"O Senhor dos Anéis" e a questão do eixo do mal Dúvida e ética estão juntas na obra de Tolkien adaptada para o cinema RAFAEL RUIZ Especial parao Estado Quando J.R.R. Tolkien escreveu seu Senhor dos Anéis, ficou tão preocupado com as diferentes interpretações que poderiam ser dadas que quis deixar por escrito, explicitamente no prefácio do mesmo, que a história do livro era apenas esta: uma história fictícia, contada por alguém que gostava de contar e para quem gostasse de ler. Contudo, toda obra escrita - bem como qualquer outra obra de arte - passa a ter vida própria. Uma vida que, como no caso dos filhos, vai muito mais além do sonho ou do desejo dos progenitores. E isso nos permite tentar olhar para a obra de Tolkien com olhos muito diferentes dos seus, com um olhar que ele, como pai ciumento, talvez reprovasse e, mesmo assim, não poderia deixar de concordar. Há um fio tênue que une a obra de Tolkien com a de Shakespeare. É a dúvida. A dúvida que aparece tanto em uma quanto na outra. O cerne da tragédia de Hamlet está plasmado no seu "to be or not to be", enquanto que a questão "da sociedade do anel" é se valerá a pena, diante das poucas possibilidades de sucesso, ir além de toda esperança e adentrar-se nas terras de Mordor. Tanto Hamlet quanto Frodo estão plenamente conscientes de que o mundo que lhes tocou viver está completamente torto e se lamentam de que eles, precisamente eles, tenham de ser aqueles que poderiam consertá-lo. Hamlet exclama do fundo do seu coração: "Ó tarefa de amargar, que seja eu quem tenha de o consertar!", enquanto Frodo sussurra ao Mago Gandalf: "Tempos ruins os que nos tocaram viver. Gostaria que isso não tivesse acontecido na minha época." E o leitor do Senhor dos Anéis, que, até aquele momento, estava já começando a cansar-se de tanto café da manhã sem graça, tantos vales floridos e tanta vida monótona, sente-se atingido pela resposta de Gandalf: "A decisão não é nossa. Tudo o que temos de decidir é o que fazer com o tempo que nos é dado. E o tempo está começando a ficar negro." E olhamos ao nosso redor e, de fato, percebemos que as nuvens estão ficando escuras, que a noite está chegando mais cedo, que há no ambiente uma tensão, um medo latente que, antes, pouco tempo atrás, não havia. E lemos ou escutamos o jornal e parece-nos que as sombras estão se adensando. E ouvimos falar do eixo do mal - provavelmente na expectativa de que deduzamos que haverá, portanto, um eixo do bem - e lembramo-nos do diálogo de Éomer, perplexo diante de tudo o que está vendo acontecer: é difícil ter certeza de qualquer coisa... O mundo ficou muito estranho. Como pode um homem julgar o que fazer em tempos assim? A resposta. Tudo depende da resposta que for dada a essa dúvida inicial que nos aguilhoa, que nos incomoda, que nos deixa temerosos porque, realmente, o problema é grande demais, a dor é grande demais, a vida é mesmo grande demais e temos consciência de que tudo isso nos ultrapassa. O que Shakespeare quis dizer com o seu "to be or not to be" foi o mesmo que Gandalf deixou nos nossos ouvidos e que Frodo, vez por outra, precisamente quando está mais desalentado e sem ânimo, também escuta nos seus: "Tudo o que temos de decidir é o que fazer com o tempo que nos é dado..." "To be or not to be." Ambos querem dizer-nos que a reposta que for dada deixará ver a qualidade moral da pessoa que respondeu. Sedução das palavras - Há um tipo de resposta fácil e simples. É a resposta de Saruman, mestre na arte da retórica e bom conhecedor da sedução da palavra, quando propõe a Gandalf que se junte com ele para liderar o mundo: "Podemos esperar nossa hora, podemos guardar o que pensamos em nossos corações, talvez deplorando as maldades