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NÃO, O ASSUNTO NÃO ESTÁ ENCERRADO,
 
Público, 4/6/00

 

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Não, o Assunto Não Está Encerrado.
Por JOAQUIM FERREIRA DO AMARAL
Público, Domingo, 4 de Junho de 2000

Dois acontecimentos abriram, nestes últimos dias, um novo capítulo na vergonhosa saga tecida à volta do último governador de Macau, a pretexto da constituição da Fundação Jorge Álvares: a vinda a Portugal de Edmund Ho, chefe do executivo da Região Administrativa Especial de Macau e o artigo que Rocha Vieira, o último governador de Macau, escreveu no "Expresso". Entre estes acontecimentos e depois, o Presidente da República produziu várias afirmações a propósito do caso.

Pela Imprensa ficamos a saber que o Presidente da República é "crítico" em relação à forma como a Fundação Jorge Álvares foi constituída, que considera - tal como Edmund Ho - que "o assunto está encerrado" e que apela para que não cometamos a ingratidão de "crucificar pessoas como Rocha Vieira, que prestaram grandes serviços a Portugal". Quer dizer que o Presidente da República pretende generosamente amnistiar, o que no caso presente ainda é pior do que acusar. Ficamos ainda a conhecer o pormenor de natureza pessoal que é o dr. Jorge Sampaio ser amigo do dr. Edmund Ho.

Da leitura, porém, do depoimento que Rocha Vieira publicou naquele semanário, somos levados a concluir que: a) a constituição da Fundação Jorge Álvares foi na realidade um dos bons serviços prestados por Rocha Vieira a Portugal; b) foram rigorosamente cumpridos todos os procedimentos legais; c) foram tomadas todas as cautelas políticas: "A decisão de constituir a fundação, com fundos de duas origens (a Sociedade de Turismo e Diversões de Macau e a Fundação para a Cooperação e o Desenvolvimento de Macau) só foi tomada depois de uma consulta prévia" a Edmund Ho; d) Edmund Ho a tudo (objectivos, constituição e origem de fundos) deu assentimento expresso (e confirmou-o agora) e tomou a iniciativa de pôr à disposição da fundação instalações, em Lisboa, que são propriedade do Governo de Macau.

Mas porque mudaram as "circunstâncias" políticas em Macau, Edmund Ho teve a circunstancial ideia de mandar organizar uma comissão para avaliar a legalidade da decisão de Rocha Vieira. Esqueceu-se, circunstancialmente, de informar a dita comissão de que tinha dado, desde o início, toda a sua concordância ao processo de constituição da Fundação.

Agora, confrontado com o seu interlocutor de ontem (o de outras circunstâncias) e na presença de várias testemunhas, reconhece que aquela comissão teve omissões graves nos seus trabalhos, que foi contestada nas suas conclusões e que o general Rocha Vieira foi tratado injustamente ("very unfair").

Mas, apesar deste "muito injusto" tratamento, continua a não querer fazer uma declaração formal pública sobre o assunto.

Não tenho absolutamente nada a ver com as piruetas que o dr Edmund Ho tem que dar para poder manter-se no cargo. Nem me arvoro em juiz de comportamentos humanos. Mas tenho a obrigação, como todos nós temos, de me preocupar com os interesses de Portugal, com a defesa do nosso prestígio externo e com a preservação da honra de quem a ambos serviu, continuadamente, com brilho e dedicação.

Toda esta história pareceu suspeita desde início. Recordam-se que, repentinamente, através de notícias publicadas em toda a parte, surgiram notícias sobre uma tal Fundação Jorge Álvares (de que ninguém tinha ouvido falar antes) criada, dizia-se, pelo governador Rocha Vieira. Mencionavam-se, a propósito da fundação, irregularidades, inquéritos, "comissões independentes" nomeadas para averiguar. Para o público em geral, o que ia passando era a ideia de ter rebentado um escândalo. Rocha Vieira envolvido.

É claro que a forma como as notícias iam sendo publicadas, os termos utilizados e sobretudo e própria dificuldade em compreender o que era substancialmente a questão, faziam suspeitar de que tudo isto se tratava de uma campanha orientada visando a tal fundação, talvez até a personalidade do governador.

Hoje, lendo em retrospectiva o que foi publicado na altura, tudo sugere que se tratou de uma tentativa poderosa, de origem não identificada, com vista a manipular a comunicação social e através dela condicionar a opinião pública portuguesa. Honra seja feita a alguns órgãos de comunicação social de prestígio que cedo compreenderam o papel que lhes estava a querer ser distribuído e naturalmente não o aceitaram.

