POLÍTICA DE SEGURANÇA 

O ÚLTIMO JULGAMENTO DO IMPÉRIO,
 
Visão, 8 a 14 de Junho de 2000

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O último julgamento do Império

Visão, 8 a 14 de Junho de 2000
Luís Miguel Viana

  

O sistema judicial de Macau é posto em causa na queixa que a ONU aceitou apreciar, em Genebra. Mais do que a liderança de Pan Nga Koi da tríade 14 Quilates, está em questão a imparcialidade do processo a que teve direito.

 

 O Alto Comissário dos Direitos Humanos das Nações Unidas, com sede em Genebra, aceitou, em Maio, uma queixa contra o Estado Português sobre violação de direitos civis no julgamento, em Macau, de Wan Kuok Koi, acusado de liderar a tríade 14 Quilates. Conhecido por Pan Nga Koi (Dente Partido), o arguido foi capturado em 1998 no Hotel Lisboa, o maior casino do território, no meio de uma espectacular operação policial.

 Em 199, o julgamento inicia-se com um adiamento, seguido de duas mudanças consecutivas de juiz. O terceira magistrado, Fernando Estrela, foi recrutado directamente em Lisboa e recomeça as sessões no dia 11 de Outubro de 1999.

 Cedo, a sua actuação é contestada pelos advogados e vista com perplexidade pela comunicação social e pela própria magistratura, em Macau e em Lisboa: «Excedeu-se no pragmatismo da condução da audiência», declarou à Visão um influente magistrado.

 Estrela põe os arguidos incomunicáveis, entra em guerra com os advogados, manda-os calar e, por vezes, como se substitui ao Ministério Público. Sucedem-se, por parte de advogados, as acusações de sistemática violação das garantias de defesa dos dez arguidos. Em 23 de Novembro, já está a ler a sentença : Pan Nga Koi apanha 15 ano, a pena máxima aplicável aos crimes de que ia acusado.

 O seu defensor, o português Pedro Redinha, interpõe recurso da sentença para a ONU dias antes da transferência da administração do território de Macau para a China, em 19 de Dezembro de 1999. Fá-lo acompanhar por um circunstanciado parecer do advogado Ricardo Sá Fernandes. O parecer questiona a legitimidade das sucessivas mudanças de juiz, as ausências de garantias de defesa e, ainda, as fundamentações de facto e de direito do acordão condenatório. Sá Fernandes faz questão de explicar que não discute se Pan Nga Koi é, ou não, o chefe da seita 14K, ou se terá ou não cometido os crimes de que is acusado. Defende, sim, que o chinês teria sempre direito a ser julgado num processo equitativo. O que não lhe parece ter acontecido. Contactado, pela Visão, na Boa-Hora, o tribunal criminal de Lisboa para onde regressou após o julgamento, Fernando Estrela escusou-se a prestar quaisquer declarações sobre o assunto.

 

Construir um “julgamento exemplar”

 

«O que era normal quando um juiz chegava a Macau era usar da prudência, apalpar terreno», explica um magistrado que ali trabalhou. »Mas o Dr. Estrela chegou de peito-feito, a abrir as guerras que fossem precisas para despachar o assunto o mais depressa possível». À administração de Macau, confiada ao general Rocha Vieira até ao arrear da bandeira e que, ao contrário da República Portuguesa, tinha poderes de direcção do sistema judicial, interessava mais do que um julgamento exemplar, um julgamento que pusesse os últimos dias de Portugal no Oriente como um exemplo de rigor contra as tríadas chinesas.

 Fernando Estrela sempre recusou que lhe tivessem sido dadas garantias prévias para assumir o julgamento. Mas, neste momento, apurou a Visão junto dos gabinetes de António Costa e de Jaime Gama, o Ministério dos Negócios Estrangeiros procura, a pedido do Ministério da Justiça, uma vacatura em instâncias internacionais para Fernando Estrela lá se colocado em comissão de serviço.

 «O Estado português dificilmente poderá evitar ser condenado internacionalmente, tão gritantes foram as violações de processo praticadas no julgamento», considera Pedro Redinha. E acusa o último governador de Macau, Rocha Vieira, «de ter grandes culpas nas violações sistemáticas dos direitos civis nos últimos 18 meses de administração portuguesa, devido a uma convicção de absoluta impunidade por não haver localmente qualquer instância de fiscalização dos actos de governo».

 

Usadas fotos com Rocha Vieira
Pode parecer extravagante, mas a familiaridade com quem tutelava o sistema de justiça de Macau - o governador - foi um dos argumentos usados no chamad «Julgamento do Século». Ao ver que vídeos e fotografias suas com Pan Nga Koi e outros acusados estavam a ser apresentadas como provas contra si, Chan Hak Kan, um dos arguidos, juntou aos autos um ofício extraordinário. Afirmava que pretendia que pretendia incluir no processo fotos de si próprio com Rocha Vieira, governador do território, para demonstrar que, por um lado, se encontrava envolvido em diversas actividades assitenciais e de beneficência e, por outro lado, «que o seu círculo de rwelações sociais é bem mais abrangente do que resulta das fotografias juntas aos autos de acusação». No seu entender, a amizade com Rocha Vieira jogava no tribunal a seu favor. por coincidência, Chan Hak Kan foi o único arguido absolvido.

