PEDIDO DE MÃE

                            Eu era ainda muito pequeno, quando o meu pai deixou a minha  mãe. Deixou também a todos nós de casa. Tinha, é o que suponho, a idade de uns sete anos e as minhas duas irmãs vinham logo abaixo.

                            O meu pai costumava sair de casa por tempo pequeno. Era muito raro ter que demorar muito. Saía, a cavalo, tocando uns seis, daí para menos, tourinhos de raça para negociá-los com os fazendeiros. Era, naquela época, um meio de vida dele e foi, sem lhe ser do interesse, um meio de melhoria do gado bovino da região. Era a vez de todo criador ter um novo reprodutor de raça, lá de Minas Gerais. Para adquiri-lo, poderia dar em troca a novilha maninha, a vaca com úbere defeituoso e até o touro velho para não mais o deixar cruzar com as crias, filhas dele.

                            Voltava o meu pai, quase sempre com uma moita de gado bem maior do que o lote dos tourinhos que levara. Reses diferentes vinham chegando, dando sinal com algum berro mais grave, outro berro diferente e enchiam o terreiro da casa com mais vidas e enchiam, com muita alegria nossa, todos os espaços de ânsia, de espera e de saudade .

                            A espera passou a inquietar, sobretudo, a minha mãe. No seu jeito de pouco falar, já me andava falando da delonga. Maciça e compacta era a presença da ausência de meu pai. Sentiu-se a demora na tulha, no estômago do dia inteiro e no afundar da noite até se dormir. Sonhava-se muito era com ganância de comida.

                            O meu pai não vinha, não voltava. Mandou recado que não viria. Recado sem dinheiro nenhum e era para a minha mãe pagar os compromissos com as coisinhas que ainda tivesse. Desenganada, de vez, ela ficou. Tinha ele, por lá, arrumado outra mulher. Foi o que se soube ao depois.

                            Para mim era tudo estranho. Pouco entendia. Não sei se de tudo de que me lembro, é, na verdade, acontecido ou se me andaram contando e a minha fantasia de menino me deu por acontecido.

                            Eram de propriedade do meu pai as terras em que nós ficamos. Dava para avistar o tanto do que havia. Era um começo. Não ajudava em nada. Nada de adjutório no viver da gente. Estava longe da hora de render alguma coisinha. Iria levar tempo. Não era cercada. Um tanto assim desajeitada, não era bem campo nem cerrado. Era um encardido crespo, sem serventia em si e aparente.

                            As bolas de arame farpado para cercar a propriedade estavam amontoadas no canto da casa improvisada, do lado de dentro, de onde logo saíram, levadas pelo primeiro cobrador que apareceu. Outros cobradores vieram e levaram mais coisas. As vacas foram todas em pagamento dos compromissos assumidos por meu pai no comércio ali do povoado de Lua Nova, bem depois da Cidade de Goiás.

                            Eu não posso esquecer o dia em que levaram os porcos. O cobrador era baixo, claro avermelhado, era mais para gordo, usava um chapéu pardo-poeira, o bigode era sem aparar, estava sempre sério e dando ordens. Embarcaram os dois capados do chiqueiro e dois leitões já assim, crescidos. A porca parida era grande. Usaram um amarrilho cruzado, pata da frente com a traseira. Os leitõezinhos não se apercebiam da situação da mãe deles, espranchada no assoalho da carroça, queriam porque queriam mamar. A posição forçada da recém-parida até que permitia.

                            E Ronrom, um leitãozinho, criado entre nós na cozinha, não foi. É que o cobrador, depois de ter mandado apanhar todos os porcos, surpreendeu:

                            - Esse fica. Já acostumado aí com o menino.

                            Ele me olhava junto do leitão. Tinha visto, quando chamei Ronrom. Ronrom veio. Procurou-me. Cocei-lhe a barriga, atrás da mão esquerda. Deitara-se, como sempre fazia. Levantou, já deitado, a mão para receber o carinho no sovaco. Assim foi que Ronrom foi poupado.

                            Sofrer, eu sofria era na enxada. Era capinando na roça do Zé Mineiro. Sacudia-me, dolorido e duro, a enxada a semana toda. Era tarefa de mais de semana, mas eu tirava numa, por precisão do arroz com casca. Era uma quarta por tarefa, eram uns vinte litros que cabiam na lata de querosene, usada para medir a quarta. Quando se recebia o arroz, a gente, à noite, beneficiava-o no pilão, deixando-o do jeito do meu corpo, esmagado, moído, pilado, quebrado em farelo.

                            O serviço de capinar roça  acabara. Foi, antes de acabarem as pilhas do rádio, que ouvi notícia que me dizia respeito e não dizia. Menino não podia trabalhar. Era, o mais provável, coisa lá para menino que podia e não tinha pai fugido. Uma coisa ou outra, não sei não. Zé Mineiro me disse, uns dias a mais, não precisar mais de mim.

                            Foi aumentando a falta de mantimento, o dia foi ficando grande e a noite com pensamento numa coiseirada de comer. Ronrom era o meu brinquedo. Passou a fuçar mais.

                            Andei uns dias entretidos em armar arapuca para pegar uma juriti. Iria ser bem tostada. Frita, não. Fritar sem banha, sem gordura... Vai ser assada bem devagarzinho, salgadinha, mas precisando economizar o sal. Com esse negócio de economizar é que não peguei juriti nenhuma. Não podia jogar um arrozinho debaixo da arapuca. O pouco que pusesse lá, fosse bem cozidinho, dava mais que nada, um poucochinho a mais na hora de repartir o de comer.

