ENTRE BOMBAS E EXPLICAÇÕES
Francisco
Moita Flores, artigo de opinião no Diário de Noticias de 14.9.1998
«Gostaríamos de não ter tido razão há alguns meses levantámos preocupações
referentes ao eventual crescimento da actividade cirminosa no território
de Macau depois da notícia que foi a prisão do líder da seita dos 14
Quilates. Aí está a confirmação do vaticínio.
Sobretudo gostaríamos de não ter tido razão quando temíamos que alguns
dos nossos amigos, neste momento a prestarem serviço na PJ de Macau,
pudessem ser vítimas de uma direcção desastrada. Infelizmente
confirmaram-se as nossas preocupações.
Não só aumentou a violência como emergiram novos comportamento
criminais que, pela sua natureza, estimularão ainda mais a insegurança e
a intranquilidade, como é o caso de um dos mais capazes e competentes
inspectores da PJ de Macau estar hospitalizado ao ficar ferido no atentado
da semana passada. A ser verdade o conjunto de notícias veiculadas pelos
órgãos de comunicação, no último dos muitos incidentes que têm
ocorrido em Macau os jornalistas e polícias que ficaram feridos na sequência
de um rebentamento deveu-se à utilização de uma bomba ao retardador
depois do rebentamento de um primeiro engenho.
Quer isto dizer que e segunda bomba era destinada a polícias, jornalistas
e curiosos. Assim aconteceu e não se vê solução a curto prazo - a médio
prazo já não haverá administração portuguesa - para a espiral de violência
que cresce conforme se aproxima o fim da última península do império
O governador do território explicou-se. E mal. Adiantou que estávamos
perante a desorientação de criminosos face à maior eficácia da polícia,
adiantando, com manifesta compreensão política, que esta escalada da
violência também não interessa ao crime organizado, porque segundo o
governador, também o crime organizado precisa de estabilidade para fazer
os seus negócios.
Este reconhecimento em território português, que não significa
cumplicidade, da convivialidade com as seitas - poderosas organizações
que se alimentam da prostituição, da agiotagem, do branqueamento de
capitais e tráfico de estupefacientes em larga escala, para além de uma
procissão de outros crimes - atira com a questão dos toiros de Barrancos
para o anedotário.
Para além da injustiça que cometeu com anteriores directores da Polícia
Judiciária de Macau, alguns deles são actualmente destacados e
competentes responsáveis da Polícia Judiciária em Portugal, é tarde de
mais para falar de desorientação.
Os erros em política têm emenda, em polícia dificilmente são
reparados.
O governador de Macau, que em tempos faz parte da constelação de
candidatos a presidente da República, vê-se reduzido ao papel de
advogado retórico em defesa de um cabo-de-esquadra sem capacidade de
reagir à dinâmica criminosa que avança no território, pese o facto de
ter sob as suas ordens alguns dos melhores agentes da PJ portuguesa.
Sabe-se que as seitas têm as suas raízes mais fundas mergulhadas na
China e como são habilmente utilizadas como forma de pressão sobre a
administração portuguesa. Não duvido de que neste momento este conjunto
de atentados serve às mil maravilhas ao protagonismo imperialista chinês.
Revela como é má a administração portuguesa, que não garante a paz pública.
Demonstra a incapacidade policial para suster a violência do crime
organizado e, na estratégia dos amanhãs que cantam, apresentar-se-á
como a substituição necessárias apara que a ordem regresse, a paz torne
às ruas e as seias sossegues.
Mesmo que isto não se diga, a barbaridade das seitas propicia a formulação
deste discurso e a criação de predisposições psicológicas para aceitação
do domínio chinês. Porém, se o terrorismo urbano que se desenvolve em
Macau é contrário ao prestígio e à dignificação da tutela portuguesa
sobre o território, não é menos verdade que essa tutela nunca teve nem
a audácia nem a coragem com que os britânicos enfrentaram as mil
armadilhas com que, nas vésperas da transferência de poderes, se minou a
administração de Hong Kong.
O jogo e a prostituição celebrizaram Macau no mundo. Sempre se fez de
conta que reproduzia no Oriente o esplendor afrodisíaco de prazer e festa
de Las Vegas.
Ignorou-se deliberadamente que a capital do jogo americana é fortemente
condicionada pela Máfia para daí não se apresentar a sua variante
oriental, que mete seitas e coexistências inimagináveis entre o mundo
legal e os negócios obscuros, embora carregados de virtudes públicas.
Esta terra cresceu assim: feita de compromissos, de negócios e de negociações.
Cada vez que Portugal actuou pela força, esta voltou-se contra si com força
redobrada suportada pela ira dos velhos e dos novos mandarins. Porque quer
as seitas quer as estruturas legais da política chinesa assentam nessa
secular hierarquia de poderes cujas raízes mergulham na cultura e na história
da velha China.
Na estrutura societária do mandarinato, baseada em laços de
solidariedade vertical, não se poderia esperar outra coisa da
visibilidade pública que teve a operação de propaganda montada em torno
do chefe da seita 14 Quilates. Não é a prisão do indivíduo que está
em causa, mas a forma como foi realizada. Não é o ataque desferido
contra esta seita que deve ser questionado, mas o facto de o mesmo não
ter ponderado sobre o desequilíbrio na relação de forças interseitas
que operam no território, permitindo que de todo este imbrólio saísse
reforçada entre outras a "gasosa" organização de dimensão
respeitável e cuja luta com a 14 Quilates nas partilhas do poder da
economia clandestina de Macau é conhecida há anos.
Segundo aquilo que se sabe, não existe relação directa entre a prisão
do líder da 14 Quilates e o estranho e translúcido atentado contra o
director da PJ.
A acusação que contra ele recaiu poderia cair sobre qualquer outro
dirigente de qualquer outra seita.
Ora foi este tratamento discricionário, a ausência da sensibilidade para
a negociaçãoe para o equilíbrio que, como se referiu, foram durante séculos
os grandes suportes da presença portuguesa naquela parcela do território
chinês que deitou por terra a paz e a tranquiliade em Macau.
É certo que não é possível à autoridade judicial portuguesa
"perder a face" neste momento o libertando ou arranjando outra
escapatória para a incómoda situação que foi criada.
No entanto, a resolucação deste conflito, que tende a converter-se num
diálogo entre bombas e explicações inócuas, só é possível através
de um retorno à velha e ancestral ordem da convivialidade - que, repito,
não significa cumplicidade - para que o reequilíbrio das forças que
dominam o território não seja adulterada pela insensibilidade política
ou pela arrogância policial.
Francisco Moita Flores, artigo de opinião no Diário de Noticias de
14.9.1998»
anónimo,
16/7/00
in Forum Macau