Os arguidos e as acusações

 

É uma surpresa geral quando, em 1999, quase uma ano depois da detenção de Dente Partido, na sequência da explosão da carrinha do director da Polícia Judiciária de Macau, Marques Baptista, o Ministério Público apresenta a acusação do então já chamado «Mega-Processo das seitas»: ninguém é acusado de homicídio ou, sequer, de ataques à bomba. O nexo – o pretexto, segundo as alegações enviadas enviadas para a ONU – que sustentou a estrepitosa operação de Marques Baptista no Hotel Lisboa não obteve, afinal, sustentação jurídica.

 Além de Pan Nga Koi, são acusados mais dez arguidos. Associação criminosa, agiotagem, violação de telecomunicações e lavagem de dinheiro são as acusações. Dente Partido tem ainda mais uma: posse de documento falso. Há nove advogados, 59 testemunhas arroladas pelo Ministério Público e mais cinco peritos de investigação como depoentes. Os tomos do processo têm mais de 3 mil páginas.

 No dia 27 de  Abril de 1999, o tribunal abre-se para o julgamento, mas este tem de ser adiado. O presidente do colectivo de juízes, Alberto Mendes, marca nova sessão para o dia 17 e garante que , nessa data, «terá início o julgamento com os elementos que houver». Diz mais, o juiz: «Este julgamento terá técnica e legalmente o mesmo tratamento que qualquer outro», pelo que, «se não houver prova, haverá absolvição». Dito isto, dias depois, o processo descaminha. Subitamente, Alberto Mendes decide regressar a Portugal mais cedo do que o previsto. Afinal, a sua comissão de serviço (que cessaria no dia 6 de Julho) já não vai ser prorrogada.

 O Macau político e judicial agita-se, uma vez que, escreveu o jornalista Ricardo Pinto no semanário Ponto Final, «por razões óbvias, este é um processo em que nenhum dos restantes juízes [do colectivo] estará muito interessado em julgar». No entanto, em declarações ao mesmo jornal, Alberto Mendes faz questão de esclarecer que a sua decisão nada tinha a ver com o processo. Mas não adiantou quais eram as verdadeiras razões.

 

“Vontade de pôr o tribunal nos eixos”

 

Entretanto, Alberto Mendes envia um ofício ao juiz que, em princípio, o substituiria, Viriato Lima, pedindo-lhe que confirme se vai manter a data do julgamento para o dia 17 de Junho. Mas Viriato Lima responde-lhe que «só virtualmente» pode ser visto como seu substituto.

 O advogado de Pan Nga Koi é que reaje de imediato, lembrando que Mendes tinha prometido, na primeira sessão, que o julgamento se faria na data prevista, «quer chova, quer faça sol». E acrescenta que «a mudança de juiz, tendo já começado o julgamento, viola o princípio da estabilidade da instância». Viriato Lima, no entanto, e apesar da sua primeira resposta a Alberto Mendes, assume-se como substituto (apenas) para designar 20 de Setembro como a data da nova sessão do julgamento.

 No dia 16 de Junho, véspera da primeira data para a continuação do julgamento, o Conselho Judiciário decide recorrer à República. E chama Fernando Estrela. O juiz terá de estudar as milhares as milhares de páginas do processo, pelo que, apesar de ter chegado a Macau em Julho, volta a adiar o reinicio do julgamento, agora para 11 de Outubro, dois meses e seis dias antes de Portugal transferir a soberania do território para a China. O jornalista José Pedro Castanheira, no livro Macau – Os últimos Cem dias do Império, descreve o seu estado de espírito: «Fernando Estrela estreia-se em Macau. Com vontade de pôr o tribunal nos eixos».

 

“Não tenho medo, mas todos têm”

 

Foi uma primeira sessão extremamente agitada. Os advogados de oito dos arguidos requereram imediatamente ao Tribunal Superior de Justiça (TSF) a substituição de Fernando Estrela por «falta de isenção e de imparcialidade». Motivo: ter ordenado que os acusados ficassem incomunicáveis devido à sua «natural perigosidade».

 Os advogados indignam-se. «Essa expressão é inaceitável, porque consubstancia uma violação grave do princípio da presunção de inocência dos arguidos, alguns dos quais delinquentes primários». Para além disso, questionam a legitimidade de um juiz decretar «incomunicabilidade absoluta», incluindo advogados, o que é ilegal face à Constituição Portuguesa. A discussão aquece. Porquê colocar dez arguidos incomunicáveis para prevenir acções de intimidação sobre terceiros, quando o rol de testemunhas daquele processo e´, há meses, do conhecimento público?

