Tudo o que foi o amor; 
Assim quase sem dor. 

Sem dor... Um pasmo vago 
De ter havido amar... 
Quase que me embriago 
De mal poder pensar... 
O que mudou e onde? 
O que é que em nós se esconde? 

Talvez sintas como eu 
E não saibas sentil-o... 
Ser é ser nosso véu 
Amar é encobril-o, 
Hoje que te deixei 
É que sei que te amei... 

Somos a nossa bruma... 
É pra dentro que vemos... 
Caem-nos uma a uma 
As compreensões que temos 
E ficamos no frio 
Do Universo vazio... 

Que importa? Se o que foi 
Entre nós foi amor, 
Se por te amar me dói 
Já não te amar, e a dor 
Tem um íntimo sentido, 
Nada será perdido... 

E além de nós, no Agora 
Que não nos tem por véus 
Viveremos a Hora 
Virados para Deus 
E n´um(...) mudo 
Compreenderemos tudo.

O Morcego - Augusto dos Anjos

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho. 
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede: 
Na bruta ardência orgânica da sede, 
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho. 

"Vou mandar levantar outra parede..." 
- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferroolho 
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho, 
Circularmente sobre a minha rede! 

Pego de um pau. Esforços faço. Chego 
A tocá-lo. Minh’alma se concentra. 
Que ventre produziu tão feio parto?! 

A Consciência Humana é este morcego! 
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra 
Imperceptivelmente em nosso quarto!

A uma ausência - António Barbosa Bacelar

Sinto-me, sem sentir,todo abrasado
No rigoroso fogo que me alenta
O mal que me consome me sustenta
O bem que me entretém me dá cuidado.

Ando sem me mover; falo calado
O que mais perto vejo se me ausenta
E o que estou sem ver mais me atormenta
Alegro-me de ver-me atormentado

Choro no mesmo ponto em que me rio
No mor risco me anima a confiança
Do que menos se espera estou mais certo

Mas se de confiado desconfio
É porque entre os receios da mudança
Ando perdido em mim como deserto.


Boca: a arma da sedução - Carlos Drummond de Andrade


Boca: nunca te beijarei.
Boca de outro que ris de mim,
no milímetro que nos separa,
cabem todos os abismos.

Boca: se meu desejo
é impotente para fechar-te,
bem sabes disto, zombas
de minha raiva inútil.

Boca amarga pois impossível,
doce boca (não provarei),
ris sem beijo para mim,
beijas outro com seriedade.


Segue o teu destino - Ricardo Reis

Segue o teu destino, 
Rega as tuas plantas, 
Ama as tuas rosas. 
O resto é a sombra 
De árvores alheias. 

A realidade 
Sempre é mais ou menos 
Do que nós queremos. 
Só nós somos sempre 
Iguais a nós-próprios. 

Suave é viver só. 
Grande e nobre é sempre 
Viver simplesmente. 
Deixa a dor nas aras 
Como ex-voto aos deuses. 

Vê de longe a vida. 
Nunca a interrogues. 
Ela nada pode 
Dizer-te. A resposta 
Está além dos deuses. 

Mas serenamente 
Imita o Olímpo 
No teu coração. 
Os deuses são deuses 
Porque não se pensam.

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