Principal 

BARROCO      

Trechos Escolhidos dos Sermões do Padre Antonio Vieira

 SERMÃO DA SEXAGÉSIMA

PREGADO NA CAPELA REAL

ANO DE 1655

 

O pregador evangélico será pago não só pelo que semeia como pelas distâncias que percorre, e não volta nem mesmo diante das dificuldades que a natureza lhe apresenta: as pedras, os espinhos, as aves, o homem. Cristo ordenou que se pregasse a todas as criaturas porque há homens-brutos, homens-pedras, e homens-homens. O que aconteceu com a semente do Evangelho aconteceu com os missionários do Maranhão. Não age mal o pregador que volta à busca de melhores instrumentos. Este sermão servirá de prólogo aos outros sermões quaresmais.

 

(...) O sermão há de ter um só assunto e uma só matéria. Por isso Cristo disse que o lavrador do Evangelho não semeara muitos gêneros de sementes, senão uma só: Exiit qui seminat seminare semen. Semeou uma semente só, e não muitas, porque o sermão há de ter uma só matéria, e não muitas matérias. Se o lavrador semeara primeiro trigo, e sobre o trigo semeara centeio, e sobre o centeio semeara milho grosso e miúdo, e sobre o milho semeara cevada, que havia de nascer? Uma mata brava, uma confusão verde. Eis aqui o que acontece aos sermões deste gênero. Como semeiam tanta variedade, não podem colher coisa certa. Quem semeia misturas, mal pode colher trigo. Se uma nau fizesse um bordo para o Norte, outro para o Sul, outro para Leste, outro para Oeste, como poderia fazer viagem? Por isso nos púlpitos se trabalha tanto e se navega tão pouco. Um assunto vai para um vento, outro assunto vai para outro vento; que se há de colher senão vento? O Batista convertia muitos em Judéia; mas quantas matérias tomava? Uma só matéria: Parate viam Domini[1]. a preparação para o reino de cristo. Jonas converteu os ninivitas; mas quantos assuntos tomou ? Um só assunto: Adhuc quadraginta dies, et Ninive subvertetur[2]. a subversão da cidade. De maneira que Jonas em quarenta dias pregou um só assunto, e nós queremos pregar quarenta assuntos em uma hora? Por isso não pregamos nenhum. O sermão há de ser de uma só cor, há de ter um só objeto, um só assunto, uma só matéria.

Há de tomar o pregador uma só matéria; há de defini-la, para que se conheça; há de dividi-la, para que se distinga; há de prová-la com a Escritura, há de declará-la com razão, há de confirmá-la com o exemplo, há de amplificá-la com as cousas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências, que se hão de seguir, com os inconvenientes, que se hão de seguir, com os inconvenientes, que se devem evitar; há de responder às dúvidas, há de satisfazer às dificuldades, há de impugnar e refutar com toda a força de eloqüência os argumentos contrários, e depois disto há de colher, há de apertar, há de concluir, há de persuadir, há de acabar. Isto é sermão, isto é pregar, e o que não é isto, é falar demais alto. Não nego, nem quero dizer que o sermão não haja de ter variedade de discursos, mas esses hão de nascer todos da mesma matéria, e continuar, e acabar nela. Quereis ver tudo isto com os olhos? Ora vede. Uma árvore tem raízes, tem troncos, tem ramos, tem folhas, tem varas, tem flores, tem frutos. Assim há de ser o sermão: há de ter raízes fortes e sólidas, porque há de ser fundado no Evangelho; há de ter um tronco, porque há de ter um só assunto e tratar uma só matéria. Deste tronco hão de nascer diversos ramos, que são diversos discursos, mas nascidos da mesma matéria e continuados nela. Estes ramos não hão de ser secos, senão cobertos de folhas, porque os discursos hão de ser vestidos e ornados de palavras. Há de ter esta árvore varas, que são a repreensão dos vícios; há de ter flores, que são as sentenças; e, por remate de tudo, há de ter frutos, que é o fruto, e o fim a que se há de ordenar o sermão. De maneira que há de haver frutos, há de haver flores, há de haver varas, há de haver folhas, há de haver ramos, mas tudo nascido e fundado em um só tronco, que é uma só matéria. Se tudo são troncos, não é sermão, é madeira. Se tudo são ramos, não é sermão, são maravilhas. Se tudo são folhas, não é sermão, são versas. Se tudo são varas, não é sermão, é feixe. Se tudo são flores, não é sermão, é ramalhete. Serem tudo frutos, não pode ser, porque não há frutos sem árvore. Assim que nesta árvore, a que podemos chamar Árvore da vida, há de haver o proveitoso do fruto, o formoso das flores, o rigoroso das varas, o vestido das folhas, o estendido dos ramos, mas tudo isto nascido e formado de um só tronco, e esse não levantado no ar, senão fundado nas raízes do Evangelho: Semimare semen. (...)

 

 

SERMÃO DE QUARTA-FEIRA DE CINZA

EM ROMA, NA IGREJA DE S. ANTÓNIO DOS PORTUGUESES.

