Antonio Cícero

Brasil feito brasa1

A imagem imediata da América do Sul sempre se destacou por exuberância e sensualidade tropicais. “A luz brilhante do dia, a força das cores das plantas, as formas dos vegetais, a plumagem colorida dos pássaros, tudo traz a estampa da natureza tropical”,2 exclama Humboldt, ao aqui desembarcar. “Que país fabuloso e extravagante! Plantas fantásticas, enguias elétricas, tatus, macacos, papagaios... Que árvores! Poinciana Pulcherrima com um grande buquê de maravilhosas flores rubras; árvores com folhas enormes e flores perfumadas do tamanho de uma mão... Quanto às cores dos pássaros e peixes, até os caranguejos são azuis celestes e amarelos!”3

Mas o Brasil não é extravagante apenas no que toca à natureza não-humana. Também as formas da nossa natureza humana (formas ou cores de corpos, peles, cabelos, olhos etc.), resultantes dos cruzamentos mais improváveis, têm uma diversidade estonteante. Assim, ao contrário do que se dá nos Estados Unidos, a exceção aqui é o negro, o branco ou o índio “puro”. Pode dizer-se que, no Brasil, cada ser humano parece resultar de uma combinação singular de características de cada uma dessas e de outras raças. Longe de significar homogeneização racial, isso sugere que, no limite, cada brasileiro tende a ser a expressão de uma raça individual. Esse oximoro exprime o fato de que, através não da redução, mas da multiplicação das diferenças, entrevê-se no Brasil, a longo prazo, a pulverização -- ou melhor, a dissolução -- racial.

Da mesma maneira, é impossível ignorar que nem as formas da cultura erudita nem as criações mais importantes da cultura popular brasileira se dão como arquétipos imemoriais ou heranças de um passado miticamente remoto. Elas constituem, ao contrário, resultados memoráveis da intermediação recíproca das mais diferentes culturas. Uma grande invenção feito o samba, por exemplo, pode entender-se como uma forma admirável de se conceber criativamente o concubinato de, por um lado, ritmos, ritos, danças, instrumentos, paradigmas musicais etc. de diferentes proveniências africanas com, por outro lado, melodias, harmonias, versos, danças, instrumentos, paradigmas musicais etc. de diferentes proveniências européias. A realidade do samba aponta para a possibilidade de infinitas outras combinações de elementos de diversas origens. A biodiversidade, se tomada também em sentido antropológico (e não apenas no que toca à antropologia física, mas à cultural), é, de fato, a característica mais marcante do Brasil. Ora, como diz a letra de um rock brasileiro, “riquezas são diferenças”. Que o converso disso também é verdadeiro, isto é, que diferenças são riquezas, já era considerado evidente por Aristóteles no princípio da Metafísica, ao explicar que a razão pela qual preferimos a vista a todos os outros sentidos é que ela nos faz conhecer mais “e mostra muitas diferenças”.4

Contudo, nem todo homem se deslumbra e deleita, feito Humboldt, com a pletora do ser tropical. Há entre os moralistas, como Nietzsche observa, um ódio à floresta virgem e aos trópicos e uma necessidade de desacreditar a todo custo o “homem tropical”, seja como doença e degeneração do homem, seja como inferno e automartírio próprio. Para tais moralistas, um país feito o Brasil -- em que não apenas a natureza não-humana, mas também a natureza humana e a cultura são superabundantemente polimórficas -- não pode deixar de ser um escândalo. Também para eles, o brasileiro é o mais desacreditado dos homens. Mas podemos nos perguntar, com o autor de “Além do Bem e do Mal”, por que razão se há de pensar dessa maneira. “A favor das ‘zonas temperadas’? A favor dos homens temperados? Dos homens ‘morais’? Dos medíocres?”5 A favor de nossa uniformização física ou moral, isto é, de nosso empobrecimento?

Devemos também rejeitar o clichê que faz do homem tropical um escravo da natureza, das circunstâncias ou das paixões que sofre. Da epopéia glauberiana do cinema novo à decantação joão-gilbertiana da bossa nova, do plano piloto dos arquitetos da visão e loucura de Brasília ao plano piloto dos “poetas de campos e espaços” de São Paulo, tudo parece confirmar que Hélio Oiticica se achava próximo da verdade quando sentia no âmago da alma brasileira uma revolucionária “vontade construtiva geral”.

Semelhante país não quer ser descrito pelas metáforas orgânicas e, sobretudo, vegetais, cujo protótipo é o famoso cedro de Herder, de raízes fincadas no solo ancestral.6 Originalmente uma elipse, a expressão “Brasil” funcionava como metonímia do país que continha pau-brasil. Mas de maneira nenhuma deve o pau-brasil ser tomado como metáfora do Brasil. Quando comparamos uma nação a uma árvore, estamos enfatizando os aspectos concluídos e herdados da sua vida cultural. É nesse sentido que Maurice Barrès, por exemplo, dizia: “Preciso que guardem em minha árvore a cultura que lhe permita me sustentar tão alto a mim, fraca folhinha”.7 A folha brota do galho, que sai do tronco, que se sustenta pela raiz, que se agarra no passado de que se alimenta.

