A jaula

 

 

Era como uma sinfonia de ódio que vinha dentro dele, num crescendo intolerável.

Desejou pular da cama e quebrar tudo que houvesse no quarto; imaginou o despertador, o aparelho de TV, o frigobar... tudo em pedaços, no chão de tacos.

Mas deixou-se ficar, ensimesmado. Nos olhos castanhos se alternavam a derrota da resignação e as chamas vivas da revolta.

Sorriu; um riso amargo, que mal lhe encrespou os cantos da boca. De onde viera aquele pensamento maluco, de comparar as grades da cabeceira da cama às de uma jaula?

Tentou relaxar e recuperar a serenidade. Tivera um dia particularmente difícil, no trabalho e na vida; um daqueles dias em que se torna quase impossível suportar os outros e as nossas próprias frustrações.

Sentia-se só, abandonado no mundo. Deitada a seu lado, a esposa se absorvia na televisão; vestia uma camisola curta, que lhe deixava à mostra as coxas e as calcinhas.

Estendeu os braços e começou a acariciar as pernas dela; beijou-lhe o pescoço. Com um suspiro de enfado, ela disse apenas:

- Pára! Estou muito cansada!...

E ele parou as carícias. Confusamente, sentiu pena e vergonha de si mesmo; pena por estar tão só, e vergonha por esmolar um pouco de amor.

Aquietou-se na cama; sentia-se perdido e inútil. De mistura à frustração, envolveu-o uma intensa apatia, ainda mais terrível que a raiva, porque mortal.

Não mais tentou entender como se sentia. Para que? Como fazer entender que existe no amor uma espécie de orgasmo espiritual, muito mais prolongado e necessário que o do corpo? Como falar da pureza que existe no sexo, em um mundo que considera obscenos pênis e vaginas... e vive quase exclusivamente em função deles?

Na realidade, a águia não pode explicar à serpente o que vê das alturas; e esta não pode explicar àquela como é o mundo, visto da sua posição rastejante. E nenhuma delas é culpada de defender o seu ponto de vista.

Assim, é impossível explicar o que se sente, ou admitir os próprios erros; a maior parte dos nossos sentimentos e dos nossos erros são coisas que jamais confessamos sequer a nós mesmos.

Assustou-se ao ver que começava a divagar. Deixou a cama, onde a mulher fingia ressonar; desligou o televisor e caminhou para a cozinha, em busca de uma xícara de café.

Depois do café, deteve-se um instante na porta do quarto dos filhos, que dormiam. Regulou a intensidade da luz e a velocidade do ventilador de teto, e sentiu um carinho infinito por aquelas crianças.

Deitou-se no sofá da sala,  acendeu o primeiro cigarro. E entregou-se à autopiedade inútil, que afastava cada vez mais o já esquivo sono. Em comum e humana covardia, refugiou-se nas lembranças mais felizes do passado, tentando esquecer a angústia do presente.

Fez desfilar, na tela da memória, diversos momentos felizes. Reviveu os beijos, abraços e sonhos da juventude. E tudo que conseguiu foi sentir-se velho, como se séculos houvessem decorrido desde aqueles dias.

Percebeu, de repente, que o mundo é realmente uma enorme jaula. E que, dentro dessa jaula comum, cada pessoa se isola em uma própria jaula, constituída por seus pensamentos e inclinações. Percebeu que as pessoas se falam e se vêem através das barras de suas jaulas... e é por isto que se sentem tão sós!

Absorveu-se no raciocínio: então, é por isto o egoísmo? E a solidão? E a impossibilidade de uma entrega total?

Sim, é por isto! Cada um vigia o fecho da própria jaula, enquanto exige dos outros que lhe entreguem as chaves das suas jaulas.

Idealizou um mundo sem jaulas: sem guerras, sem rancores, sem frustrações. Onde todos se conhecessem, se amparassem e assim tornasse a vida mais fácil de ser vivida.

Mas percebeu que muitos não abdicariam de suas jaulas: pelo contrário, usariam as suas barras para ferir aqueles que houvessem renunciado às suas. É assim que tem acontecido desde o começo do mundo.

Descobriu, então, a causa das jaulas: o medo de sofrer. E viu, paradoxalmente, a sua conseqüência: o sofrimento.

A luz do amanhecer começava a filtrar-se pelas cortinas; a noite havia escorrido pelos seus olhos insones.

O cinzeiro estava cheio; apagou o último cigarro e voltou para o quarto. Deitou-se, cuidando para não acordar a mulher adormecida, beijou de leve os seus cabelos e murmurou, num profundo suspiro:

- Seria tão bom se, juntos, pudéssemos romper os cadeados das nossas jaulas!...

 

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