ANO DE 1672

 

(...) Ora, suposto que já somos pó, e não pode deixar de ser, pois Deus o disse, perguntar-me-eis e com muita razão, em que nos distinguimos logo os vivos dos mortos? Os mortos são pó, nós também somos pó: em que nos distinguimos uns dos outros? Distinguimo-nos os vivos dos mortos, assim como se distingue o pó do pó. Os vivos são pó levantado, os mortos são pó caído: os vivos são pó que anda, os mortos são pó que jaz: Hic jacet. Estão essas praças no verão cobertas de pó; dá um pé-de-vento, levanta-se o pó no ar, e que faz? O que fazem os vivos, e muitos vivos. Não aquieta o pó, nem pode estar queda: anda, corre, voa, entra por esta rua, sai por aquela; já vai adiante, já torna atrás; tudo enche, tudo cobre, tudo envolve, tudo perturba, tudo cega, tudo penetra, em tudo e por tudo se mete, sem aquietar, nem sossegar um momento, enquanto o vento dura. Acalma o vento, cai o pó, e onde o vento parou, ali fica, ou dentro de casa, ou na rua, ou em cima de um telhado, ou no mar; ou no rio, ou no monte, ou na campanha. Não é assim? Assim é. E que pó, e que vento é este? O pó somos nós:

Quia pulvis es; o vento é a nossa vida: Quia ventus es vita mea (Jó 7,7). Deu o vento, levantou-se o pó; parou a vento, caiu. Deu o vento, eis o pó levantado: esses são os vivos. Parou o vento, eis o pó caído: estes são os mortos. Os vivos pó, os mortos pó; os vivos pó levantado, os mortos pó caído; os vivos pó com vento, e por isso vãos; os mortos pó sem vento, e por isso sem vaidade. Esta é a distinção, e não há outra. (...)

 

SERMÃO DE SANTO ANTONIO

PREGADO EM S. LUÍS DO MARANHÃO

 

Vos estis sal terrae. S. Mateus, V, l3.

 

I

Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade? (...)

 

SERMÃO DO ROSÁRIO

PREGADO NA BAHIA

ANO DE 1633

 

(...) Os dolorosos (ouçam-me agora todos), os dolorosos são os que vos pertencem a vós, como os gozosos aos que, devendo-vos tratar como irmãos, se chamam vossos senhores. Eles mandam, e vós servis; eles dormem, e vós velais; eles descansam, e vós trabalhais; eles gozam o fruto de vossos trabalhos, e o que vós colheis deles é um trabalho sobre outro. Não há trabalhos mais doces que os das vossas oficinas, mas em toda essa doçura para quem é ? Sois como as abelhas, de quem disse o poeta: Sic vos non vobis mellificatis apes (assim como as abelhas, vós produzis o mel, mas não para vós). (...).

 

HISTÓRIA DO FUTURO

 

(...) Escreveu Moisés a história do princípio e criação do Mundo, ignorada até aquele tempo de quase todos os homens. E com que espírito a escreveu? Respondem todos os Padres e Doutores que com espírito de profecia. Se já no Mundo houve um profeta do passado, porque não haverá um historiador do futuro? Os profetas não chamaram história às suas profecias, porque não guardam nelas estilo nem leis de histórias: não distinguem os tempos, não assinalam os lugares, não individuam as pessoas, não seguem a ordem dos casos e dos sucessos, e quando tudo isto viram e tudo disseram, é envolto em metáforas, disfarçado em figuras, escurecido com enigmas e contado ou cantado em frases próprias do espírito e estilo profético, mais acomodadas à majestade e admiração dos mistérios, que à notícia e inteligência deles. (...)

 

 

SERMÃO DA QUINTA DOMINGA DA QUARESMA

NA IGREJA MAIOR DA CIDADE DE SÃO LUÍS NO MARANHÃO.

ANO DE 1654

 

(...) O Domingo das verdades. No Maranhão a corte da mentira. O galante apólogo do diabo. O M de Maranhão. No Maranhão até o sol e os céus mentem.

Si dixero quia non scio eum, ero similis vobis, mendax (Se disser que o não conheço, serei como vós, mentiroso).

A este Evangelho do Domingo Quinto da Quaresma chamais comumente o domingo das verdades. Para mim todos os domingos têm este sobrenome, porque em todos prego verdades, e muito claras, como tendes visto. Por me não sair, contudo, do que hoje todos esperam, estive considerando comigo que verdades vos diria, e, segundo as notícias que vou tendo desta nossa terra, resolvi-me a vos dizer uma só verdade. Mas que verdade será esta? Não gastemos tempo. A verdade que vos digo é que no Maranhão não há verdade. (...) Os vícios da língua são tantos, que fez Drexélio um abecedário inteiro e muito copioso deles. E se as letras deste abecedário se repartissem pelos estados de Portugal, que letra tocaria ao nosso Maranhão? Não há dúvida, que o M. M - Maranhão, M - murmurar, M - motejar, M - maldizer, M - malsinar, M - mexericar, e, sobretudo, M - mentir: mmentir com as palavras, mentir com as obras, mentir com os pensamentos, que de todos e por todos os modos aqui se mente. Novelas e novelos, são as duas moedas correntes desta terra, mas têm uma diferença, que as novelas armam-se sobre nada, e os novelos armam-se sobre muito, para tudo ser moeda falsa. (...)



[1] Aparelhai o caminho do Senhor (Mt. 3,3).

[2] Daqui a quarenta dias será Nínive subvertida (Jon. 3,4).

Hosted by www.Geocities.ws

1