Antes de tudo, “Brasil” remete a “brasa”. É evidente que não devemos nem podemos prescindir da linguagem figurada, já que o seu emprego faz parte da ars inveniendi e trata-se, aqui, da descoberta do Brasil, isto é, da inventio Brasilis. Preferimos, contudo, um célebre tropo americano (americano ma non troppo, feito tudo americano, pois foi Tocqueville, se não me engano, quem primeiro o empregou) e dizemos que o Brasil é o verdadeiro melting pot, o crisol, que os Estados Unidos não chegaram a ser, em que se dão tanto a promiscuidade quanto a miscigenação das mais diversas culturas e raças -- americanas, européias, africanas, asiáticas -- que modificam, relativizam, instrumentalizam e fecundam umas as outras. O crisol, ao contrário da árvore, consiste no âmbito da mudança, no lugar de fusão e separação, expansão e contração, composição e decomposição, condensação e rarefação, onde nada jamais permanece o mesmo. Obviamente, mesmo a metáfora do crisol não é inteiramente adequada, pois, neste, diferentes metais se fundem em uma única liga enquanto, no Brasil, o intercurso das diversas raças e culturas resulta na multiplicação combinatória de códigos genéticos e culturais. Talvez devêssemos, por isso, ter preferido a imagem de um laboratório. O crisol, porém, tem a vantagem de poder funcionar como a representação contemporânea de um caos hesiodicamente originário que consiste, por um lado, em uma garganta vorazmente antropofágica, ou melhor, onívora, e, por outro, em um útero eidopoético e cosmogônico, isto é, gerador de formas e mundos. Quando chamamos o Brasil de “crisol”, estamos, portanto, pondo o acento na produção criativa de raça e cultura. É com um olhar retrospectivo que uma etnia se compara a uma árvore e com um olhar prospectivo que se compara a um crisol.

Na verdade, a própria Europa nem sempre se encontrou tão longe deste último quanto, à primeira vista, atualmente parece estar. Hoje esse continente se constitui em uma comunidade supranacional. Em relação a seu próprio interior, isso significa a reunião econômica e política, e um ainda maior intercâmbio cultural de diversas nações. Em relação ao exterior, porém, a união européia tende a significar uma só supernação. Do ponto de vista cultural, muitos dos ideólogos dessa comunidade lembram o modelo da unidade na diversidade, representado pela Europa medieval. Mas por que não lançar o olhar para mais longe, para o momento da formação da cultura européia? “A história da Grécia”, observava, com razão, Hegel, mostra em seu começo a migração e mistura de tribos, em parte domésticas e em parte estrangeiras; e precisamente a Ática, cujo povo alcançaria o auge da floração grega, era o refúgio das mais diferentes tribos e famílias... Tanto os gregos quanto os romanos desenvolveram-se a partir de um colluvies, uma confluência das mais variadas nações. Das diversas populações que encontramos na Grécia, não se pode dizer quais eram propriamente as gregas originais e quais haviam imigrado de países e plagas estrangeiras...”8 Que é o berço da Europa, que são a Grécia, o Mediterrâneo, a própria Europa senão a grande encruzilhada de três continentes? Não será nessa experiência cultural sem precedentes de integração superadora de particularidades que devemos ver o encadeamento de circunstâncias que conduziu a que precisamente no solo do Ocidente... surgissem fenômenos culturais que se encontram em um caminho de desenvolvimento de significado e validade universais”?9 Dos próprios alemães, Nietzsche diz que, como “povo da mais extraordinária mistura e amálgama de raças, talvez com predomínio do elemento pré-ariano, como ‘povo do meio’ em todo sentido”,10 eles escapam à definição. Mas é claro que aquilo que para os europeus ou mesmo para os norte-americanos é capaz de parecer tão remoto que pode ser esquecido ou recalcado, para nós, brasileiros, é um processo vivo.

A ouvidos multiculturalistas, toda essa conversa sobre crisóis parecerá extravagantemente suspeita. Perguntar-se-á, por exemplo, como podemos ainda hoje continuar a empregar uma metáfora tão antiga quanto a do melting pot, como se ignorássemos que ela saiu de uso em virtude do reconhecimento de que, na prática, o sincretismo cultural se dá através de relações de domínio, em que determinadas culturas integram subordinativamente elementos de outras. Responderemos que uma cultura é o resultado -- provisório -- de um processo histórico, e os processos históricos, como os processos vitais, nada têm de eqüitativos. A própria mistura de raças que compõem o Brasil tornou-se possível, como se sabe, através da monstruosidade histórica da escravidão. Parte dos problemas brasileiros se deve sem dúvida às conseqüências nefastas desse fato terrível. Contudo, a metáfora do crisol nos parece ainda apta a exprimir o fato de que a fusão de raças e culturas brasileiras tenha progredido a tal ponto que não é mais sequer concebível -- exceto para grupos insignificantes, ou com uma dose ridícula de artificialidade -- pretender restaurar efetivamente a putativa pureza racial ou cultural de qualquer um de seus componentes.