feitas incidentalmente, mas guardando o propósito final mais alto: conhecimento, liderança, ordem. Não precisaria haver qualquer mudança em nossos propósitos, só em nossos meios." Saruman olha para o mundo e define, por contraste, o eixo do bem. O eixo onde tudo o que há de bom se junta e existe. Lá, tudo o que se faz, tudo o que se persegue, tudo o que se diz, tudo o que não se diz, tudo, absolutamente tudo será do bem, enquanto que, mais para lá, tudo, absolutamente tudo será do mal. É tudo bem mais simples. O único problema serão algumas maldades incidentais (meios, afinal), mas... o que vem a ser isso diante dos altos propósitos que movem o eixo do bem?! A grandeza do Senhor dos Anéis não está em ter falado de um reino do bem e do mal. A sua grandeza está precisamente em insistir na idéia de que o único que salvará este mundo, o único que poderá trazer uma réstia de luz no meio da negra noite que nos rodeia, o único que poderá fazer nascer uma nova aurora é precisamente a consciência de que, nesta Terra Média onde vivemos, não há ninguém absolutamente bom, nem absolutamente mau. Nem Gollum, nem Saruman, nem os espectros do Anel, nem mesmo o Senhor de Mordor são pessoas "que não têm mais jeito", seres perversos e cruéis "que precisam ser eliminados". É uma curiosa ironia do destino que quem exprima essas idéias seja precisamente alguém chamado Sam: "É uma pena que Bilbo não tenha apunhalado aquela criatura vil, quando teve chance!" Sam, o companheiro fiel de Frodo na sua missão, está exausto, desesperado e, na sua simplicidade, queixa-se de Bilbo, aquele que começou toda essa história do Anel para o Condado dos hobbits, e lamenta que não tivesse matado Gollum... Frodo, que jaz quase sem forças nas imediações da Montanha da Perdição, lembra de que ele mesmo também disse isso a Gandalf. E lembra que foi então quando Gandalf lhe confiou o segredo de como vencer o poder maligno do Anel: "Pena!?" Foi justamente pena que ele teve. E misericórdia. Não atacar sem necessidade. Campanha orquestrada - É fácil criar a "necessidade" de atacar. É fácil encontrar argumentos que provem não só à opinião pública, mas, inclusive, a nós próprios que é preciso, que é inevitável atacar. Existe até a possibilidade de se organizar uma campanha orquestrada, com cartas de intelectuais ou com disseminação de informações falsas na mídia para criar um "estado de opinião" que apóie ou, pelo menos, não condene um ataque que, bem olhadas as coisas, não era nem tão inevitável, nem tão necessário. Sam insiste: "Não sinto nenhuma pena de Gollum. Merece morrer." E diante dessa sentença tão categórica, tão peremptória, tão decidida; diante dessa absoluta falta de dúvida sobre se é ou não para matar, Frodo sabe tirar forças da fraqueza e, num último alento, fala como que falando para si próprio: "Merece!? Suponho que sim. Muitos que vivem merecem morrer. E alguns, que merecem viver, morrem. Você pode dar-lhes a vida? Então, não seja tão ávido para condenar à morte em nome da justiça, temendo pela própria segurança. Nem mesmo os sábios conseguem ver os dois lados." Frodo também descobriu o segredo do Anel. O poder é forte. Quem tem muito poder é poderoso. Mas o poder pode mais do que o próprio homem que o detém. É preciso saber condoer-se; é preciso ter compaixão; é preciso ter dentro do coração fagulhas de misericórdia. Senão, não se tratará de ter ou não ter o poder, mas, pelo contrário, se tratará de ser ou não ser, como Galadriel, capaz de resistir ao domínio maligno que ele estenda sobre nós. To be or not to be. Não seremos mais; seremos apenas espectros, os espectros do Anel. Rafael Ruiz é mestre em Direito Internacional Público pela USP e doutorando em História da América