Não sei identificar quem são esses interesses que pretendem dar cabo da Fundação Jorge Álvares, e muito menos sei adivinhar por quê. Sei que não têm origem nas autoridades chinesas. Mas sei sobretudo que não são seguramente os interesses nacionais. E isso basta-me para tomar posição.

A fundação foi criada propondo-se estreitar os laços entre Portugal e Macau. Propósito com que todos nos identificamos sem esforço. Nela estão integrados todos os antigos governadores do território, numa manifestação inequívoca de empenhamento e de responsabilidade. Esta presença tão significativa honra-os a eles e honra-nos também a nós.

O que é mais triste em tudo isto, é o epílogo que agora se pretende dar à questão.

Postas em causa a honra de Portugal, da Administração Portuguesa de Macau, do último governador de Macau, general Rocha Vieira, isto é, de um brilhante oficial das Forças Armadas Portuguesas com uma folha de serviços exemplaríssima, e posta em causa afinal a honra de todos os antigos governadores do território, o Presidente da República prefere associar o seu silêncio ao do seu "amigo" Edmund Ho.

Mas o que é isto?

Como pode aceitar o Presidente da República, sem uma palavra de reserva, que se crie comissões "independentes" nomeadas por entidades não portuguesas para produzirem apreciações sobre as acções do governador português de Macau que afinal dependia apenas dele próprio, Presidente da República? Pior ainda: como pode dar a entender que aceita as conclusões que essa dita comissão "independente" produziu? Que precedente intolerável se estabelece a partir de agora? Que mais actos de quais governadores irão no futuro ser apreciados e julgados da mesma forma perante a opinião pública?

Quando, apesar de tudo o que hoje já é evidente, o Presidente da República pretende dar por encerrado o "assunto" e enfatiza, na televisão, a sua amizade por Edmund Ho, que lançou o mote do "encerramento", é legítimo perguntarmo-nos sobre quem defende os interesses de Portugal.

Rocha Vieira, que, apesar de ter cessado funções como governador de Macau, manteve, à sua custa, um silêncio, ditado pelo interesse superior do Estado?

Ou o Presidente da República, que, embora conhecedor de todo o processo, desde o seu início, se manteve silencioso e, depois de alteradas "as circunstâncias", acha conveniente não assumir a defesa de Rocha Vieira e, dando ares de tolerância, apela (para quem? para ele próprio?) para que não crucifiquem Rocha Vieira, como se estivéssemos em presença de um criminoso a quem, em razão de outros serviços prestados, há que manifestar comiseração e poupar à pena capital?

Onde estão neste momento os interesses e a dignidade do País? Na aceitação de tudo o que nos quiserem impor, para não se zangarem connosco, mesmo deixando cair quem serviu bem Portugal? Na preservação da amizade pessoal do Presidente da República com o dr. Edmund Ho? Na cedência a "lobbies" não identificados? Mais uma vez parece que as homenagens vão para quem não nos respeita.

Não serve afirmar o mais espantoso de tudo, que é dizer que afinal de contas a fundação é privada e não tem por isso nada a ver com o Estado. Essa é talvez a mais surpreendente de todas as afirmações que foram produzidas pelo Presidente da República neste triste episódio. Privada? Quer dizer que o prestígio externo de Portugal nada tem a ver com isto? Quer dizer que o Estado se deve alhear? Meu Deus, que esforço sobre-humano para encontrar uma porta de saída para não ter de assumir uma posição!

Para terminar, e porque hoje em dia a vida também se faz de pequenas intromissões na vida privada, gostava de compreender melhor onde se construiu a declarada e sólida amizade entre Jorge Sampaio e Edmund Ho. Quantos minutos terão estado juntos? E aonde? No campo de golfe? Na cerimónia de transferência de poderes? Infelizmente, Rocha Vieira, apesar de contactos certamente mais prolongados, não parece ter ascendido ao estatuto de "meu amigo Rocha Vieira".

Não sei se no 10 de Junho ou noutra ocasião, por entre a legião de "amigos" condecorados, não haverá um lugar modesto para condecorar o último governador de Macau.

Se não houver, espero oportunamente poder vir a reparar a injustiça.

*candidato à presidência da República e ex-ministro das Obras Públicas

 

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