O mestiço não deve ter a ilusão de que sua cultura autêntica seja diferente daquela em que foi criado. O caráter acidental e contingente de sua configuração racial não pode deixar de revelar-lhe o caráter igualmente acidental e contingente de toda relação entre raça e cultura. Para ele, está na cara, de fato, algo que, de direito, ninguém atualmente pode deixar de saber: que os racismos, nacionalismos e fundamentalismos que hoje por todos os continentes tendem a se reafirmar com virulência não passam, em última análise, de tentativas cínicas ou desesperadas de renegar a consciência social -- generalizada e aguçada em conseqüência das recentes revoluções na informática, nas comunicações e nos transportes -- do caráter acidental, contingente e relativo de fronteiras, horizontes, crenças, religiões, totens, tabus, costumes, tradições, valores, culturas, etnias, nações, mundos etc.

Assim, o brasileiro não pode ignorar que o crisol-Brasil existe somente enquanto bojo de contatos, atritos e fusões culturais e raciais. Para ele, a afirmação da acidentalidade, da contingência e da relatividade das identidades positivas e particulares que entram em sua composição se dá como fundamento essencial, necessário e absoluto de sua nacionalidade. Com isso, a cultura brasileira não pode ser senão uma espécie de meta-cultura; a raça brasileira, meta-raça; e a nação brasileira, meta-nação. Nesse sentido, a originalidade desse país -- um pouco feito a singularidade do Ocidente, para Max Weber --11 não deve ser buscada na particularidade dele, mas no seu modo de ser universal.

Isso, porém, significa que o Brasil não se realiza -- e menos ainda se apresenta como exemplar -- senão enquanto radicaliza a afirmação americana da oportunidade universal e da liberdade individual, isto é, da democracia. Nada pode ser mais antitético ao mito propulsor do Brasil do que uma unidade baseada em opressão ou exclusão de raças, castas, culturas, grupos ou indivíduos. Não liberaremos plenamente a diversidade, o sincretismo e a criatividade que nos distinguem senão na medida em que a lei e o Estado deixem de servir a grupos particulares e passem a pertencer a todos, isto é, a ninguém em particular. O quanto nos encontramos longe desse ponto é indicado, por exemplo, pelas estatísticas assombrosas12 que dizem que apenas 14% da população conseguem terminar o primeiro grau e apenas 9% são educados até o final do segundo grau; que trezentos e oitenta mil crianças morrem de fome a cada ano etc. Não é a toa que “Brazilification” consiste num neologismo norte-americano que, inspirado na observação da crescente concentração de renda no Brasil, significa a tendência, em uma sociedade qualquer, a crescer o abismo entre os ricos e os pobres e, concomitantemente, a desaparecer a classe média.13 O paradoxo do Brasil está em, sendo capaz de oferecer a prefiguração da solução de alguns problemas que poucos países conseguem efetivamente enfrentar, não ter conseguido efetivamente enfrentar alguns problemas que muitos outros países já resolveram total ou parcialmente.

Contudo, se eu estiver certo em ver sinais de que a iniquidade social estabelecida no Brasil não poderá subsistir muito tempo, pois cada vez mais amplos setores da sociedade brasileira manifestam considerá-la intolerável, então em breve talvez a palavra Brazilification seja capaz de passar a exprimir, em oposição à via (em última análise separatista) do multiculturalismo, o que penso ser o traço realmente admirável desse país: a opção pelo caminho da fusão e da fecundação recíproca de diferentes culturas.

Notas

1 Texto pronunciado na Literaturhaus de Frankfurt, por ocasião da Feira Internacional do Livro, em Outubro de 1994

2 Humboldt, A., Vom Orinoco zum Amazonas, Brockhaus, Wiesbaden, 1958, p.68.

3 Cit. por Botting,D., Humboldt, Harper & Row, New York, 1973, p.76.

4 Aristóteles, Metaphysica, A980a28.

5 Nietzsche,F., Jenseits von Gut und Böse, Fischer Bücherei, Frankfurt, 1968, § 197.

6 Herder,J.G., “Auch eine Philosophie der Geschichte zur Bildung der Menschheit”, in Schriften,Wilhelm Goldmann Verlag, München, 1960, p.36.

7 Cit. por Finkelkraut,A., A Derrota do Pensamento, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1988, p.59.

8 Hegel, Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1970.

9 Weber, M., Die protestantische Ethik, Vorbemerkung.

10 Nietzsche, Jenseits von Gut und Böse, § 244.

11 Weber,M., Op. Cit..

12 Buarque,C., O Colapso da Modernidade Brasileira, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1991.

13 Coupland, D., Generation X, St. Ma

Este texto faz parte do livro O Mundo Desde o Fim (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1996), de Antonio Cícero.

 

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