                            Foi numa das vezes em que vinha do ainda não começado quintal, que notei a minha mãe sentada no pilão. No tempo do arroz do Zé Mineiro, o pilão ficava com a boca para cima, mas agora,  boca de lado, a minha mãe estava sentada nele, era uma serventia que ainda tinha. Estava ali o pilão deitado. Quantos murros levou na vida, golpes das mãos de pilão, sempre compactas, punho cerrado, uma ausência lisa de dedos e, quantas vezes, a minha mãe e eu, com as mãos de pilão, lá ia uma, lá vinha outra, no desencontrado descer de uma e subir de outra, malhando, lá no fundo, o arroz do Zé Mineiro.

                            Notei que a minha mãe queria dizer, mas não sabia como. Sempre foi de falar pouco e agora queria falar. A cuia de arroz no colo. Pegava um pouquinho de arroz dentro da cuia e o trazia acima, soltava aquele punhadinho, depois voltava a fazer a mesma coisa, triste me falou:

- Ronrom já não tem o que comer. Nunca sobra nada para ele.

Com a cuia no colo, sentada no pilão deitado, pegou um pouco mais de arroz na mão direita, levou acima da beirada da cuia, foi soltando devagar o punhadinho para dentro da cuia e disse-me, indicando, com o olhar, o porquinho ali pertinho de mim:

- Estou esperando a banha dele para afogar este arroz.

                              Ronrom dormia debaixo do banco da cozinha. Buliu uma orelha, era a de cima como se me fizesse um gesto a me dizer que estava de olho fechado, mas estava acordado. Fui à prateleira, peguei a faca. Lâmina gasta, já quase um quicé. Não precisava a minha mãe falar mais nada, era preciso sacrificar o Ronrom. Mais do que ela, eu queria um arroz gordinho. A fome de menino convence mais.

                            Saí para o terreiro. A pedra de amolar, ali. Molhei a pedra. Afiando a faca, a pedra secou. A segunda vez que ia molhar, não foi preciso. As lágrimas pingaram na pedra. Afiei bem a faca. Lâmina estreita e afinada de tanto uso, estava no jeito de entrar no sovaco de Ronrom.

                            Da posição de amolar, saí. Achei o mundo esquisito. As irmãs brincavam de fincar um espinho no chão, ali perto do chiqueiro vazio, sob um pé de articum do campo. Havia passado do meio-dia. Virei. A minha mãe estava do mesmo jeito. Continuava pendulando a mão de dentro da cuia para cima, soltando de cima a porção de arroz limpo. Ali já não havia nenhum marinheiro, nem uma casquinha. Era jeito de pôr cadência no pensamento dela para não dar lugar às cunhas da tristeza. Uma rolinha gemeu, era rolinha encardida, cor de ferrugem, mais para o algodão ganga, não era a carijó não. Se fosse a carijó, cantaria fogo-pegou. Instantes depois, talvez cantasse  fogo-sapecou.

                            Convidei o leitãozinho:

- Ronrom! tm, tm, coche, coche!

                    Foi a conta. O leitão veio alegrezinho, em linha reta. Saiu da cozinha. A minha mãe lá, cuia no colo. O primeiro corte do magro toucinho iria ser picado, frito e o arroz lavado e afogado num chiar dentro da panela. Ronrom. chegou bem pertinho de mim. Esperou um pouco e começou a sair para ali. Fiquei meio lerdo. A emoção andou peando a minha iniciativa. Fiquei assim. Passei, perpendicularmente, o polegar no fio do corte da faca. Estava afiada. Ronrom não perdeu tempo. Passou a dar uma fuçada superficial no molhado junto à pedra de amolar. Levei a mão assim por cima dele, quase pegando em sua cabeça, por entre as orelhas, mais para a testa. Ele levantou o focinho e fez hom. Foi só passar a mão na pá, ele se deitou. Comecei a coçar. Coçado nervoso. Levantou a pata para que eu coçasse, como de costume, o sovaco. Notei que levantara a mão e o braço, mas era o lado direito. Segurei a mão dele, cocei. Forcei-lhe a mão levantada, abrindo mais e o virei. Ficou do lado do coração, aí sim, foi só coçar de novo. Ronrom levantou o braço esquerdo, encolhendo um pouco a mão para trás e estava achando bom do jeito que o estava coçando. Ficou imóvel. Achava bom. Estava entregue nas mãos afáveis do amigo. Preparei a sangria. Tinha visto muita gente matar porco. Quando era muito novo, não deixavam  que visse a facada. Dada a brutalidade do ato, aprendi como sangrar, tinha que, na enfiada da faca, atingir o coração. Não podia ter dó para evitar dor maior na agonia. Estava sendo mais difícil era ter pouco dó. Se não fora um pedido de mãe...

                  Pus o joelho esquerdo em cima do pescoço dele, atrás da orelha esquerda. Pus, sem forçar, num toque leve com se carícia fosse e, quando houvesse o furo brutal, pressionaria o joelho com força para que ficasse ele imóvel, dominado e falha não ficasse a facada do amigo. Chegara a hora. Era vez de. E foi. O grito abriu cratera no chão da minha alma. Deu de fazer cavernas, onde ainda ecoa eterna dor. A minha mãe correu com a bacia de lavar a cara:

- Aparar o sangue. Não esperdiçar. Dá chouriço.

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