No calor da discussão, o advogado de Pan Nga Koi sofre uma indisposição. Pedro Redinha ainda é deitado na sala dos advogados, mas segue logo para o hospital onde lhe é diagnosticado um estado agudo de hipertensão. Entretanto, na sala de audiências, Fernando Estrela discursa – não sem antes pedir que as suas palavras não fossem traduzidas para cantonês. Diz: «Temos de deixar de fazer de conta que este processo não é grave. Não sou eu que o digo, são os jornais que lhe chamam O Julgamento do Século». Faz uma pausa. E conclui: «Isto não é uma brincadeira de meninos.»

 A seguir, fala do medo. «Não tenho medo, mas toda a gente tem», afirma. «Não estamos perante um grupo de escuteiros. Eu não tomo estas medidas por prazer, mas porque elas são necessárias,. Corria menos risco se não as tomasse.» Por fim, recusa a suspensão do julgamento enquanto o TSJ avalia o requerimento.

 

Agressividade sobe de tom

O primeiro arguido a ser interrogado é, precisamente Pan Nga Koi, que nega chefiar qualquer facção da 14K. O juiz-presidente estranha então as entrevistas concedidas à Time e à Newsweek, na qual admitia ser chefe de uma seita. Dente Partido reponde-lhe que os textos das revistas americanas estão cheios de equívocos. E Fernando Estrela lembra-lhe que ele já tinha afirmado que o conteúdo das revista era «um problemas menor».

 «Um problema menor, ser chefe de uma tríade?», retorqui-lhe. O advogado tenta explicar que o «problema menor» era as revistas terem escrito aquilo. Estrela corta-lhe a palavra: «Comigo a presidir, não há diálogos!», exclama. Lá fora, Francisco Nicolau, outro advogado, vê negada a entrada na sala de audiências se não mostrar os documentos que leva na pasta. Francisco Nicolau recusa – e o irmão de Pan Nga Koi é representado por uma defensora oficiosa. A Associação dos Advogados de Macau apresentou, nos dias seguintes, uma queixa no Conselho Judiciário. Este reuniu no dia 19 de Outubro, mas Fernando Estrela já revogara a incomunicabilidade dos arguidos com os advogados.

 Quanto ao Tribunal Superior de Justiça (TSJ), este negara a substituição do juiz no dia 15, com uma justificação assaz lacónica. Fê-lo por duas mais vezes, sem nunca tirar o tapete ao juiz-presidente. Nem o TSJ, nem os seus dois juízes-asa no julgamento: os chineses Lai Kin Hong, actual presidente do Tribunal de Segunda Instância de Macau, e Sam Hou Fai, actual presidente do Tribunal de Última Instância. A solidariedade nunca foi quebrada.

 A substância das acusações aos dez arguidos baseava-se num relatório secreto da Polícia de Segurança Pública, de 1995, a que a Visão teve acesso, assinado pelo tenente-coronel de Artilharia José Lourenço e com a classificação «C-3». Interrogado no tribunal, o oficial explicou que essa classificação era dada às informações «confidenciais e sujeitas a confirmações», razão pela qual não passavam de instrumentos de trabalho. «Se por si só constituíssem prova», declarou José Lourenço, «os suspeitos teriam sido detidos mal eu o elaborei». O juiz-presidente ficou muito agastado com estas palavras. E na sessão seguinte classifica de «muito triste» o depoimento de José Lourenço: «Só a minha benevolência o poupou a um processo-crime por falsas declarações», afirma. «Se alguém aqui perdeu credibilidade foi o tenente-coronel José Lourenço».

 Para Pedro Redinha é a gota de água: a 29 de Outubro, desiste da defesa por achar que não tinha condições para exercer válida e eficazmente o seu mandato.

 

Julgamento acaba “em beleza”

 

Pan Nga Koi passa, então, a ser defendido oficiosamente pela jovem advogada Teresa Soares. Mas esta, na sessão seguinte, alega que o volume e complexidade do processo não lhe permitem fazer uma defesa adequada. A 8 de Novembro, as alegações finais do alegado líder da 14K foram feitas por um simples funcionário judicial. Dia 23, Fernando Estrela lê a sentença: 15 anos de prisão. Segundo José Pedro Castanheira, «Pan Nga Koi recusa ser algemado, sobe para uma cadeira e grita críticas obscenas ao governo e ao tribunal. O julgamento das tríades acaba em beleza».

 A 3 de Dezembro, Pedro Redinha interpõe recurso para o Tribunal de Segunda Instância, o qual deverá emitir um acordão ainda em Junho. Há, todavia, muito muito cepticismo à volta do sentido dessa decisão: é que o presidente desse tribunal, Lai Kin Hong, foi um dos juízes-asa de Fernando Estrela; e o outro, Sam Hou Fai, preside ao Tribunal da Última Instância. Onde o processo, inevitavelmente, irá parar.

   

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